Um amor que aproxima

Um silêncio cheio de perguntas enchia a sala naquela noite de encontro. Pareciam sábios, convencidos, cheios de si. Trocavam segredinhos entre eles como quem domina o mundo. Prolongavam o silêncio perante a voz que debitava dogmas a saber. Cochichavam como quem não está interessado no mistério anunciado. De repente, uma mão levantada ante a admiração geral. Que irá dizer? Como se atreve? Vai sair asneira. “Tenho uma pergunta…”. Rompeu-se o silêncio, a sala encheu-se de perguntas… eram milhares de perguntas que enchiam uma vida inteira de sentido.

LEITURA I Deut 6, 2-6

Moisés dirigiu-se ao povo, dizendo: «Temerás o Senhor, teu Deus, todos os dias da tua vida, cumprindo todas as suas leis e preceitos que hoje te ordeno, para que tenhas longa vida, tu, os teus filhos e os teus netos. Escuta, Israel, e cuida de pôr em prática o que te vai tornar feliz e multiplicar sem medida na terra onde corre leite e mel, segundo a promessa que te fez o Senhor, Deus de teus pais. Escuta, Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. As palavras que hoje te prescrevo ficarão gravadas no teu coração».

O temor do Senhor não se confunde com o medo, mas tem o seu fundamento no amor. O homem sabe-se amado por Deus e reconhece que os mandamentos do Senhor são manifestação desse amor, de modo que, cumpri-los será benéfico para ele.  

Salmo 17 (18), 2-3.4.47.50-51ab (R. 2)

O salmista afirma o seu amor a Deus “Amo o Senhor” e explica porquê, “Invoquei o Senhor e fiquei salvo dos meus inimigos”. Ele estava às portas da morte e Deus escutou a sua voz e veio em seu auxílio. Este amor primeiro desperta no salmista a necessidade de responder louvando o Senhor “eu Vos louvarei entre os povos”.

LEITURA II Heb 7, 23-28

Irmãos: Os sacerdotes da antiga aliança sucederam-se em grande número, porque a morte os impedia de durar sempre. Mas Jesus, que permanece eternamente, possui um sacerdócio eterno. Por isso pode salvar para sempre aqueles que por seu intermédio se aproximam de Deus, porque vive perpetuamente para interceder por eles. Tal era, na verdade, o sumo sacerdote que nos convinha: santo, inocente, sem mancha, separado dos pecadores e elevado acima dos céus, que não tem necessidade, como os sumos sacerdotes, de oferecer cada dia sacrifícios, primeiro pelos seus próprios pecados, depois pelos pecados do povo, porque o fez de uma vez para sempre quando Se ofereceu a Si mesmo. A Lei constitui sumos sacerdotes homens revestidos de fraqueza, mas a palavra do juramento, posterior à Lei, estabeleceu o Filho sumo sacerdote perfeito para sempre.

O sacrifício de Cristo não se compara com os sacrifícios da Antiga Aliança, porque se trata da entrega da própria vida, no amor a Deus e aos homens, e não de uma ação isolada, sem o compromisso da existência.

EVANGELHO Mc 12, 28b-34

Naquele tempo, aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?». Jesus respondeu: «O primeiro é este: ‘Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças’. O segundo é este: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Não há nenhum mandamento maior que estes». Disse-Lhe o escriba: «Muito bem, Mestre! Tens razão quando dizes: Deus é único e não há outro além d’Ele. Amá-l’O com todo o coração, com toda a inteligência e com todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios». Ao ver que o escriba dera uma resposta inteligente, Jesus disse-lhe: «Não estás longe do reino de Deus». E ninguém mais se atrevia a interrogá-l’O.

O Shemá continua a ser proposta para entrar no reino de Deus. Para Jesus nada pode se colocar acima do amor, a Deus e ao próximo, na resposta ao amor de Deus por nós.

Reflexão da Palavra

Através de três discursos atribuídos a Moisés, o livro do Deuteronómio faz uma releitura dos acontecimentos do Êxodo e da Lei dada por Deus no Sinai, como forma de ensinar e manter a fidelidade de Israel em momentos de crise, como aconteceu tantas vezes ao longo da história de Israel.

O texto da primeira leitura está centrado sobre duas palavras “escuta” e “Israel”. Contando na sua história com muitas situações de recusa de Deus, de revolta e abandono do Senhor que o fez sair da terra do Egito, o povo precisa de escutar e não de abandonar. Por isso, o livro do Deuteronómio repete “escuta, Israel”, para que o povo recorde e reconheça que só o Senhor é Deus, que ele é “o único Senhor“.

A felicidade deste povo, depende do cumprimento destas leis e preceitos, portanto, a única possibilidade é “cuidar e pôr em prática”. Se assim fizer, Israel terá “longa vida”, será feliz e multiplicar-se-á “na terra onde corre leite e mel”.

De que lei se trata? É o Shema, a lei que Deus entregou a Israel e que ensina a reconhecer que há um único Senhor que deve ser amado “com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças”. As palavras desta lei estão “gravadas no teu coração”. Esta lei foi recebida dos pais e deve ser transmitida aos filhos, “repeti-lo-ás aos teus filhos e refletirás sobre eles”. Não é só para cumprir é também para ensinar. Porque o Senhor, é o “Deus de teus pais”.

O salmo 17 é uma grande composição de ação de graças. O salmista viu-se na aflição, esteve mesmo às portas da morte, mas invocou o Senhor e foi atendido. Esta é a razão da ação de graças e a razão da profissão de fé do salmista. Ele começa por afirmar solenemente “amo o Senhor” e depois vai reafirmando com diversas expressões as razões que tem para amar o Senhor. O Senhor é “minha força, minha fortaleza, meu refúgio e meu libertador, meu Deus, auxílio, meu protetor, minha defesa e meu salvador”. O salmista confirma esta proteção com a situação que ele próprio viveu. Estava já às portas da morte, quando o Senhor o salvou, porque “ouviu a sua voz” e atendeu-o. Os inimigos que puseram a sua vida em perigo, não são mais fortes que Deus que veio em auxílio do inocente, por isso o salmista louva o Senhor “eu Vos louvarei entre os povos e cantarei salmos ao vosso nome”.

No final da segunda leitura do domingo passado, o autor da carta aos Hebreus citava o salmo 109 afirmando que Jesus é sacerdote, não segundo o sacerdócio de Aarão, mas segundo o sacerdócio de Melquisedec, “tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec”, que o autor classifica como “sacerdócio eterno”.

De acordo com o autor da carta aos Hebreus o sacerdócio da antiga aliança era limitado porque os sacerdotes não podiam viver para sempre, tinham que oferecer sacrifícios por si próprios por serem pecadores e tinham que repetir anualmente os mesmos sacrifícios porque lhes faltava a eficácia. Pelo contrário Cristo é sacerdote para sempre, porque é eterno, o seu sacrifício foi eficaz, não precisa de se repetir e não tem necessidade de oferecer sacríficos por si mesmo, pois ele, é “santo, inocente, sem mancha, separado dos pecadores e elevado acima dos céus” e por isso pode ser o “sumo sacerdote perfeito para sempre” e “pode salvar para sempre”.

Jesus está em Jerusalém. Depois de derrubar as bancas dos cambistas e expulsar do templo os que ali faziam comércio, Jesus, enfrenta as forças religiosas do tempo, sumos sacerdotes, doutores da Lei, anciãos, fariseus e saduceus, que o questionam a fim de o apanhar em falso. As respostas de Jesus revelam a sua autoridade e deixam admirados os que o escutam. É, então, que um escriba, conhecedor da Lei, se atreve a ir ao encontro de Jesus e a questioná-lo sobre “qual é o primeiro de todos os mandamentos?”. A sua questão é pertinente. Ele quer saber qual é o mandamento, sem o qual, o cumprimento de todos os outros não faz sentido, por faltar o essencial.

Ao contrário de outros, este escriba parece ser um homem bom, que pretende honestamente uma resposta que o tranquilize na sua vida. A questão colocada faz parte das discussões diárias entre os doutores da Lei. Sabendo que em Israel, no tempo de Jesus, havia seiscentos e treze mandamentos, faz sentido perguntar, qual destes é que não se deve mesmo deixar por cumprir.

A resposta de Jesus ao escriba não tem novidade, pois, todo o judeu conhece o Shemá e o pronuncia várias vezes ao dia, “escuta Israel…”. O fundamental do Shemá é a profissão de fé no único Deus e o desejo sincero de o amar com todas as forças. Com isto, Jesus, recorda que o fundamento da relação com Deus está no amor e não no cumprimento da Lei nem nos sacrifícios. Uma ideia já deixada pelos profetas quando diziam que o Senhor não quer sacrifícios, mas misericórdia (Os 6,6), não pretende que rasguem as vestes, mas o coração (Joel 2,13). Amar a Deus significa renunciar à idolatria abandonando todos os outros deuses.

Entretanto, Jesus, apressa-se a recordar que há outro mandamento, o segundo, que também tem que ser cumprido, “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Também aqui não há novidade, pois, esta afirmação é já conhecida de Lv 19,18. O amor ao próximo aparece no livro do Levítico como uma resposta a Deus que é Santo “sede santos, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2).

Trata-se de dois mandamentos que se incluem no mesmo amor, porque não é possível separar o amor a Deus do amor aos irmãos. É importante ter em conta, também, que, tratando-se do amor, não pode, em verdade considerar-se um mandamento. O amor é resposta ao amor e não uma obrigação. Israel foi alvo do amor de Deus, “não por ser mais numeroso que os outros povos”, mas “porque o Senhor vos ama” e, por isso, “vos tirou e vos salvou da casa da escravidão, da mão do Faraó, rei do Egito”. Trata-se, portanto, de responder com amor, a este amor de Deus.

O escriba que interroga Jesus, perante a resposta dada, reconhece que Deus é só um e que amá-lo e amar o próximo “vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios”, inserindo-se, assim, no pensamento de Jesus. É bom notar que, para Jesus, o amor a Deus e ao próximo andam unidos e que o próximo são todos os homens, sem qualquer exclusão. 

Jesus conclui que, este escriba, não está longe da proposta que ele faz a todos, quando anuncia o reino de Deus. No entanto, não estar longe não é estar dentro, por isso, o escriba ainda terá que fazer algo para se configurar com a proposta de Jesus.

Meditação da Palavra

Jesus chegou a Jerusalém e o evangelho dá um salto e leva-nos do capítulo dez onde escutámos o encontro de Jesus com o cego, para o capítulo doze a fim de nos fazer participar no diálogo de Jesus com um escriba. Este homem, esteve atento às palavras de Jesus quando ele respondia às questões postas pelas autoridades do templo e, agora, atreve-se a questioná-lo.

Não é fácil fazer perguntas a alguém, e menos ainda sobre questões tão pertinentes como a nossa relação íntima com Deus. Há até quem julgue que questionar a nossa fé, pôr em causa alguma verdade ou duvidar, é já perder a fé. Há quem sinta que, por ter dúvidas está a pecar e não é digno de se apresentar diante de Deus. Este homem mostra que, as dúvidas são importantes e revela a coragem que todos devemos ter de as apresentar a quem pode responder com sinceridade.

O fariseu tem dentro dele uma inquietação nascida nas tertúlias com os seus companheiros. Trata-se de saber qual é o mandamento que não podemos de modo algum deixar por cumprir. “Qual é o primeiro de todos os mandamentos?”. Jesus, ao propor o amor, está a dizer que a Lei, sendo importante, não tem prioridade. O mais importante não pode ser apresentado como uma lei, uma norma ou mandamento. O mais importante é o amor e não se pode obrigar ninguém a amar. Amar é algo que surge espontaneamente como resposta ao amor.

Jesus coloca diante do escriba o Shemá, a profissão de fé, o Credo dos judeus, no qual se reconhece, repetindo muitas vezes ao longo do dia, que Deus é um só e não há outro e que este Deus manifesta-se amando livre e gratuitamente, porque não ama o que é grande, o que é forte, o que merece ser amado. Israel não é nem o povo mais numeroso nem o mais forte, de modo que Deus o amasse por reconhecimento. É precisamente a sua pequenez, pobreza e fraqueza que o faz compadecer-se deste povo esmagado às mãos do Faraó, no Egito. Foi Deus quem lhe deu a graça de poder ver que só “o Senhor, é Deus e que não há outro além dele” (Dt 4,35).

Do mesmo modo Deus “fez-te ouvir a sua voz para te instruir” (Dt 4,36). É escutando que se chega ao conhecimento do amor e se desperta todo o ser para responder amando. É isso que diz o Shemá. “Escuta“ e reconhecerás que Deus é um só, que este é quem te tirou do Egito, rejeita a idolatria não permitindo que na tua vida existam outros deuses porque não são dignos do teu amor.

Escuta“ e desperta em ti a necessidade de responder do mesmo modo, amando como és amado.

Escuta“ e aprende a amar com todas as tuas faculdades, “com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças”, não penas com palavras mas de modo concreto, a partir das decisões do coração, iluminadas pela alma, discernidas na inteligência e tornadas realidade nas ações.

Um amor que responde ao amor de Deus, não deixa os outros de fora. Eles fazem parte do dinamismo do amor divino. Por isso, antes de todos os sacrifícios e holocaustos, antes de tudo o que se possa pensar fazer a Deus, está o amor ao próximo. Deste modo o amor a Deus acontece já ali no amor ao próximo.

É o amor a Deus e ao próximo, nascido da escuta e livre de todas as discriminações e exclusões, que introduz no reino de Deus aqueles que aceitam a proposta de Jesus para o seguir na dinâmica da vida entregue. Esta dinâmica está para além das muitas coisas que se podem fazer, porque não se trata de uma ação, mas de uma atitude permanente da vida, ao jeito de Jesus, que caminha para a cruz sempre com o olhar atento e as mãos estendidas para os pobres, os cegos, os coxos, os marginalizados.

Não se trata de um sacrifício ou holocausto que depois de realizado nos deixa de consciência tranquila, mas a proposta de uma existência inquieta que não se deixa apaziguar diante das injustiças, das discriminações e das desigualdades. Trata-se de uma permanente agitação interior que move no sentido do encontro com aqueles que, por si mesmos, não conseguem atingir os parâmetros da dignidade humana.

O cristão tem em Jesus o modelo daquele amor proposto no Shemá, porque ele traduz com perfeição, na sua vida, a síntese entre o amor ao Pai e o amor aos homens, até ao extremo dom de si mesmo. Em Cristo, o cristão aprende que amar é viver para Deus e para o outro, toda a vida e de modo radical.

Rezar a Palavra

Depois de escutar a tua palavra, Senhor, sinto desejo de aprender a amar. Quero poder dizer como o salmista, com toda a minha voz, com toda a minha alma, do fundo do meu coração, em todas as circunstâncias da minha vida: “Amo o Senhor!”. É contigo que quero aprender a amar.

Compromisso semanal