Migalhas também são pão
O pão sobre a mesa chamou meus olhos para a vida, para ver a força do que se tem, nas migalhas perdidas, de liberdade esquecida, de quem vive sobre o fio da navalha desgastada pelo tempo. O pão trouxe o sabor dos tempos arrastados pela luz do entardecer de cada dia. O pão fez recordar o poder de nada ser a não ser pão, mas ter sabor de festa em cada mão, repartindo pedaços de esperança em cada sonho. O pão esquecido na mesa descuidada ou tem sabor a sonhos ou não é pão.
LEITURA I 2Rs 4, 42-44
Naqueles dias, veio um homem da povoação de Baal-Salisa e trouxe a Eliseu, o homem de Deus, pão feito com os primeiros frutos da colheita. Eram vinte pães de cevada e trigo novo no seu alforge. Eliseu disse: «Dá-os a comer a essa gente». O servo respondeu: «Como posso com isto dar de comer a cem pessoas?». Eliseu insistiu: «Dá-os a comer a essa gente, porque assim fala o Senhor: ‘Comerão e ainda há de sobrar’». Deu-lhos e eles comeram, e ainda sobrou, segundo a palavra do Senhor.
A palavra do Senhor cumpre-se através do profeta Eliseu, o homem de Deus. Nas suas mãos os pequenos pães de cevada e trigo novo, chegam para dar de comer a todos.
Salmo Responsorial Sl 144 (145), 10-11.15-16.17-18 (R. cf. 16)
O salmo 144 é um hino de louvor e ação de graças que pretende enaltecer a bondade de Deus que abre as suas mãos e sacia a nossa fome. Nele estão postos os olhos dos pobres que dele esperam, no tempo necessário, o alimento de que precisam e não ficarão desiludidos.
LEITURA II Ef 4, 1-6
Irmãos: Eu, prisioneiro pela causa do Senhor, recomendo-vos que vos comporteis segundo a maneira de viver a que fostes chamados: procedei com toda a humildade, mansidão e paciência; suportai-vos uns aos outros com caridade; empenhai-vos em manter a unidade de espírito pelo vínculo da paz. Há um só Corpo e um só Espírito, como há uma só esperança na vida a que fostes chamados. Há um só Senhor, uma só fé, um só Batismo. Há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, atua em todos e em todos Se encontra.
Diante de uma comunidade dividida, Paulo convida a olhar para tudo o que une os discípulos de Cristo e a reencontrar a paz e a unidade, através dos sentimentos de humildade, mansidão e paciência.
EVANGELHO Jo 6, 1-15
Naquele tempo, Jesus partiu para o outro lado do mar da Galileia, ou de Tiberíades. Seguia-O numerosa multidão, por ver os milagres que Ele realizava nos doentes. Jesus subiu a um monte e sentou-Se aí com os seus discípulos. Estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus. Erguendo os olhos e vendo que uma grande multidão vinha ao seu encontro, Jesus disse a Filipe: «Onde havemos de comprar pão para lhes dar de comer?». Dizia isto para o experimentar, pois Ele bem sabia o que ia fazer. Respondeu-Lhe Filipe: «Duzentos denários de pão não chegam para dar um bocadinho a cada um». Disse-Lhe um dos discípulos, André, irmão de Simão Pedro: «Está aqui um rapazito que tem cinco pães de cevada e dois peixes. Mas que é isso para tanta gente?». Jesus respondeu: «Mandai-os sentar». Havia muita erva naquele lugar, e os homens sentaram-se em número de uns cinco mil. Então, Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados, fazendo o mesmo com os peixes; e comeram quanto quiseram. Quando ficaram saciados, Jesus disse aos discípulos: «Recolhei os bocados que sobraram, para que nada se perca». Recolheram-nos e encheram doze cestos com os bocados dos cinco pães de cevada que sobraram aos que tinham comido. Quando viram o milagre que Jesus fizera, aqueles homens começaram a dizer: «Este é, na verdade, o Profeta que estava para vir ao mundo». Mas Jesus, sabendo que viriam buscá-l’O para O fazerem rei, retirou-Se novamente, sozinho, para o monte.
Jesus desafia os discípulos a dar de comer à multidão. Perante a incapacidade dos discípulos ele realiza um sinal grandioso, distribuindo por cinco mil homens os poucos pães e peixes disponíveis.
Reflexão da Palavra
O profeta Eliseu, sucessor de Elias de quem recebeu uma parte do Espírito, tornou-se um grande profeta, elogiado sobretudo pelos seus muitos milagres e pela sua independência em relação aos poderes instituídos. São conhecidos os milagres da cura de Naamã, do qual faz referência Jesus no evangelho, e a bênção de um filho dado à mulher sunamita que o recebeu em sua casa. Foi uma voz livre que falou contra os reis que desprezavam a aliança e contra a idolatria.
No tempo de Eliseu vivia-se uma situação de fome por todo o país por causa da seca. A primeira leitura apresenta uma cena neste contexto de fome. Um homem, de Baal-Salisa, entrega a Eliseu “vinte pães de cevada e trigo novo”. Seriam o cumprimento da lei do Senhor que manda entregar as primícias da colheita de cada ano. Perante a fome, visível aos seus olhos nos homens em número de cem, o profeta manda que lhes entregue os pães para que saciem a fome.
Pelas palavras do homem pode perceber-se que não é humanamente possível saciar a fome de tantos homens com tão poucos e tão pequenos pães. No entanto, o profeta não está centrado no modo de pensar dos homens mas na palavra do Senhor, “assim fala o Senhor”. É a palavra do Senhor e não os pães que saciam a fome do homem, porque a palavra do Senhor se cumpre naqueles que creem. O Senhor diz: “Comerão e ainda há de sobrar” e assim sucedeu, “deu-lhos e eles comeram, e ainda sobrou, segundo a palavra do Senhor”.
No salmo continuamos a perceber a força da palavra de Deus que se cumpre para todos os que “têm os olhos postos em Vós” porque “a seu tempo lhes dais o alimento. Abris as vossas mãos e todos saciais generosamente”. Estamos perante um salmo de louvor e ação de graças construído segundo a ordem do alfabeto hebraico. A preocupação do autor favorece mais a ordem alfabética do que a harmonia do conteúdo, o que revela alguma desorganização literária.
Dirige-se a Deus na segunda pessoa “a tua justiça… o teu reino… as tuas proezas…”, e na terceira pessoa “o Senhor é grande… o Senhor é clemente… o Senhor ergue…”. Na introdução, o salmista propõe-se louvar o Senhor pela sua grandeza, “exaltarei a tua grandeza, ó meu rei e meu Deus” e na conclusão convida todas as criaturas a fazer o mesmo “todo o ser vivo bendiga o seu santo nome para sempre”. Numa primeira parte o salmista exalta os feitos do Senhor, a sua realeza e majestade, que, “cada geração contará à seguinte”. Numa segunda parte proclama a bondade e misericórdia do Senhor que “é bom para com todos”.
Como o próprio afirma, Paulo está preso, já dissemos que não é certo o lugar onde se encontra e de onde escreve as cartas do cativeiro (efésios, Filipenses, Colossenses e Filémon). A comunidade de Éfeso vive momentos de divisão, que pode ter por base alguma heresia, entre os responsáveis de origem judaica e os de origem pagã. Daí que a preocupação de Paulo seja a unidade, cujo fundamento se encontra em Cristo.
No texto desta carta, a segunda leitura deste domingo, Paulo fala das exigências da unidade, dos sentimentos que hão de ter os membros da comunidade para que mantenham a unidade nas relações e na doutrina.
Segundo Paulo, na doutrina que ele expõe ao início desta carta, a unidade na Igreja faz parte do plano salvífico de Deus que se realizou em Cristo e está ao alcance de todos. Por isso, a vida em Cristo, a vida dos membros da Igreja, passa por atitudes dignas do “chamamento que recebestes” e reclama “toda a humildade e mansidão, com paciência”, assim como implica a disponibilidade para levantar os que não são capazes de se manter de pé, numa experiência de amor, mantendo “a unidade do Espírito”.
Esta atitude decorre do núcleo fundamental da fé cristã que é a unidade de Deus e de tudo e todos em Deus: “Há um só Corpo e um só Espírito, como há uma só esperança na vida a que fostes chamados. Há um só Senhor, uma só fé, um só Batismo. Há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, atua em todos e em todos Se encontra”. Deve salientar-se a repetição continua de “um só” e de “todos”.
Saltamos do evangelho de Marcos para o de João e vamos diretos ao capítulo seis, que narra a multiplicação dos pães e dos peixes e o discurso sobre o pão da vida. Os próximos quatro domingos teremos a continuação deste evangelho.
O evangelista João narra, no início do capítulo 6 do seu evangelho, o sinal da multiplicação dos pães. Jesus tinha curado um paralítico em dia de sábado, o que irritou os judeus que se manifestaram contra ele. Como resposta, Jesus faz um longo discurso, no qual revela a sua relação com o Pai. Tudo se passa na Galileia, onde Jesus recrutou vários dos seus discípulos e onde anteriormente foi aclamado pelas multidões. O momento é tenso e começa a sentir-se a rejeição por parte dos judeus, posteriormente das multidões, mais tarde até os discípulos o abandonam, ficando apenas os doze.
Do “outro lado do mar da Galileia”, é assim que João começa a narração, com a festa da Páscoa no horizonte “estava próxima a Páscoa”, Jesus sobe ao monte como Moisés, senta-se e ergue os olhos contemplando “uma grande multidão vinha ao seu encontro”. Ao ver a multidão Jesus faz uma pergunta a Filipe, que vai despoletar todo o desenrolar do acontecimento. Jesus pergunta: “onde havemos de comprar pão para lhes dar de comer?”. João tem o cuidado de dizer que a pergunta é feita para “o experimentar”.
Na resposta, Filipe pensa em dinheiro “duzentos denários de pão não chegam para dar um bocadinho a cada um”. André, a quem nada foi perguntado mas ouviu o desafio de Jesus a Filipe, pensa na quantidade ao referir que um rapazinho tem cinco pães e dois peixes, “que é isso para tanta gente?”. Para os dois, que refletem nas suas respostas o pensamento dos doze e da multidão, é impossível, não há dinheiro nem pão que cheguem para cumprir o desejo de Jesus. Eles falam literalmente do pão que se compra com dinheiro e que serve para saciar a fome e, por isso, têm dificuldade em encontrar uma solução. No entanto, fazem o que Jesus lhes manda, sentam a multidão e distribuem os pães e os peixes.
A multidão presente não vem ao acaso. Eles já tinham visto outros sinais de Jesus “por ver os milagres que Ele realizava nos doentes”. Esperam ver mais. Ali, porém, Jesus pretende fazer mais do que um sinal, quer apresentar-se no contexto messiânico do banquete anunciado pelos profetas “no cimo do monte”. Com a multiplicação dos pães, Jesus apresenta-se como o Messias esperado, e coloca os discípulos e a multidão no contexto do banquete que o “Senhor Deus do universo prepara para todos os povos” (Is 25,6).
Com o olhar nas profecias que anunciam um tempo novo, os discípulos teriam ultrapassado o olhar humano do momento e chegado à fé de que para Deus nada é impossível e ao homem também não se o seu coração estiver habitado pela disponibilidade à ação de Deus. Afinal, Eliseu deu de comer a cem homens com vinte pães e o Senhor deu de comer ao seu povo, o maná, em pleno deserto e, como diz o salmo, “Abris as vossas mãos e a todos saciais generosamente”, ou como recorda Eliseu, “assim fala o Senhor: ‘Comerão e ainda há de sobrar’”. Não havia razões para tanta dúvida se os discípulos fossem assistidos pela fé.
O momento é tenso, porque há apenas cinco pães e dois peixes para cinco mil homens. A desproporção entre pães e homens anuncia o fracasso antecipado da operação, mas, com a cruz no horizonte, tal como a última ceia em Jerusalém, as mãos de Jesus tomam o pão, os seus lábios pronunciam a ação de graças e, acontece ali o grande sinal de Jesus para os crentes, a Eucaristia. O pão partido e repartido, distribuído, chega para todos e, desse pão, não se poder perder nenhum bocado, porque mais do que pão que sacia a fome, é pão que alimenta a fé.
Meditação da Palavra
A liturgia desta XVII domingo do tempo comum, coloca diante de nós um dos grandes problemas da humanidade de todos os tempos, também de hoje, que é a fome. E ao colocar este problema faz-nos pensar em tantos outros problemas, para os quais somos chamados a encontrar soluções concretas.
Tanto a primeira leitura como o evangelho revelam a situação clara de pessoas que, de forma mais habitual ou apenas circunstancial, sentem fome. Os cem homens da primeira leitura estão ao alcance do olhar do profeta e os cinco mil do evangelho, estão ao alcance do olhar de Jesus. A fome do mundo está ao alcance de toda a humanidade através das redes sociais e dos meios de comunicação social. Trata-se de algo gritante que, mesmo que se queira esconder, é impossível não ver.
Ontem e hoje têm-se ensaiado soluções e ainda não foi possível erradicar a fome do mundo. Homens de boa vontade e com responsabilidades no plano internacional têm procurado vias de solução para que a todos chegue o pão de cada dia, desafio que Jesus nos deixou na oração do Pai Nosso. Aquele artigo da oração de Jesus, que diz “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”, mais do que um pedido que fazemos a Deus para que nada nos falte, é um grito dos pobres a dizer-nos que hoje, precisamente hoje, não têm o pão que lhes é devido.
A palavra de Deus deste domingo vem dizer-nos que, as repostas humanas ao problema da fome, carecem de sentimentos que brotam da consciência de sermos todos um só, como Deus é um só. E diz-nos também que, em Deus “há um só Corpo e um só Espírito, como há uma só esperança … há um só Senhor, uma só fé, um só Batismo”, no qual, ou participamos todos ou não participamos de todo. E diz-nos ainda que este Deus é “Pai de todos, que está acima de todos, atua em todos e em todos Se encontra”. E se não for assim, Deus não é Pai de ninguém, porque se recusa a ser Pai apenas de uns privilegiados.
Eliseu entende a sua responsabilidade social diante dos homens, porque, iluminado pela palavra de Deus que diz “comerão e ainda há de sobrar”, acredita no cumprimento da palavra e prescinde de guardar para si o pão que é de hoje e, por isso, é para todos.
Jesus quer deixar aos discípulos de todos os tempos o dom do pão que é ele mesmo, em forma de pão partido e repartido, Eucaristia, para que, quem dele comer nunca mais tenha fome. Na multiplicação dos pães, o evangelista João deixa-nos os gestos e as palavras de Jesus que os outros evangelistas reservaram para a última Ceia, dizendo com isso que este mistério, que é pão descido do céu, é para todos, como diz o salmo, para todos os que “têm os olhos postos em Vós”.
A resposta de Deus, dada em Jesus, é a da generosidade, “abris, Senhor, as vossas mãos e saciais a nossa fome”. Esta resposta não tem impossíveis, porque enquanto houver generosidade não se esgota o pão e como recorda Eliseu “ainda há de sobrar”. Deus dá em abundância mas não dá, como faz o homem, para esbanjar. Para o homem tudo é economia e, se for necessário, deitam-se ao lixo os bens essenciais para que não baixe o preço no mercado. Para Deus, como Jesus recomenda aos discípulos, tudo é importante “recolhei os bocados que sobraram, para que nada se perca” porque tudo é dom de Deus.
Rezar a Palavra
Tenho os meus olhos postos em ti, Senhor, para acolher o pão que desce do céu para dar a vida ao mundo. Esse pão que és tu, Senhor, é o verdadeiro pão, é o alimento que sacia e fortalece a fé. Dele comeram muitos sem que se tenha esgotado. Esgota-se sim a nossa vontade de o acolher, esgota-se a vontade de o repartir, esgota-se a nossa generosidade para com os milhares de famintos que não conseguem obter o simples “pão de cada dia”. Dá-nos, Senhor, a consciência do outro e ensina-nos a fazer como tu que abres as tuas mãos para saciar a nossa fome.
Compromisso semanal
Imploro a Jesus: “Dá-nos sempre desse pão”.