Aprender a dizer ‘Pai’

Ninguém mais esqueceu o dia em que, da boca inesperada daquele menino saiu um quase inaudível som que a todos surpreendeu: ‘Pai’. Ele disse ’Pai’. E não querendo ainda acreditar começaram todos a dizer ‘Pai! Pai! Pai!’ para ver se ele repetia. É mesmo verdade, ele já sabe dizer ‘Pai’. Ele já era filho, mas agora diz ‘Pai’. Ele já era Pai, mas agora foi reconhecido pelo filho.

Naquele dia começou uma experiência que transformou a vida de todos unindo-os num mesmo coração, num mesmo amor. Quando hoje recordam aquele dia, sentem o ridículo perante a grandeza de coração que aconteceu entre eles. Parece inacreditável que algo tão simples, tão banal, tão insignificante, tivesse sido a origem de um amor que não acaba nunca entre aquele pai e aquele filho.

LEITURA I Gn 18, 20-32

Naqueles dias, disse o Senhor:
«O clamor contra Sodoma e Gomorra é tão forte,
o seu pecado é tão grave,
que Eu vou descer para verificar
se o clamor que chegou até Mim
corresponde inteiramente às suas obras.
Se sim ou não, hei de sabê-lo».
Os homens que tinham vindo à residência de Abraão
dirigiram-se então para Sodoma,
enquanto o Senhor continuava junto de Abraão.
Este aproximou-se e disse:
«Irás destruir o justo com o pecador?
Talvez haja cinquenta justos na cidade.
Matá-los-ás a todos?
Não perdoarás a essa cidade,
por causa dos cinquenta justos que nela residem?
Longe de Ti fazer tal coisa:
dar a morte ao justo e ao pecador,
de modo que o justo e o pecador tenham a mesma sorte!
Longe de Ti!
O juiz de toda a terra não fará justiça?».
O Senhor respondeu-lhe:
«Se encontrar em Sodoma cinquenta justos,
perdoarei a toda a cidade por causa deles».
Abraão insistiu:
«Atrevo-me a falar ao meu Senhor,
eu que não passo de pó e cinza:
talvez para cinquenta justos faltem cinco.
Por causa de cinco, destruirás toda a cidade?».
O Senhor respondeu:
«Não a destruirei se lá encontrar quarenta e cinco justos».
Abraão insistiu mais uma vez:
«Talvez não se encontrem nela mais de quarenta».
O Senhor respondeu:
«Não a destruirei em atenção a esses quarenta».
Abraão disse ainda:
«Se o meu Senhor não levar a mal, falarei mais uma vez:
talvez haja lá trinta justos».
O Senhor respondeu:
«Não farei a destruição, se lá encontrar esses trinta».
Abraão insistiu novamente:
«Atrevo-me ainda a falar ao meu Senhor:
talvez não se encontrem lá mais de vinte justos».
O Senhor respondeu:
«Não destruirei a cidade em atenção a esses vinte».
Abraão prosseguiu:
«Se o meu Senhor não levar a mal,
falarei ainda esta vez:
talvez lá não se encontrem senão dez».
O Senhor respondeu:
«Em atenção a esses dez, não destruirei a cidade».

Numa preocupação genuína e desinteressada pelos outros, Abraão dialoga com Deus sobre o destino de Sodoma, onde o pecado afastou os homens de Deus. Abraão insiste, numa confiança a toda a prova, para que Deus, que é justo, não castigue o justo por causa do pecador.

Salmo 137 (138), 1-3.6-8 (R. 3a)

O salmista louva o Senhor e dá-nos a conhecer a sua experiência. No meio da tribulação invocou o Senhor e foi atendido. O Senhor deu-lhe a força e a coragem que ele precisava para confiar que seria atendido e não deixado nas mãos dos inimigos.

LEITURA II Col 2, 12-14

Irmãos:
Sepultados com Cristo no batismo,
também com Ele fostes ressuscitados
pela fé que tivestes no poder de Deus,
que O ressuscitou dos mortos.
Quando estáveis mortos nos vossos pecados
e na incircuncisão da vossa carne,
Deus fez que voltásseis à vida com Cristo
e perdoou-nos todas as nossas faltas.
Anulou o documento da nossa dívida,
com as suas disposições contra nós;
suprimiu-o, cravando-o na cruz.

Para Paulo o Batismo é o ponto central da fé cristã, porque nele nos unimos a Cristo na morte e na ressurreição. Ali nascemos de novo pela misericórdia de Deus que nos liberta do pecado e da morte, concedendo-nos uma nova vida em Cristo.

EVANGELHO Lc 11, 1-13

Naquele tempo,
estava Jesus em oração em certo lugar.
Ao terminar, disse-Lhe um dos discípulos:
«Senhor, ensina-nos a orar,
como João Batista ensinou também os seus discípulos».
Disse-lhes Jesus:
«Quando orardes, dizei:
‘Pai,
santificado seja o vosso nome;
venha o vosso reino;
dai-nos em cada dia o pão da nossa subsistência;
perdoai-nos os nossos pecados,
porque também nós perdoamos a todo aquele que nos ofende;
e não nos deixeis cair em tentação’».
Disse-lhes ainda:
«Se algum de vós tiver um amigo,
poderá ter de ir a sua casa à meia-noite, para lhe dizer:
‘Amigo, empresta-me três pães,
porque chegou de viagem um dos meus amigos
e não tenho nada para lhe dar’.
Ele poderá responder lá de dentro:
‘Não me incomodes;
a porta está fechada,
eu e os meus filhos já nos deitámos;
não posso levantar-me para te dar os pães’.
Eu vos digo:
Se ele não se levantar por ser amigo,
ao menos, por causa da sua insistência,
levantar-se-á para lhe dar tudo aquilo de que precisa.
Também vos digo:
Pedi e dar-se-vos-á;
procurai e encontrareis;
batei à porta e abrir-se-vos-á.
Porque quem pede recebe;
quem procura encontra;
e a quem bate à porta, abrir-se-á.
Se um de vós for pai e um filho lhe pedir peixe,
em vez de peixe dar-lhe-á uma serpente?
E se lhe pedir um ovo, dar-lhe-á um escorpião?
Se vós, que sois maus,
sabeis dar coisas boas aos vossos filhos,
quanto mais o Pai do Céu
dará o Espírito Santo àqueles que Lho pedem!».

O pedido que os discípulos fazem a Jesus brota da consciência de que não rezam como ele. Na sua resposta Jesus revela que a Deus não se reza como a um estranho e que Deus não nos trata como um amigo. Deus é Pai e escuta-nos a partir do amor incondicional, sempre pronto a dar-nos o mais importante, o Espírito Santo.

Reflexão da Palavra

O texto da primeira leitura deste domingo é continuação do domingo passado. No final do encontro com os três personagens que anunciam o nascimento de Isaac, Abraão acompanha-os para se despedir. Aqueles homens vão a Sodoma e Gomorra saber se é verdade o que chegou aos ouvidos de Deus, que “o seu pecado é grave”.

Os três homens que Abraão identifica com a presença de Deus, afastam-se, mas Deus permanece com ele. Abraão é reconhecido por Deus como um fiel companheiro com quem fez uma aliança em favor de toda a humanidade, “eu abençoarei nele todos os povos da terra” (18,18). Como tal, Deus questiona-se se deve ocultar ou fazer Abraão participante do seu plano. Falando consigo mesmo, Deus diz “ocultarei a Abraão o que vou fazer?” (20, 17). E no texto deste domingo Deus fala a Abraão dizendo: “o clamor contra Sodoma e Gomorra é tão forte, o seu pecado é tão grave que Eu vou descer para verificar se o clamor que chegou até Mim corresponde inteiramente às suas obras”. Com estas palavras Abraão sente-se implicado no plano de Deus. Ele sabe que Deus é justo e bom, mas não pode permitir que, levado pela ira por causa do pecado, Deus cometa o erro de castigar o justo por causa do pecador.

A partir daqui o texto desenvolve-se como uma longa negociação entre Abraão e Deus. Abrão atreve-se a interferir nos planos de Deus e a negociar a sorte dos homens. Para Abraão a justiça mede-se pelo número de justos necessários para impedir Deus de castigar os pecadores. E chegou à conclusão que dez justos são insuficientes para o fazer. Irremediavelmente Deus tem que aplicar a sua justiça por falta de contrapeso na balança entre bons e maus. E os dois separam-se “o Senhor afastou-se, e Abraão voltou para a sua morada” (v. 33).

A negociação entre Abraão e Deus revela uma nova forma de conhecer Deus e de se relacionar com ele. Os planos de Deus são também planos do homem e este pode e deve estar implicado neles. Mais, pode mesmo interferir na sua conclusão. Abraão tem um papel no plano de Deus para abençoar todos os povos e Abraão assume esse papel intercedendo por aquelas cidades pagãs, porque pode ali haver homens justos. Aqui se inspira a oração de intercessão de que fala Jesus no evangelho.

O salmo 138 é uma oração de ação de graças, na qual o salmista reconhece o poder salvador de Deus e afirma que, quando conhecerem a Deus todos o hão de louvar. A experiência do salmista é de alguém que no meio da angústia invoca o Senhor e é atendido. Ao ver que Deus, não apenas o atende, mas vai “mais além das tuas promessas”, “atendeste-me e aumentaste as forças da minha alma”, toma uma atitude, “inclino-me voltado para o teu templo santo” em agradecimento, porque “conservas-me a vida” e “a tua mão direita me salva” e conclui desta experiência que, “o Senhor tudo fará por mim”.

Preocupado com os cristãos de Colossos, Paulo adianta que a salvação já está à nossa disposição porque já fomos salvos por Cristo. Na cruz foi anulado “o documento da nossa dívida, com as suas disposições contra nós”. Já ninguém virá exigir o pagamento da nossa dívida, está saldada na cruz de Cristo, porque assim é o amor de Deus. Pelo sacrifício de um só todos fomos justificados.

De que modo participamos nós desta benevolência de Deus para com os homens? Pela participação na morte e ressurreição de Cristo. “Sepultados com Cristo no batismo, também com Ele fostes ressuscitados pela fé que tivestes no poder de Deus”. Passámos, então, da morte à vida. Antes “estáveis mortos nos vossos pecados”, mas “Deus fez que voltásseis à vida com Cristo”.

Esta salvação está já ao alcance de todos os que, pela fé e pelo Batismo, voltem à vida com Cristo mediante o perdão de todas as faltas.

O evangelho é um ensinamento de Jesus sobre a oração, provocado pelo pedido dos apóstolos: “Senhor, ensina-nos a orar”. Depois de escutarmos as palavras de Jesus no ‘Pai Nosso’, na parábola e sobre a confiança, percebe-se que, rezar não é uma teoria que se aprende, mas uma relação que se vai construindo cada vez mais através do encontro.

Quando Jesus ensina o Pai nosso, está a dizer que Deus é Pai e rezar é estar com Deus como um filho está com o Pai. Pela oração tornamo-nos um filho que se interessa pelo Pai e o quer conhecer como ele é, a sua identidade, o seu ser mais profundo, a sua verdade e os seus interesse e ocupações, até querer colaborar no projeto do seu reino e desejar ser como ele, Santo. Rezar é também pedir as coisas de cada dia, o pão, a ajuda para chegar a ser como o Pai e para não falhar às suas expetativas.

Nesta relação paternal, Deus sabe tudo sobre os filhos e sabe do que eles têm necessidade. Deus não é como um amigo que se levanta aborrecido para dar o que lhe pedimos por já não suportar a nossa impertinência. Deus é um Pai que dá tudo o que é necessário aos filhos: “o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que Lho pedem”, ou seja, “o Senhor tudo fará por mim”, como diz o salmista.

Por conhecer esta disponibilidade de Deus, Jesus insiste para pedirmos, procurarmos e batermos, porque ele sabe que “quem pede recebe; quem procura encontra e a quem bate à porta, abrir-se-á”, não na submissão de um escravo, mas na confiança de quem tem a dignidade de filho.

Meditação da Palavra

“Senhor, ensina-nos a rezar

Depois de ensinar o amor ao próximo e a escuta da palavra como atitudes fundamentais na vida dos seus discípulos, Jesus apresenta como terceira atitude, a oração. O discípulo de Jesus faz como ele, reza continuamente ao Pai com confiança.

Tudo começa com Jesus a rezar. A sua atitude surpreendeu os discípulos por mais de uma vez, pois era com frequência que Jesus se retirava para estar a sós com o Pai. Naquele dia perderam a vergonha e pediram: “Senhor, ensina-nos a rezar”.

Têm como expetativa uma lição sobre a oração, alguma teoria, o ensino de uma quantas palavras que eles possam repetir nos seus diálogos com Deus e os identifiquem com o mestre. Jesus, porém, surpreende-os começando por dizer “quando orardes, dizei: ‘Pai” e não adianta continuar enquanto não estiver interiorizada esta primeira realidade. Primeiro toma consciência que Deus é Pai e que é teu Pai, até perceberes que é Pai de todos e chegares a confiar nele como uma criança. Para chegar a esta confiança é necessário dizer muitas vezes ‘Pai’ num encontro que se torna relação, numa relação que se torna afeto. Primeiro ‘Pai, depois ‘meu Pai’ e finalmente ‘Pai nosso’, num crescendo de consciência, relação, confiança e entrega.

Foi assim com o nosso pai terreno. Tudo começou quando dissemos pela primeira vez ‘Pai’. Foi depois de terem insistido muito connosco para o dizermos. No dia em que saiu pela primeira vez, todos se riram de alegria e nós participámos dessa alegria com uma gargalhada. Se hoje a nossa relação com o pai continuasse a ser apenas isso, seria ridícula, mas foi ali que tudo começou.

Com Deus é o mesmo. A oração começa por dizer ‘Pai’ até que o coração se enche quando soam as palavras. Mas não fica por aqui, continua no conhecimento íntimo, próximo, contínuo com o Pai que é Santo, e no interesse por tudo o que lhe pertence, o seu reino, e pelo lugar onde habita, o céu, dispondo-se a cuidar das suas coisas com o mesmo interesse e a ser como ele, santo em todas as coisas. Ser bom, justo e “misericordioso como o Pai que está nos céus é misericordioso” (Lc 6,36), ao ponto de perdoar sempre, porque “se perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai celeste vos perdoará a vós”.

Este Pai não é como um amigo a quem se recorre a altas horas da noite, numa urgência, numa aflição ou numa situação de grande angústia e que só nos atende para não o incomodarmos mais, como bem recorda Jesus na parábola: “Se ele não se levantar por ser amigo, ao menos, por causa da sua insistência, levantar-se-á para lhe dar tudo aquilo de que precisa”. Também não é o juiz que coloca nos dois pratos da balança o bom e o mau para justificar a condenação ou o perdão. O Pai responde por amor e aquele que confia no Pai sabe que “o Senhor tudo fará por mim”, por isso, vai “mais além das tuas promessas”, como diz o salmista.

Em Cristo, o Pai vai até à cruz por amor, como ensina Paulo. Enquanto Abraão entende que dez homens justos não são suficientes para salvar uma cidade e abandona as conversações com Deus por perceber que não é possível negociar mais, Deus, o Pai, vai ao limite de considerar que um só justo, Cristo, é quanto basta para salvar toda a humanidade, “anulou o documento da nossa dívida, com as suas disposições contra nós; suprimiu-o, cravando-o na cruz”.

A oração de Abraão ensina-nos esta proximidade com Deus, a nossa participação nos seus planos, mas é em Cristo que aprendemos a oração que vai até aos limites do amor divino, quando na cruz, diz ao Pai com toda a confiança: “perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. Um perdão universal que tem como intermediário o próprio filho de Deus, aquele que pode ensinar aos homens a relação filial e incondicional com Deus.

O discípulo de Jesus aprende a dizer Pai e dispõe-se a entrar na intimidade de Deus até partilhar com ele o seu plano de salvação para toda a humanidade. E no íntimo do Pai encontra-se com todos os homens e reconhece que todos são seus irmãos, pelos quais vale a pena interceder como Abraão e dar a vida como Jesus. Nesta experiência o discípulo compreende que rezar não é dizer palavras, mas implicar a vida toda numa relação de amor que faz chegar a todos a vida nova da ressurreição.

Rezar a Palavra

Procuro as palavras para falar contigo e nem sempre encontro. Quero louvar-te e parece-me pobre a forma como o faço. Preciso de pedir e não sei que postura assumir para estar diante de ti. Ensina-me a rezar. Coloca na minha boca as palavras, no meu coração os sentimentos, na minha atitude a determinação. Reza tu em mim para que me envolva na grandeza do amor e do mistério.

Compromisso semanal

Aprendo a confiança de Abração e de Jesus.