O amor inteiro
Todos os dias, ela deixa a casa e percorre as mesmas ruas. Leva consigo um sorriso suave e um olhar meigo e doce, marcas que a tornaram conhecida por todos. O seu percurso habitual inclui a padaria, o mercado, a leitaria. Faz a encomenda dos bolos para o fim de semana na pastelaria, deixa os sapatos no sapateiro, recolhe os fatos na lavandaria e, finalmente, regressa ao lar.
Na sua vida, os laços familiares e de amizade são perenes: mãe, esposa, avó, tia, prima, amiga. É um porto seguro para muitos, um ombro amigo onde depositam preocupações e de quem buscam conselhos. Ela, com uma serenidade admirável, serve sem queixas, sem lamentos, sem reclamações. Uma certeza guia a sua existência: “quem se lamenta não serve e quem não serve, não vive”.
LEITURA I Atos 14, 21b-27
Naqueles dias,
Paulo e Barnabé voltaram a Listra, a Icónio e a Antioquia.
Iam fortalecendo as almas dos discípulos
e exortavam-nos a permanecerem firmes na fé,
«porque _ diziam eles _ temos de sofrer muitas tribulações
para entrarmos no reino de Deus».
Estabeleceram anciãos em cada Igreja,
depois de terem feito orações acompanhadas de jejum,
e encomendaram-nos ao Senhor, em quem tinham acreditado.
Atravessaram então a Pisídia e chegaram à Panfília;
depois, anunciaram a palavra em Perga e desceram até Atalia.
De lá embarcaram para Antioquia,
de onde tinham partido, confiados na graça de Deus,
para a obra que acabavam de realizar.
À chegada, convocaram a Igreja,
contaram tudo o que Deus fizera com eles
e como abrira aos gentios a porta da fé.
Paulo e Barnabé contam tudo o que Deus fez com eles. Depois escolhem homens a quem confiam as comunidades, de modo que haja responsáveis que animam na fé e ajudam a permanecerem firmes, apesar das tribulações da vida.
Salmo 144, 8-13ab (R. 1)
O salmista propõe-se louvar o Senhor e bendizer o seu nome por causa da sua grandeza e das suas obras maravilhosas e compromete-se a transmitir a outros, tudo o que o Senhor tem feito, para que o poder, a glória e o esplendor do Senhor sejam conhecidos de todos.
LEITURA II Ap 21, 1-5ª
Eu, João, vi um novo céu e uma nova terra,
porque o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido,
e o mar já não existia.
Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém,
que descia do céu, da presença de Deus,
bela como noiva adornada para o seu esposo.
Do trono ouvi uma voz forte que dizia:
«Eis a morada de Deus com os homens.
Deus habitará com os homens:
eles serão o seu povo,
e o próprio Deus, no meio deles, será o seu Deus.
Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos;
nunca mais haverá morte nem luto, nem gemidos nem dor,
porque o mundo antigo desapareceu».
Disse então Aquele que estava sentado no trono:
«Vou renovar todas as coisas».
Deus estabelece uma nova e definitiva aliança com o seu povo. São as núpcias do Esposo eterno com a esposa adornada pelo seu amor sem limites. O mal, a morte, a dor e o luto, foram vencidos. Já não há lugar para as lágrimas porque o Senhor habita no meio do seu povo.
EVANGELHO Jo 13, 31-33a.34-35
Quando Judas saiu do Cenáculo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Agora foi glorificado o Filho do homem,
e Deus foi glorificado n’Ele.
Se Deus foi glorificado n’Ele,
Deus também O glorificará em Si mesmo
e glorificá-l’O-á sem demora.
Meus filhos, é por pouco tempo que ainda estou convosco.
Dou-vos um mandamento novo:
que vos ameis uns aos outros.
Como Eu vos amei,
amai-vos também uns aos outros.
Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos:
se vos amardes uns aos outros».
Na íntima união de Deus, o Pai glorifica o Filho e o Filho glorifica o Pai. A razão da íntima união é o amor levado ao extrema de morrer em obediência. Jesus sabe que a verdadeira realização dos seus discípulos está na experiência do amor inteiro, por isso, se apresenta como modelo: “Amai-vos, como eu vos amei”.
Reflexão da Palavra
O texto dos Atos dos Apóstolos situa-nos na primeira viagem apostólica de Paulo. Tendo começado a sua viagem em Antioquia, Paulo e Barnabé estão de regresso, por isso se diz que “voltaram a Listra, a Icónio e a Antioquia”. Em todas as cidades por onde andaram anunciaram o nome de Jesus. O seu anúncio foi aceite por uns e recusado por outros, como já tinha acontecido em Antioquia.
No regresso passam pelas comunidades que tinham fundado, e aí começam por contar tudo quanto o Senhor fez através do seu anúncio. Em cada comunidade animam os fiéis a permanecerem firmes na fé e criam estruturas de continuidade. Escolhem homens, anciãos, e colocam-nos à frente da comunidade para fortalecerem os irmãos na fé a fim de enfrentarem as tribulações com confiança. Os escolhidos são confiados ao Senhor no meio de jejuns e orações.
O salmo, estruturado em ordem alfabética, pretende ser uma oração de louvor por todas as coisas que Deus realiza em favor do seu povo. Os versículos do Salmo 144 (ou 145, dependendo da tradução) reunidos na liturgia deste domingo abordam precisamente a misericórdia do Senhor para com todas as criaturas e a bondade com que Ele realiza as suas obras. A grande obra do Senhor, a maior de todas, é a ressurreição de Cristo e a nossa participação na vida nova que Ele inaugurou. É por isso que este salmo é lido no tempo pascal e somos convidados a louvar e bendizer o Senhor, bem como chamados a dar a conhecer a todos o que Ele fez por nós.
Quase no final do livro do Apocalipse, João revela a futura novidade: as lágrimas, a morte, o luto, os gemidos e a dor terão cessado. O mundo antigo, o mar, o primeiro céu e a primeira terra terão desaparecido, dando lugar a um novo céu, a uma nova terra e a uma nova Jerusalém. Esta revelação não é inédita, pois já no Antigo Testamento profetas como Isaías (65, 17-20) anunciavam a vinda de um novo céu e de uma nova terra. A novidade reside no caráter definitivo desta renovação.
O mar, lugar das forças do mal, desaparece, definitivamente dominado por Deus numa vitória sem precedentes. Sem inimigos, Deus pode agora habitar no meio do seu povo e estabelecer com ele a aliança, as núpcias definitivas. Jerusalém desce do céu, “bela como noiva adornada para o seu esposo”, pois foi adornada pelo amor divino para ser reflexo do próprio Deus. O que era anúncio tornou-se realidade; o que era provisório passou a ser definitivo; o que era esperança concretiza-se aos olhos de todos.
Aqueles que vivem no meio de perseguições e sentem aproximar-se o fim dos seus dias sem alcançar a paz e a liberdade encontram nas palavras de João a razão da sua esperança. O mundo das guerras, do ódio, da morte e das perseguições é o mundo velho que há de terminar, dando lugar a um novo mundo. Quando isso acontecer – e já está a acontecer –, “eles serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus”.
Neste pequeno texto do evangelho de João, tirado da última ceia, Jesus, na proximidade da sua Paixão, revela a dinâmica essencial da vida divina: “Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele” (Jo 13, 31).
Esta glorificação recíproca não é um mero reconhecimento de poder, mas a manifestação suprema do amor. O Pai glorifica o Filho ao enviá-lo ao mundo, ao sustentá-lo na sua missão e, finalmente, ao ressuscitá-lo dentre os mortos. Por sua vez, o Filho glorifica o Pai através da sua obediência radical, culminando no sacrifício da cruz. É neste amor, levado ao extremo, até à morte, que a unidade entre o Pai e o Filho se revela em sua plenitude.
Jesus quer fazer acontecer a mesma reciprocidade, entre ele e os seus discípulos de todos os tempos, por isso, desafia-os a viver o amor do mesmo jeito: “Como Eu vos amei, amai-vos também uns aos outros”. Diz Jesus, que este é o mandamento novo. Novo em quê? Novo no modo de amar, “como eu”, ou seja, apesar de abandonado, Jesus continua sozinho o caminho até ao limite da própria vida, na decisão de amar a todos por obediência ao Pai. Todos aqueles que encarnarem o amor ao jeito de Jesus, serão reconhecidos como seus discípulos.
Meditação da Palavra
Os textos deste domingo falam do amor transformado em ato, a percorrer o caminho de Deus até aos homens e os caminhos dos homens no mundo e na história até à vitória final em que o amor será tudo em todos.
No evangelho Jesus revela a profundidade do amor divino. Sendo Mestre, Jesus inclina-se diante dos apóstolos para lhes lavar os pés. Conhecemos a cena na qual Pedro se recusa a deixar Jesus lavar-lhe os pés, uma vez que os papéis estão invertidos. É ele quem deve lavar os pés a Jesus, pois é seu discípulo. Mas o amor divino é sempre surpreendente, não segue as regras gerais em que os homens se fecham.
Para os discípulos aquele gesto parece a maior humilhação alguma vez presenciada, pois ainda não tinham visto tudo. Jesus havia de ir ainda mais longe na humilhação, pois o amor não tem limites e o discípulo precisa de aprender com o Mestre a lição do amor total. Por isso, aquela lição “se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros”, sendo manifestação de um amor maior, ainda não é a verdadeira lição do amor.
Depois de Judas se retirar da mesa, passando da luz para a escuridão da noite, Jesus ensina que a glória de Deus não está onde os homens a veem. Para os homens a glória está no poder, na grandeza, no património, no nome que se ostenta e no lugar que se ocupa na passadeira das vaidades. A glória de Deus está mais abaixo, na humilhação total que passa pela traição dos seus, pela condenação infame e pela humilhação da cruz. Por isso, afirma “agora foi glorificado o Filho do homem e Deus foi glorificado n’Ele”. “Agora”? Sim, “agora” porque começa o tempo em que o amor vai ter oportunidade para se dar todo, até ao limite, correndo o risco do total aniquilamento.
Os discípulos ainda não entendem, mas vão entender a partir daquela noite, quando se cumprir o que Jesus lhes havia dito anteriormente: “Chegou a hora de se revelar a glória do Filho do Homem… se o grão de trigo lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto” (Jo 12, 23). Na ressurreição, eles vão entender que a glória de Deus e de Jesus, seu filho, está no amor que “dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15,13).
O discípulo de Jesus há de aprender e viver a novidade deste amor. “Dou-vos um mandamento novo”, o mandamento não é novo, o que é novo é o modo como Jesus vive o amor, dando a vida sem limites, sem reservar nada para si, dando-se todo no amor. Os discípulos de Jesus vão penetrando na experiência deste amor à medida que se dão conta da lógica absurda de Deus. Ali onde os homens procuram a vida, encontra-se a morte, onde os homens creem estar a morte encontra Deus a vida: “quem se ama a si mesmo perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura para si a vida eterna” (Jo 12, 25).
Estruturado a partir do amor que o amou por inteiro, Paulo, o convertido de Damasco, como podemos perceber pela primeira leitura, torna-se um incansável missionário de Jesus. Empreende uma primeira viagem desde Antioquia até Derbe, vencendo as forças do mal, a escuridão da noite e os perigos vários, para dar a conhecer a força do amor que vence a morte, em Jesus, o Filho de Deus.
É a experiência deste amor integral, aprendido de Jesus no caminho de Damasco, que impulsiona Paulo na sua primeira viagem apostólica, uma jornada de amor através dos caminhos dos homens e da história, com o fim de tornar universalmente conhecido este amor crucificado pela salvação de todos. Este amor constitui o coração da pregação de Paulo em cada cidade que visita, numa solicitude incansável que o leva a partilhar as maravilhas desse amor para fortalecer a fé daqueles que acreditam na possibilidade de construir um novo céu e uma nova terra já neste mundo.
Os doze, em primeiro lugar, depois Paulo e Barnabé, e mais tarde a Igreja, são os depositários e comunicadores do amor que tem poder para vencer as forças da morte, as causas do sofrimento, os sinais do ódio e o poder do mal.
João acredita que, pela cruz, se pode chegar a uma nova criação, porque o amor tem poder para recriar todas as coisas. Por essa razão, diz aos cristãos da Ásia Menor que já desce do céu a nova Jerusalém como uma noiva, adornada com as preciosas manifestações do amor. Terminaram as lágrimas, a morte, o luto, os gemidos e a dor. Desapareceu o mundo antigo, o mar, o primeiro céu e a primeira terra. Surge o novo céu e a nova terra e Deus vem habitar no meio do seu povo.
Tudo começa ali, onde um discípulo de Jesus se apaixona pelo amor e decide viver do mesmo jeito que Jesus, arriscando tudo, ainda que sozinho, até ao limite, que é dar a vida.
Os cristãos das nossas comunidades, mesmo não sendo obrigados a dar a vida na cruz como Jesus, nem sofrendo perseguições violentas como os da Ásia Menor, nem percorrendo terras como Paulo, sujeitos ao frio, à noite e a diversos perigos, são chamados a fazer a experiência do amor inteiro. No seio das famílias, nos locais de trabalho, nos grupos de amigos, nas mais variadas situações sociais e, por vezes, dentro da própria comunidade cristã, sentem-se forças que se opõem à prática do amor, levando muitos cristãos ao desânimo, à tristeza e à desilusão na sua fé. A escuta da palavra de Jesus suscita entusiasmo, alegria e o desejo de vivê-la radicalmente como experiência de amor, mas a realidade quotidiana, após as celebrações comunitárias, frequentemente contrasta com esse ideal. É, pois, urgente refletir sobre a forma como a comunidade cristã responde aos desafios do amor, criando espaços, momentos e maneiras de partilhar a fé, para que os mais vulneráveis encontrem apoio nas suas dificuldades e permaneçam firmes na fé.
Rezar a Palavra
Senhor, nosso Deus, amor infinito, amor inteiro, que na humilhação e na morte manifestas o teu poder e a tua glória, faz-nos sábios no amor, para nos apoiarmos mutuamente, a fim de permanecermos firmes na fé, animados na esperança e ativos na caridade, mesmo no meio das tribulações da vida presente.
Compromisso semanal
Como Paulo e João animo os meus irmãos na fé.