Mistagogia da Palavra
Há pessoas que se consideram cristãs porque observam certas práticas e cumprem certos ritos. Serão estas manifestações exteriores de religiosidade ou mesmo do culto sagrado a decidir quem realmente é discípulo de Cristo? Não corremos o risco de também sermos fariseus quando não distinguimos o essencial do mistério de Cristo das diversas formas históricas e culturais em que ele se manifesta?
As leituras de hoje põem-nos de sobreaviso contra o perigo de pôr no mesmo plano os mandamentos de Deus e as tradições dos homens ou de nos limitarmos ao exterior.
A 1ª leitura é do Livro do Deuteronómio. Começa por afirmar que a Lei de Deus é sagrada, tem um valor absoluto e não se pode mudar, porque é obra de Deus. Os perigos a evitar são dois: tirar-lhe qualquer coisa ou encurtá-la, eliminando algumas das suas exigências mais difíceis, ou então, ao contrário, acrescentar-lhe novas disposições inventadas pelo homem.
A 2ª leitura é da Epístola de São Tiago. Esta Epístola vai acompanhar-nos durante cinco domingos. O trecho de hoje trata do tema da palavra de Deus. Primeiro é necessário escutá-la. Mas não basta escutá-la para obter a salvação. É necessário “acolhê-la com docilidade”. Se o coração não estiver disposto a converter-se e a deixar transformar-se, é como se nunca tivesse sido escutada. Finalmente Tiago esclarece que a verdadeira religião consiste em “socorrer os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se puro neste mundo”.
O Evangelho é de São Marcos. Depois do parêntesis dos últimos cinco domingos, retoma-se a leitura de Marcos. O trecho de hoje mostra-nos como os mestres de Israel tinham subvertido o mandamento de Deus com as suas tradições e como faziam com que a pureza do homem consistisse na observância de prescrições inventadas por eles. Os escribas tinham introduzido toda uma série interminável de regrazinhas, de disposições minuciosas, de preceitos rígidos. Jesus chama a atenção para a única coisa que interessa a Deus: a pureza do coração.
A Palavra do Evangelho
Evangelho Mc 7, 1-8.14-15.21-23
Naquele tempo, reuniu-se à volta de Jesus um grupo de fariseus e alguns escribas que tinham vindo de Jerusalém. Viram que alguns dos discípulos de Jesus comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar. – Na verdade, os fariseus e os judeus em geral não comem sem ter lavado cuidadosamente as mãos, conforme a tradição dos antigos. Ao voltarem da praça pública, não comem sem antes se terem lavado. E seguem muitos outros costumes a que se prenderam por tradição, como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre -. Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus: «Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos, e comem sem lavar as mãos?». Jesus respondeu-lhes: «Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim. É vão o culto que Me prestam, e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’. Vós deixais de lado o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens». Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão e começou a dizer-lhe: «Escutai-Me e procurai compreender. Não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro. O que sai do homem é que o torna impuro; porque do interior do homem é que saem as más intenções: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem do interior do homem e são eles que o tornam impuro».
Caros amigos e amigas, continuamos em modo de refeição. Neste Domingo o Senhor provoca o nosso olhar, crítico e saudoso, e propõe uma limpeza interior ao nosso coração para melhor experimentarmos a refeição divina com um paladar sempre renovado.
Interpelações da Palavra
À volta de Jesus
Pelos vistos, os fariseus e escribas também “seguiam Jesus”. Procuravam-no e olhavam atentamente todos os seus gestos e atitudes. Reuniam-se à volta dele e cumpriam escrupulosamente e zelosamente todas as prescrições antigas, conforme a tradição. De tal forma eram “perfeitos” que lhes causava inquietação a falta de cumprimento dos discípulos de Jesus. Caros amigos e amigas, são tantas as vezes que estamos também à volta de Jesus e o procuramos assim, de modo “perfeito”, em relação aos outros. O nosso olhar de medição, com a régua da tradição, impede-nos de ver o essencial, deixando de ser contemplativos para ser “mirones”. O nosso olhar de medição, com a balança do preceito, ofusca a novidade e a liberdade do amor, deixando de ser misericordioso para ser “assassino”. Urge escolher uma de duas atitudes na ceia de cada dia com o Senhor: à volta dele de mãos e louça, limpas e intocáveis, ou à mesa com Ele conscientes de que Só Ele nos pode purificar por dentro. Qual escolhemos?
O coração está longe
“Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.” O cristianismo não é um aglomerado de prescrições e regras, mas uma relação de amor com Cristo. Sem uma disponibilidade constante à novidade de Deus e uma escuta atenta da Sua Palavra que nos renova, o culto que prestamos torna-se vão e as doutrinas que ensinamos no altar e nas catequeses não passam de preceitos nossos. Não podemos deixar-nos escravizar pelas tradições, pelo “sempre foi assim”. Hoje, talvez chegássemos muito escandalizados junto de Jesus para acusarmos “de mãos muito limpas”: já nada é como antes, antes é que era bom, estes novos dão cabo da religião, tiram-nos a fé com estas modernices . E quem nos fez juízes? Não estraremos convertidos em “fiscais da fé”, como nos alerta o Papa Francisco? O nosso coração continuará sempre longe de Deus, enquanto colocarmos a tradição ou o culto, acima do mandamento do amor e da criatividade do fogo do Espírito.
Duche ao interior
O que sai do homem é que o torna impuro, não o que vem de fora. Há dúvidas? Jesus é tão direto e esclarecedor. Verdadeiro e sábio Mestre! É de dentro de nós que saem as más intenções. Não é o roubo do outro que me faz ladrão, nem o adultério do vizinho que me torna infiel. São as palavras e os gestos que saem de mim que constroem ou destroem o Reino. As mãos e os pratos que preciso lavar para fazer parte do banquete é mesmo o meu coração. É urgente um duche de misericórdia no nosso coração para que o nosso olhar seja limpo e terno, acolhedor e grato.
Só com o coração limpo pela misericórdia de Deus e com as mãos vazias de preconceitos poderemos, caros amigos e amigas, saborear o Pão e o Vinho que o Senhor prepara para nós e fazer festa, ser Evangelho.
Rezar a Palavra e contemplar o Mistério
Senhor, purifica os meus lábios para melhor te dizer e anunciar ao mundo de hoje.
Senhor, limpa as minhas mãos para gratuitamente Te oferecer e partilhar nas periferias.
Senhor, cura o meu olhar para livremente Te contemplar em cada irmão.
Senhor, lava o meu coração para alegremente te receber como alimento.
Senhor, esvazia o meu querer para profeticamente acolher a novidade do Teu amor.
Viver a Palavra
Vou libertar o meu olhar de críticas e preconceitos.