Mistagogia da Palavra

Tal como Jesus, o cristão que é fiel ao Evangelho não pode senão tornar-se pedra de tropeço e sinal de contradição, pois os seus critérios destoarão necessariamente dos do mundo. O cristão não pode ser neutral, para não dizer passivo ou ausente, em relação à missão do Evangelho no mundo. A sua fé e a sua vida, se verdadeiramente as tem, compromete-o. Perante um mundo sem espírito, tem de mostrar os verdadeiros valores espirituais e humanos; desprendimento e solidariedade, amor e oração, coerência e responsabilidade, verdade e liberdade, compromisso firme com a justiça e a libertação de toda a descriminação social, cultural e religiosa, assim como promoção de quem mais precisa, como pessoas, como cidadão e como filho de Deus. Mas quem assim procede tem de causar impacto nos outros, por vezes até na própria família.
A 1ª leitura é do Livro do profeta Jeremias. Jerusalém está cercada pelos exércitos de Babilónia. A situação é desesperada, as pessoas morrem de fome. Mas os generais israelitas querem resistir a todo o custo. Jeremias dá-se conta da situação, da inutilidade da resistência armada e aconselha a rendição, para evitar um banho de sangue. Por isso é condenado à morte e lançado no fundo lodoso de uma cisterna. É, porém, salvo por um estrangeiro corajoso, que para isso obtém do rei a permissão. Todos os que anunciam verdadeiramente a palavra de Deus são tratados da mesma maneira, embora com métodos diferentes.
A 2ª leitura é da Epístola aos Hebreus. Os cristãos de origem judaica, que sofriam grandes dificuldades na sua fé, são aconselhados a não desanimarem e a não cederem. Esta é ocasião privilegiada, porque permite demonstrar a Cristo o próprio amor e a própria fidelidade. Eles são atletas que devem dar prova de força e habilidade diante de expectadores excepcionais: os grandes personagens do passado, desde Abraão até ao último dos profetas. A meta a atingir é Cristo. Os discípulos devem correr como fez o Mestre e, como prémio, receberão do Pai a coroa de glória.
O Evangelho, segundo S. Lucas, fala-nos de fogo e de divisão até na própria família, trazidos por Jesus. Que fogo é este, ateado por Jesus? Este fogo, anunciado pelos profetas e ateado por Jesus, salva, purifica e cura. É o fogo da sua palavra, é a sua mensagem de salvação, é o seu Espírito, aquele Espírito que, no dia do Pentecostes, desceu como chama sobre os discípulos e começou a difundir-se no mundo como um incêndio benéfico e renovador. Quem se sente “ameaçado” por este fogo de amor não fica parado, opõe-se com todos os meios, reage com violência para perpetuar o mundo do pecado. É nesta altura que surgem as incompreensões, que dão origem às divisões e conflitos e, por fim, às perseguições e à violência, até na própria família.

A Palavra do Evangelho

Evangelho    Lc 12, 49-53
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Eu vim trazer o fogo à terra e que quero Eu senão que ele se acenda? Tenho de receber um baptismo e estou ansioso até que ele se realize. Pensais que Eu vim estabelecer a paz na terra? Não. Eu vos digo que vim trazer a divisão. A partir de agora, estarão cinco divididos numa casa: três contra dois e dois contra três. Estarão divididos o pai contra o filho e o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra contra a nora e a nora contra a sogra».


Caros amigos e amigas, este pequeno texto do Evangelho de Lucas questiona a nossa paz e a nossa guerra, e faz-nos entender qual a origem da força e da mansidão deste Deus que é ao mesmo tempo um audaz “guerreiro” e um “humilde cordeiro”.


Eu vim trazer o fogo à terra

Numa certa passagem da vida de Jesus que o Evangelho guarda, os discípulos ripostam dizendo “esta palavra é dura! Quem pode escutá-la?” (Jo 6, 60). Algo semelhante pode acontecer connosco diante desta perícope evangélica. A voz é de Jesus, mas as palavras parecem não ser. É preciso perscrutar a sua dureza. É preciso poder escutá-l’O repetidamente. E, antes de mais, esta é uma das vantagens deste texto. Esta passagem, a partir da sua dureza, ajuda-nos a entender que o texto bíblico é Palavra de Deus viva e, como tal, requer atenção e cuidado.
“Eu vim trazer o fogo à terra e que quero Eu senão que ele se acenda?” Numa época em que os incêndios ainda vão ceifando vidas e deflagrando dor, que fogo é este que Jesus quer atear? Na cultura em que Jesus se inscreve, o fogo surge como elemento de purificação e de santificação. Como a água baptismal. Por isso, este fogo é gérmen de vida nova. Da vida verdadeira, bela e boa que Jesus traz. Não pensemos que a expressão de Jesus “Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10) entra em litígio com esta de hoje. Muito pelo contrário. São frases sinónimas. Jesus não se contradiz. Ele tem a memória de Deus: é fiel a Si mesmo. Agora, a vida nova de Jesus implica que arda em nós o fogo do amor de Deus, o Espírito Santo. É Ele que nos purifica do que impede a vida em nós. É Ele que fecunda a vida pela santidade.


Tenho de receber um baptismo e estou ansioso

O lugar desta frase no Evangelho de hoje leva a concluir que o fogo que Jesus quer acender, se acenderá na cruz. O baptismo que Jesus recebe é esse. É lá, na cruz, que Jesus instaura a sua cátedra e ensina o seu Evangelho, a sua Boa Nova do amor. Não a ensina como os escribas, mas com a autoridade do sangue; não ensina com palavras, mas com o silêncio da morte inocente. É lá que revela o amor de Deus, para que seja na cruz que nós testemunhemos esse mesmo amor recebido. Mas como testemunhá-lo, senão capacitados pelo Espírito Santo? É, por isso, que também lá, na cruz, Jesus entrega o seu Espírito ao Pai e, com o Pai, aos seus discípulos, como primícias da nova humanidade.


Vim trazer a divisão

O Espírito Santo que Jesus derrama, com o seu Sangue, sobre a humanidade, congrega, é fonte de comunhão, é garantia de unidade, é o Dom da Paz. Assim sendo, como Jesus pode dizer “vim trazer a divisão”?
Impressionantemente, há quem faça guerra à Verdade, à Vida, à Liberdade, à Justiça e à Caridade. No fundo é a guerra que se faz aos inocentes e inofensivos, aos pobres que Jesus prefere. E é a esta luz que se entende a divisão que Jesus traz. Se não fosse essa guerra, Ele não teria sido entregue à morte. Se não fosse essa divisão, os seus discípulos não seriam perseguidos e não teriam recebido o baptismo que Ele ansiou. Muitas vezes vemos divisão familiar por causa de pequenos interesses. Não é dessa divisão que se trata. É aquela outra, que pelo simples facto de existir, é um grito pela Verdade. Como é possível aceitar Auschwitz, Hiroxima ou Nagasaki? Como é possível estar unidos à exploração e ao tráfico humano? Por isso, Jesus não nos oferece a paz cúmplice do mal. Traz-nos, sim, a paz que luta pela Verdade, pela Beleza e pelo Bem, e a Vida que ela promete e concretiza.
E isto, caros amigos e amigas, é Evangelho.


Rezar a palavra

Vou questionar-me sobre como posso ser rastilho para o incêndio da mensagem de Jesus. 


Viver a palavra

Senhor, quero aceitar o incêndio do teu mistério, fogo posto à frágil prova do meu amor.
Ofereço-Te a minha debilidade e tibieza para que as potencies com a força da tua entrega…
Ofereço-Te a minha maldade e incoerência: corrije-as com a beleza da tua verdade;
Ofereço-Te a minha vontade e o meu querer: encaminha-os para a tua plenitude!
Sê Tu em mim, Senhor, a medida de cada passo, de cada silêncio e de cada palavra…