Quando os pobres cuidarem de nós
Os gestos e as palavras que ao longo da história, desde tempos antigos até hoje, diminuíram e marginalizaram os pobres, revelam a pequenez de quem é rico. Revelam a pobreza de coração que mata lenta e impiedosamente o outro, só porque não lhe coube a mesma sorte que a alguns privilegiados.
A notícia soou há poucos dias “um terço da riqueza produzida pela pandemia teve como destino apenas um por cento da população mundial”. A pobreza de uns, a miséria de outros, a desgraça de muitos, faz, e sempre fez, a riqueza de uns quantos aproveitadores da situação. Riqueza que podia, mas nunca é distribuída.
A Palavra de Deus denuncia, revela e alerta para a possibilidade de se cair facilmente na armadilha da linguagem ardilosa dos aproveitadores da desgraça alheia e de nos tornarmos, nós também, os habilidosos aproveitadores e exploradores dos pobres.
LEITURA I Is 58, 7-10
Eis o que diz o Senhor: «Reparte o teu pão com o faminto, dá pousada aos pobres sem abrigo, leva roupa ao que não tem que vestir e não voltes as costas ao teu semelhante. Então a tua luz despontará como a aurora, e as tuas feridas não tardarão a sarar. Preceder-te-á a tua justiça e seguir-te-á a glória do Senhor. Então, se chamares, o Senhor responderá, se O invocares, dir-te-á: ‘Aqui estou’. Se tirares do meio de ti a opressão, os gestos de ameaça e as palavras ofensivas, se deres do teu pão ao faminto e matares a fome ao indigente, a tua luz brilhará na escuridão e a tua noite será como o meio-dia».
Dominados ainda pelos persas, os israelitas que tinham sido deportados para Babilónia puderam regressar à sua terra. Encontraram tudo destruído. A reconstrução previa também a restauração do culto ao Deus único, o Deus de seus pais. Surge, então, a preocupação pelo cumprimento da lei, do jejum e dos sacrifícios. No entretanto, cometiam-se muitas injustiças para com os pobres. O profeta denuncia estas injustiças em nome de Deus.
SALMO RESPONSORIAL Sl 111 (112), 4-5.6-7.8a e 9
O salmo 111 aparece como uma bem-aventurança. “Ditoso”, feliz ou bem-aventurado aquele que imita o Senhor na sua generosidade porque só Deus é verdadeiramente misericordioso, compassivo e justo. Aquele que pratica estas qualidades é feliz porque procura ser santo como Deus é santo.
LEITURA II 1Cor 2, 1-5
Quando fui ter convosco, irmãos, não me apresentei com sublimidade de linguagem ou de sabedoria a anunciar-vos o mistério de Deus. Pensei que, entre vós, não devia saber nada senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. Apresentei-me diante de vós cheio de fraqueza e de temor e a tremer deveras. A minha palavra e a minha pregação não se basearam na linguagem convincente da sabedoria humana, mas na poderosa manifestação do Espírito Santo, para que a vossa fé não se fundasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus.
Paulo, continuando a despertar os coríntios para o mistério de Cristo, recorda que eles chegaram à fé por um dom de Deus e pela ação do Espírito Santo. Não foi nem a sua sabedoria nem a sua eloquência nem a convicção das suas palavras, mas uma “poderosa manifestação do Espírito Santo” que os fez aderir à fé em Cristo crucificado.
EVANGELHO Mt 5, 13-16
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Vós sois o sal da terra. Mas se ele perder a força, com que há de salgar-se? Não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, onde brilha para todos os que estão em casa. Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus».
Após a proclamação das bem-aventuranças, Jesus surpreende os discípulos com as palavras que escutamos nesta celebração. A luz deve brilhar para todos. Que luz é esta? A luz que brota das boas obras. São elas que fazem a diferença no mundo, são elas que dão sabor, como o sal faz na comida. Jesus revela que essa luz e esse sal são eles, somos nós, se praticarmos boas obras.
Reflexão da Palavra
Mateus não tem apenas a preocupação de apresentar as palavras de Jesus, ele tem diante de si uma comunidade cristã, a quem quer apresentar Jesus e a força das suas palavras: “Vós sois o sal”, “vós sois a luz”. Este “vós”, propositadamente plural, é dirigido aqueles que se reúnem em nome de Jesus e que, pela fé, se apresentam ao mundo como a comunidade dos seus discípulos.
O sal e a luz são imagens que Jesus utiliza para classificar a vida e as obras dos seus discípulos, enquanto membros de uma comunidade. O sal não pode perder o sabor e a luz não deve esconder-se, bem como a cidade não pode ocultar-se. Do mesmo modo, os discípulos de Jesus não podem ser pessoas insonsas, sem obras, porque seriam inúteis, nem podem esconder-se do mundo porque é o lugar onde são chamados a iluminar, para que os homens, “vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus”.
Definitivamente, para Jesus, o sal e a luz são as boas obras e Mateus chama a atenção para isso. As obras de cada um dos discípulos de ontem e de hoje, assim como as obras da comunidade, que não existe para estar reunida, mas reúne-se para salgar o mundo, devem levar os homens a dar glória a Deus.
Isaías descreve as boas obras que estão em causa e que, sendo vistas pelos homens, podem levar a que todos louvem o Senhor. Mateus vai fazer referência a estas obras no capítulo 25, a propósito do Juízo final.
As boas obras são: “Reparte o teu pão com o faminto, dá pousada aos pobres sem abrigo, leva roupa ao que não tem que vestir e não voltes as costas ao teu semelhante… Se tirares do meio de ti a opressão, os gestos de ameaça e as palavras ofensivas, se deres do teu pão ao faminto e matares a fome ao indigente”. São obras concretas que o salmo 111 também menciona “o homem que se compadece e empresta e dispõe das suas coisas com justiça… reparte com largueza pelos pobres”.
Isaías fala para os Israelitas regressados de Babilónia, que assumiram uma postura de falsidade, querendo que Deus se mostre favorável por causa dos seus jejuns rituais, quando depois exploram os pobres e não respeitam ninguém na busca do lucro fácil, a fim de enriquecerem rapidamente.
As obras que Jesus exige aos seus discípulos, não são atitudes pontuais, mas um estilo de vida que pensa nos outros ao ponto de cuidar, com gestos e palavras, aqueles que se encontram em situação desfavorável. Uma atitude como a de Paulo quando revela aos coríntios, que não se apresentou diante deles “com sublimidade de linguagem”, para os convencer e dominar pela sabedoria, mas “cheio de fraqueza e de temor e a tremer deveras” para lhes revelar o poder de Deus.
Meditação da Palavra
A Palavra deste domingo desperta alguns sentimentos que podem fazer-nos reagir interiormente. A palavra mexe mesmo com a nossa vida, as nossas atitudes e sentimentos, as opções que fazemos perante a realidade humana que nos rodeia e as circunstâncias concretas em que temos necessariamente que tomar uma posição.
O que move as nossas atitudes e decisões? Somos movidos pelos nossos interesses ou pela preocupação em relação aos mais desprotegidos e abandonados? Move-nos o sentimento de misericórdia, caridade e compaixão ou o egoísmo de quem nunca está disponível para responder às necessidades dos outros?
Isaías denuncia aqueles que cumpriam a lei, praticavam os jejuns prescritos e participavam no culto, mas depois, engavam o pobre e exploravam os humildes e os indigentes. Isaías denuncia estas atitudes frequentes entre os judeus regressados de Babilónia e incita-os a repartir com os pobres. É que eles, queixavam-se de o Senhor não atender as suas orações nem prestar atenção aos seus jejuns.
As palavras de Isaías são claras, “reparte o teu pão com o faminto, dá pousada aos pobres sem abrigo, leva roupa ao que não tem que vestir e não voltes as costas ao teu semelhante” e ainda “se tirares do meio de ti a opressão, os gestos de ameaça e as palavras ofensivas, se deres do teu pão ao faminto e matares a fome ao indigente” a tua sorte mudará porque “se chamares, o Senhor responderá, se O invocares, dir-te-á: ‘Aqui estou’”. São as escolhas egoístas que impedem que a oração e os jejuns cheguem à presença de Deus.
É esta, a mesma razão pela qual Jesus fala aos discípulos desafiando-os a ser Sal e Luz no mundo. As imagens usadas são muito fortes. O sal não pode nunca deixar de salgar, mas um discípulo de Jesus pode tornar-se inútil. Uma cidade situada no cimo de um monte não pode esconder-se, mas a comunidade dos discípulos de Jesus pode tornar-se invisível. A luz deve colocar-se em lugar que possa iluminar todos os que estão em casa e um discípulo de Jesus pode estar na comunidade em atitude que provoca sombras e trevas à sua volta.
O que é que faz com que os discípulos sejam como o sal e como a luz? As suas obras. Se elas são boas eles são sal e luz, os homens que veem essas boas obras percebem-nas como obras que vêm de Deus e não apenas dos homens e dão glória a Deus. Desta forma cumpre-se a vida do discípulo que é viver de modo que Deus seja louvado.
Se o discípulo não pratica boas obras ou até pratica obras que põem em causa o nome de Deus, então torna-se trevas, perde o sabor e o seu destino é “ser lançado fora e pisado pelos homens”.
Dizemos muitas vezes e ouvirmos dizer aos discípulos de Jesus: “Eu faço o bem sempre que posso”, este sempre significa quando? Muitas vezes nem nos lembramos quando foi a última vez em que fizemos o bem e, “sempre que posso”, pode significar que nunca posso e torna-se uma desculpa ridícula. Ouvimos e dizemos também, “eu faço o bem a toda a gente”. “Toda a gente”, quem é? Quem foi a última pessoa a quem conscientemente fiz o bem? Também dizemos e ouvimos dizer “não faço mal a ninguém”. Será mesmo verdade que podemos dizer com toda a certeza que não prejudicamos nunca ninguém?
Afirmamo-nos com muita facilidade “boas pessoas”, mas não é possível ser boa pessoa sem obras. Os tempos em que vivemos é mesmo um tempo de aparências como o tempo de Isaías, em que queremos apresentar-nos diante de Deus como bons, mas nem sempre agimos como discípulos de Jesus nas nossas relações humanas, familiares, profissionais e civis. Fugimos facilmente aos nossos compromissos e esquecemos rapidamente as imagens de pobreza e abandono que nos comovem. Queremos ser boas pessoas sem obras.
Jesus desafia-nos, hoje, a repensar a vida, de modo que ela manifeste o poder de Deus por palavras e obras, para que todos, contemplando a Deus em nós, desejem também dar glória a Deus. Então, se o chamarmos ele responderá, se o invocarmos ele dirá: “estou aqui”.
Rezar a Palavra
Ensina-me, Senhor, a descobrir o teu rosto no pobre e no indigente, para que o meu coração se comova e as minhas mãos se apressem a cuidar. Que o meu jejum seja o amor e a minha oração o pão repartido pelos pobres. Que a minha fé seja palavra de conforto e abraço fraterno. Que a minha esperança seja um mundo onde todos se sentam à mesma mesa e não se cansam de servir.
Compromisso semanal
Há homens, mulheres, crianças, jovens e idosos que experimentam o abandono e eu não posso ser cego nem indiferente.