Em camas de marfim

Ele era uma pessoa divertida, gostava de dizer coisas a rir e conseguia as gargalhadas de todos. Nas suas brincadeiras tecia críticas que nem todos entendiam. Numa das suas habituais afirmações dizia: “Vou mudar radicalmente a minha vida” e quando lhe perguntavam o que ia fazer, respondia: “Vou mudar o sofá da minha sala”. Às vezes falta-nos a coragem de mudar mais do que o sofá onde mantemos intacto o nosso comodismo.

LEITURA I Am 6, 1a.4-7

Eis o que diz o Senhor omnipotente:
«Ai daqueles que vivem comodamente em Sião
e dos que se sentem tranquilos no monte da Samaria.
Deitados em leitos de marfim,
estendidos nos seus divãs,
comem os cordeiros do rebanho
e os vitelos do estábulo.
Improvisam ao som da lira
e cantam como David as suas próprias melodias.
Bebem o vinho em grandes taças
e perfumam-se com finos unguentos,
mas não os aflige a ruína de José.
Por isso, agora partirão para o exílio à frente dos deportados
e acabará esse bando de voluptuosos».

Instalados no luxo e habituados a viver sem preocupações, os chefes de Israel, esqueceram-se dos pobres. O seu tempo de tranquilidade, porém, está a terminar porque não sabendo governar com justiça vão experimentar o sofrimento no exílio de Babilónia.

Salmo 145 (146), 7-10 (R.1b)

Em resposta à primeira leitura, o salmista, apresenta Deus como o oposto dos governantes de Israel. Deus é o amigo dos pobres. Ele “faz justiça, dá pão”, “liberdade, “ilumina”, “levanta”,, “ama”, “protege”, “ampara”, todos os que se encontram em situação desfavorável por causa da opressão dos poderosos.

LEITURA II 1 Tim 6, 11-16

Caríssimo:
Tu, homem de Deus, pratica a justiça e a piedade,
a fé e a caridade, a perseverança e a mansidão.
Combate o bom combate da fé,
conquista a vida eterna, para a qual foste chamado
e sobre a qual fizeste tão bela profissão de fé
perante numerosas testemunhas.
Ordeno-te na presença de Deus,
que dá a vida a todas as coisas,
e de Cristo Jesus,
que deu testemunho da verdade diante de Pôncio Pilatos:
Guarda o mandamento do Senhor,
sem mancha e acima de toda a censura,
até à aparição de Nosso Senhor Jesus Cristo,
a qual manifestará a seu tempo
o venturoso e único soberano,
Rei dos reis e Senhor dos senhores,
o único que possui a imortalidade e habita uma luz inacessível,
que nenhum homem viu nem pode ver.
A Ele a honra e o poder eterno. Amen.

Paulo desafia o seu amigo Timóteo a permanecer firme diante daqueles que se lhe opõem impedindo-o de realizar o seu ministério. Timóteo deve dar testemunho da sua fé com a mesma determinação com que Cristo permaneceu diante de Pilatos.

EVANGELHO Lc 16, 19-31

Naquele tempo,
disse Jesus aos fariseus:
«Havia um homem rico,
que se vestia de púrpura e linho fino
e se banqueteava esplendidamente todos os dias.
Um pobre, chamado Lázaro,
jazia junto do seu portão, coberto de chagas.
Bem desejava saciar-se do que caía da mesa do rico,
mas até os cães vinham lamber-lhe as chagas.
Ora sucedeu que o pobre morreu
e foi colocado pelos Anjos ao lado de Abraão.
Morreu também o rico e foi sepultado.
Na mansão dos mortos, estando em tormentos,
levantou os olhos e viu Abraão com Lázaro a seu lado.
Então ergueu a voz e disse:
‘Pai Abraão, tem compaixão de mim.
Envia Lázaro, para que molhe em água a ponta do dedo
e me refresque a língua,
porque estou atormentado nestas chamas’.
Abraão respondeu-lhe:
‘Filho, lembra-te que recebeste os teus bens em vida,
e Lázaro apenas os males.
Por isso, agora ele encontra-se aqui consolado,
enquanto tu és atormentado.
Além disso, há entre nós e vós um grande abismo,
de modo que se alguém quisesse passar daqui para junto de vós,
ou daí para junto de nós,
não poderia fazê-lo’.
O rico insistiu:
‘Então peço-te, ó pai,
que mandes Lázaro à minha casa paterna
_ pois tenho cinco irmãos _
para que os previna,
a fim de que não venham também para este lugar de tormento’.
Disse-lhe Abraão:
‘Eles têm Moisés e os Profetas: que os oiçam’.
Mas ele insistiu:
‘Não, pai Abraão. Se algum dos mortos for ter com eles,
arrepender-se-ão’.
Abraão respondeu-lhe:
‘Se não dão ouvidos a Moisés nem aos Profetas,
também não se deixarão convencer,
se alguém ressuscitar dos mortos’».

Com a parábola de Lázaro e o homem rico, Jesus mostra que a felicidade dos bens deste mundo não é garantia da felicidade no Reino dos Céus. O atormentado Lázaro encontra descanso após a morte, enquanto o rico, que viveu regalado, depois de morrer vive em tormentos. A vida é o tempo que nos é dado para escutar a palavra e converter o coração.  

Reflexão da Palavra                                                                                                     

Como já tivemos oportunidade de perceber no domingo passado, Amós é um homem do campo, um pastor de Técua, do reino de Judá, reino do Sul. E Deus envia-o a profetizar no reino do Norte, Israel, cuja capital é Samaria. Porquê? Porque o reino do Norte, no século VIII a. C., vivia um período de extraordinária prosperidade económica e militar no reinado de Jeroboão II. Havia paz nas fronteiras, o comércio florescia, e uma elite enriquecia visivelmente.

Para os privilegiados tudo parecia perfeito. Mas Amós, o homem do deserto, com o olhar de Deus, vê o que eles não veem: a fachada de luxo esconde uma profunda podridão social e espiritual.

A primeira palavra de Deus no texto que lemos este domingo é “Ai!“. Esta expressão não induz uma maldição, pois Deus não deseja o mal de ninguém. Pelo contrário, é uma lamentação, um grito de dor, como quem diz: “Que tristeza ver como caminhais para o abismo sem vos aperceberdes!”. É o grito de um Deus que vê os seus filhos a caminho da autodestruição.

Amós, em nome de Deus, faz uma descrição pormenorizada do estilo de vida da elite de Samaria que ele critica: Vivem “deitados em camas de marfim, espreguiçando-se sobre os seus leitos“. As camas de marfim são um símbolo de ostentação e de uma riqueza que se tornou o centro da vida. “Comem os cordeiros do rebanho… bebem vinho em grandes taças“. Comem do melhor, sem medida, com excesso e desperdício enquanto o povo passa fome. “Improvisam ao som da harpa… perfumam-se com finos unguentos“. Vivem rodeados de prazeres, completamente desligados da realidade. O profeta faz mesmo alusão a David para mostrar o ridículo das melodias destes convencidos, pois David com os seus cânticos louvava o Senhor e eles fazem-no por vaidade.

O problema que está por detrás das palavras do profeta não é apenas o conforto, o bem-estar ou a riqueza, mas uma atitude insensível. De facto, anestesiados pelo luxo não veem nem ouvem o que se passa lá fora com o povo. Por isso o profeta diz que “não os aflige a ruína de José”.

José é o pai de Efraim e Manassés, as duas tribos mais importantes do reino do Norte. Falar da “ruína de José” é falar da ruína da sua própria nação, do seu próprio povo. A ruína é a destruição do reino pelos Assírios que está eminente, mas é também a ruína moral, a desintegração social causada pela injustiça, pela corrupção dos tribunais, pela exploração dos pobres que são “vendidos por um par de sandálias“, como ouvíamos o profeta dizer.

O pecado mortal daquela elite não era a riqueza, mas a indiferença. Estavam tão absorvidos pelo seu bem-estar, pela sua música e pelos seus perfumes, que se tornaram incapazes de sentir compaixão pelo sofrimento do povo. O seu coração endureceu. Eles não se “afligem“, não sofrem com o sofrimento dos outros.

O salmo 145 vem manifestar a distância entre o modo de ser de Deus, fiel à sua aliança, e o modo de ser deste povo do tempo de Amós. Enquanto eles vivem no luxo, Deus volta-se para os pobres.

Depois de uma introdução de louvor, o salmista recorda que a confiança se deve colocar no Senhor e não nos homens. “não punhais a vossa confiança nos poderosos”. Bem-aventurado é “quem tem por auxílio o Deus de Jacob”. Pois os homens, mesmo os poderosos “voltam ao pó da terra”, “deixam de respirar”, “não podem salvar”. Deus, pelo contrário “criou os céus, a terra e o mar e tudo o que neles existe”. Ele “salva”, “dá pão”, “liberta”, “dá vista”, “levanta “, “ama”, “protege” e “ampara”.

Paulo escreve a Timóteo, um jovem a quem confiou a comunidade de Éfeso, num tempo difícil onde alguns falsos profetas introduziam nas comunidades cristãs doutrinas duvidosas e provocavam discussões inúteis que serviam apenas para dividir as pessoas e pôr em causa aqueles que presidiam à comunidade. Nas suas palavras, Paulo, procura encorajar Timóteo para não se deixar enredar em questões sem sentido e focar a sua ação no essencial.

Paulo chama a Timóteo “homem de Deus” para lhe recordar a sua identidade. Timóteo não é um qualquer, a sua identidade e a identidade da missão que recebeu de Paulo têm fundamento na “justiça e na piedade, na fé e na caridade, na perseverança e na mansidão”, das quais Timóteo não pode desviar-se por mais difícil que seja a luta porque é este o caminho da identificação com Cristo. Como Jesus diante de Pilatos, Timóteo tem de “combater o bom combate da fé”, pois tem uma conquista a fazer “a vida eterna”. No meio das dificuldades deve permanecer e renovar-se a “profissão de fé” que ele fez “perante numerosas testemunhas”.

Para ler o texto evangélico deste domingo convém recordar o que se passa imediatamente antes. No texto do último domingo Jesus terminava dizendo “não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. Lucas adverte que, “os fariseus, como eram avarentos, ouviam as suas palavras e troçavam dele”. A atitude dos fariseus é semelhante à dos ricos de que fala a primeira leitura, despreocupados com os problemas dos outros. É perante esta realidade que Jesus lhes conta a parábola do pobre Lázaro e do rico.

Na parábola, os personagens são caraterizados para despertar a atenção dos leitores e provocar uma identificação que leve à reflexão sobre a própria vida. O rico “vestia de púrpura e linho fino e se banqueteava esplendidamente todos os dias” e o pobre “jazia junto do seu portão, coberto de chagas” com fome, “desejava saciar-se do que caía da mesa do rico”.

Na parábola, Jesus identifica o pobre pelo nome, Lázaro, que significa “Deus ajuda”, confirmando o que diz o salmo, que os pobres atraem o olhar de Deus. E o rico não tem nome, é identificado pelas suas riquezas, o que veste e o que come. Jesus mostra, assim, que ele atrai o olhar dos homens, mas não o olhar de Deus. Há entre os dois um grande abismo chamado indiferença. O rico não vê o pobre porque ele está muito longe do seu estatuto social.

A sorte dos dois homens, diferente na vida, é também diferente na morte, desde logo porque “o pobre morreu e foi colocado pelos Anjos ao lado de Abraão” e o rico também morreu, mas “foi sepultado”. A sorte dos dois homens manteve-os separados até depois da morte. O homem rico tinha decidido um abismo que os separou durante a vida e que não desaparece depois da morte. O abismo é uma decisão dele, que Deus respeita e mantém como consequência depois da morte.

A parábola termina com um aviso para os fariseus. Jesus recorda que, escutar a palavra dos profetas que, como Amós, convidam os homens a serem fiéis à aliança com Deus, é o segredo para converterem a vida num lugar de encontro com os outros e com Deus. Quem não quer escutar não se vai converter nem que veja um morto ressuscitar, como acontecerá com os fariseus depois da ressurreição de Jesus.

Meditação da Palavra

A separação entre ricos e pobres não é uma questão do nosso tempo….

A sociedade em que vivemos procura a todo o custo esconder os dramas humanos, a pobreza, a doença, os refugiados, os imigrantes, os deficientes, para viver de consciência tranquila. Há pessoas que dizem dos pobres que eles não querem trabalhar, dos imigrantes que eles vivem à nossa custa. Há pessoas que entendem que a maneira de poder comer e beber sem problemas de consciência é fingir que não veem os pobres. Há, no mundo de hoje, muitas pessoas invisíveis. Não é uma questão só do nosso tempo, mas uma consequência da riqueza.

O homem dominado pelas riquezas, seduzido pelo comodismo e bem-estar, que gosta de saborear as coisas boas da vida sem problemas de consciência, tem tendência para se tornar indiferente aos outros, aos seus problemas e aos dramas que sucedem a seu lado.

Já era assim no tempo de Amós, como podemos ver na primeira leitura. As suas palavras são um despertar para nós, pois ele questiona as nossas “camas de marfim” que simbolizam o conforto, o consumismo, as distrações e a insensibilidade à desgraça alheia “à ruína de José”.

As palavras de Amós são uma boa oportunidade para compreendermos as palavras de Jesus na parábola que nos é contada por Lucas. O rico, condenado aos tormentos eternos não fez mal ao pobre Lázaro, fez mal a si mesmo. Tinha tudo para poder construir um caminho diferente, se repartisse com o pobre Lázaro, pois tinha riquezas suficientes para não por em risco a sua sobrevivência. No entanto, cego por elas, não conseguiu ver o óbvio, que era dar de comer ao pobre que estava todos os dias sentado à sua porta. As riquezas encerraram-no dentro de si mesmo ao ponto de só se ver a ele mesmo sem olhos para o que estava para lá das paredes do seu egoísmo.

A atitude do homem rico, como a dos poderosos do tempo de Amós e de todos os tempos, é totalmente contrária à de Deus que, como recorda o salmo 145, “faz justiça aos oprimidos, dá pão aos que têm fome e a liberdade aos cativos… ilumina os olhos dos cegos, … levanta os abatidos, … ama os justos… protege os peregrinos, ampara o órfão e a viúva e entrava o caminho aos pecadores”.

A proposta que a palavra de Deus nos faz este domingo não é ficar a contemplar os ricos, reclamando a sua opulência, mas procurar a identificação com Deus abrindo os olhos para ver e as mãos para cuidar dos pobres.

É, aliás, esse o desafio que Paulo lança a Timóteo, o de ser corajoso no testemunho que o identifica com Jesus que, diante de Pilatos, não procurou salvar a própria vida mas deu um verdadeiro testemunho da verdade. Também Timóteo tem que fugir da ganância que desvia da fé e procurar a justiça, a piedade, a fé e o amor como convém a quem abraçou a fé, não como um passeio turístico, mas como um combate “até à aparição de Nosso Senhor Jesus Cristo… o único que possui a imortalidade e habita uma luz inacessível, que nenhum homem viu nem pode ver”.

Rezar a Palavra

Do meu coração insensível sobe até vós a minha súplica: Cura o meu coração, Senhor, para que não me deixe seduzir pelas riquezas e me apaixone pelos pobres a quem tu cuidas com todo o teu amor.

Compromisso semanal

Confirmo o meu coração na pobreza