Mistagogia da Palavra
Onde está a verdadeira sabedoria? A lógica da cruz não é a do mundo, e o homem nasce e cresce assimilado à do mundo. Quando lhe é anunciada a “loucura da cruz”, é normal, e até mesmo salutar, que hesite, que seja tomado por dúvidas e perplexidades e que se sente a reflectir sobre a escolha a fazer. O cristão não aspira à dor, mas ao amor. Todavia, quando o amor é levado até ao extremo, chega ao dom da vida. Por isso é que a cruz, de sinal de morte, se tornou símbolo da vida.
A 1ª leitura é do livro da Sabedoria. A sabedoria de que fala a Bíblia não deve ser identificada com a erudição, o saber, a instrução recebida na escola. Para fazer escolhas justas e ponderadas, é necessária a “sabedoria”, isto é, a luz que vem de Deus. Não é fácil decidir, de forma livre e sábia, caminhar por caminhos direitos, se Deus não enviar do alto a sua luz, se não comunicar a sua sabedoria.
A 2ª leitura é de S. Paulo a Filémon. Um escravo foge do domínio do seu senhor e refugia-se junto de S. Paulo, que estava na prisão. Uma vez convertido e baptizado, é enviado por S. Paulo ao senhor, mas acompanhado de uma carta, ditada pelo coração, em que pede a Filémon (o senhor), que, segundo as exigências evangélicas, receba o escravo como irmão. Este espírito novo, evidenciado por esta maravilhosa carta, foi preparando as transformações sociais que levaram à supressão da escravatura.
O Evangelho é segundo S. Lucas. O que define especificamente o discípulo de Jesus? A opção responsável e definitiva por Cristo e pelo seu Evangelho é o que especifica o cristão, ou seja, o discípulo de Cristo, tornando-o diferente nos critérios e nos comportamentos. Trata-se do que caracteriza e não da mera pertença socio-religiosa à Igreja. Cristão e discípulo de Cristo são sinónimos. Os conselhos evangélicos, as advertências e apelos de Jesus são para todos. Seguir a Cristo como discípulo tem um preço. É o que hoje Jesus nos propõe: a entrega total e a plena disponibilidade para Deus, pondo o valor do seguimento do Reino de Deus acima de todo o afecto humano.
A Palavra do Evangelho
Evangelho Lc 14, 25-33
Naquele tempo, seguia Jesus uma grande multidão. Jesus voltou-Se e disse-lhes: «Se alguém vem ter comigo, e não Me preferir ao pai, à mãe, à esposa, aos filhos, aos irmãos, às irmãs e até à própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não toma a sua cruz para Me seguir, não pode ser meu discípulo. Quem de vós, desejando construir uma torre, não se senta primeiro a calcular a despesa, para ver se tem com que terminá-la? Não suceda que, depois de assentar os alicerces, se mostre incapaz de a concluir e todos os que olharem comecem a fazer troça, dizendo: ‘Esse homem começou a edificar, mas não foi capaz de concluir’. E qual é o rei que parte para a guerra contra outro rei e não se senta primeiro a considerar se é capaz de se opor, com dez mil soldados, àquele que vem contra ele com vinte mil? Aliás, enquanto o outro ainda está longe, manda-lhe uma delegação a pedir as condições de paz. Assim, quem de entre vós não renunciar a todos os seus bens, não pode ser meu discípulo».
Caros amigos e amigas, as palavras do Evangelho de hoje são perigosas e de extrema exigência. Falam-nos da seriedade, da fé e do ser discípulo. O convite não é a escolha entre a vida ou Jesus, entre a família ou Jesus, mas é a opção entre a vida com Jesus ou a vida sem Ele.
Ser discípulo
Os números da multidão nunca exaltaram o Nazareno. Em vez do aplauso, Jesus prefere a totalidade do coração. As suas palavras são duras, quase para desencorajar quem lhe segue. Ele não esconde as dificuldades, nem promete a lua. Ser cristão não é um passeio florido. Não é uma questão de ornamento dominical ou alguma devoção, mas é meter a fé dentro de tudo, da vida e afectos, atitudes e bens.
A proposta de Jesus parece escandalosa e absurda! Mas será a fé desumana, um sacrifício sem sentido? A lógica da cruz – que não é a lógica do sofrimento – é a lógica de quem confia, se dá e pode amar até ao ponto de dar a própria vida. Um amor que vai além de um afecto, além da família, além de qualquer alegria ou satisfação dos haveres. Pois, “Deus é Deus porque nada possui” (Barsanufio).
Mesmo se alguém se afasta, leva consigo uma forte interrogação, afasta-se com o coração intrigado. Ser cristão é uma escolha, não uma obrigação. É o acolhimento de uma proposta.
Os amores conduzem a vida
O mais importante nem é a renúncia, mas a conquista. No Evangelho qualquer convite à renúncia é sempre motivado por um mais, a multiplicação em cêntuplos, de videiras podadas mas recheadas de cachos. Até a pobreza é para partilhar com os pobres: a renúncia é sempre motivada por um dom e por um amor maior, para que nos tornemos naquilo e naquele que amamos.
A vida avança pelos amores e paixões que nos encantam, não pelas renúncias ou sacrifícios que suportamos. Dizia Goethe que “aprende-se apenas aquilo que se ama”. Nós tornamo-nos aquilo que contemplamos com o olhar do coração. O cristão segue o amor de Cristo doado totalmente na cruz.
Amar é uma arte
A vida é muito mais do que construir uma torre ou ir à guerra, onde os cálculos, projectos, orçamentos, meios… são necessários. Na vida nem sempre se pensa assim. O perigo é que podemos viver no campo onde está escondido o tesouro sem o saber e sem o encontrar.
A proposta evangélica não é o sofrimento. A cruz equivale a amar até ao fim. Seguir Jesus é conhecer o único vocabulário do amor dado sem condições. O amor é sempre um trabalho, uma canseira, uma ascese, um acontecimento de liberdade. Bem sabemos que todas as coisas têm um preço e este é proporcional ao valor, à raridade, ao empenho e à genialidade que é pedido para o realizar. A vida tem um valor incomensurável. Não se vende nem se negoceia. Só se pode dar. E a fé, essa, não está em saldo! Consuma-se! E isso, caros amigos e amigas, é Evangelho!
Viver a palavra
Vou cuidar de que o Senhor seja a prioridade do meu coração.
Rezar a palavra
Senhor, que me convidas a nada antepor ao amor por ti
faz que Te siga com um coração unificado.
Senhor, que me convidas a tomar cada dia a minha cruz
faz que Te siga com um coração livre.
Senhor, que me convidas a renunciar a todos os bens
faz que Te siga com um coração pobre.