Que não me falte a coragem
A tentação de encontrar justificação para a minha vida, sobretudo para os meus pecados, revela a falta de coragem para me assumir como sou e o que sou na relação com Deus e com os homens. Porém, as minhas justificações não me justificam, quem me pode justificar é Deus mediante a coragem de assumir a verdade do que sou.
Uma nova figura surge no tempo, é João, o filho mimado de Isabel e do ilustre sacerdote Zacarias. Trocou os mimos da mãe e o prestígio do pai pelo deserto. No silêncio e na solidão aprendeu a coragem da liberdade, porque não tem nada a perder, e lança-se na aventura de iniciar um novo tempo para a humanidade, o que lhe custará a vida.
LEITURA I Is 11, 1-10
Naquele dia, sairá um ramo do tronco de Jessé, e um rebento brotará das suas raízes. Sobre ele repousará o espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor de Deus. Animado assim do temor de Deus, não julgará segundo as aparências, nem decidirá pelo que ouvir dizer. Julgará os infelizes com justiça e com sentenças retas os humildes do povo. Com o chicote da sua palavra atingirá o violento e com o sopro dos seus lábios exterminará o ímpio. A justiça será a faixa dos seus rins, e a lealdade a cintura dos seus flancos. O lobo viverá com o cordeiro, e a pantera dormirá com o cabrito; o bezerro e o leãozinho andarão juntos, e um menino os poderá conduzir. A vitela e a ursa pastarão juntamente, suas crias dormirão lado a lado; e o leão comerá feno como o boi. A criança de leite brincará junto ao ninho da cobra, e o menino meterá a mão na toca da víbora. Não mais praticarão o mal nem a destruição em todo o meu santo monte: o conhecimento do Senhor encherá o país, como as águas enchem o leito do mar. Nesse dia, a raiz de Jessé surgirá como bandeira dos povos; as nações virão procurá-la, e a sua morada será gloriosa. Palavra do Senhor.
Parece um sonho, o mundo que Isaías profetiza, quando diz que virá um tempo em que “o lobo viverá com o cordeiro e a pantera dormirá com o cabrito; o bezerro e o leãozinho andarão juntos e um menino os poderá conduzir”. É o tempo do Messias. Ele será cheio do Espírito do Senhor. Animado pelo Espírito fará surgir um mundo novo onde haverá justiça para os infelizes e os humildes. A sua palavra, como um chicote, transformará a realidade que conhecemos, num mundo de paz e harmonia como o que encontramos em Belém no nascimento de Jesus.
Salmo responsorial 71 (72), 2.7-8.12-13.17
O sonho de Isaías é apresentado pelo salmo como uma “bênção para todas as nações”. Esse sonho realiza-se no menino de Belém. Ele é o rei que vem governar com justiça e equidade, socorrer os pobres e defender os oprimidos. “Nos dias do Senhor nascerá a justiça e a paz para sempre”.
LEITURA II Rm 15, 4-9
Irmãos: Tudo o que foi escrito no passado foi escrito para nossa instrução, a fim de que, pela paciência e consolação que vêm das Escrituras, tenhamos esperança. O Deus da paciência e da consolação vos conceda que alimenteis os mesmos sentimentos uns para com os outros, segundo Cristo Jesus, para que, numa só alma e com uma só voz, glorifiqueis a Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Acolhei-vos, portanto, uns aos outros, como Cristo vos acolheu, para glória de Deus. Pois Eu vos digo que Cristo Se fez servidor dos judeus, para mostrar a fidelidade de Deus e confirmar as promessas feitas aos nossos antepassados. Por sua vez, os gentios dão glória a Deus pela sua misericórdia, como está escrito: «Por isso eu Vos bendirei entre as nações e cantarei a glória do vosso nome».
O sonho de Isaías aparece em Paulo, na Carta aos romanos, como uma realização em Cristo. “Acolhei-vos, portanto, uns aos outros, como Cristo vos acolheu”, mantendo entre vós “os mesmos sentimentos”, e vivendo em Deus com “uma só alma e uma só voz”.
EVANGELHO Mt 3, 1-12
Naqueles dias, apareceu João Batista a pregar no deserto da Judeia, dizendo: «Arrependei-vos, porque está perto o reino dos Céus». Foi dele que o profeta Isaías falou, ao dizer: «Uma voz clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas’». João tinha uma veste tecida com pelos de camelo e uma cintura de cabedal à volta dos rins. O seu alimento eram gafanhotos e mel silvestre. Acorria a ele gente de Jerusalém, de toda a Judeia e de toda a região do Jordão; e eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados. Ao ver muitos fariseus e saduceus que vinham ao seu batismo, disse-lhes: «Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir? Praticai ações que se conformem ao arrependimento que manifestais. Não penseis que basta dizer: ‘Abraão é o nosso pai’, porque eu vos digo: Deus pode suscitar, destas pedras, filhos de Abraão. O machado já está posto à raiz das árvores. Por isso, toda a árvore que não dá fruto será cortada e lançada ao fogo. Eu batizo-vos com água, para vos levar ao arrependimento. Mas Aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu, e não sou digno de levar as suas sandálias. Ele batizar-vos-á no Espírito Santo e no fogo. Tem a pá na sua mão: há de limpar a eira e recolher o trigo no celeiro. Mas a palha, queimá-la-á num fogo que não se apaga».
Mateus faz surgir João batista como uma surpresa de Deus. João está no deserto a preparar o caminho do Senhor. Ele é “a voz da voz que clama no deserto”. Despojado de todos os requisitos para viver na cidade, no convívio social com pessoas importantes, João vive no deserto, vestido de peles de camelo e comendo mel silvestre e gafanhotos. A pobreza dá-lhe a liberdade para falar contra a farsa dos fariseus que descem à água para serem batizados. E a coragem de arriscar a própria vida por causa daquele que vem depois dele, “batizar no Espírito Santo e no fogo”.
Reflexão da Palavra
As palavras do início do texto de Isaías “naquele dia, sairá um ramo do tronco de Jessé” começam a realizar-se quando o evangelho de Mateus afirma “naqueles dias, apareceu João Baptista”. João não é aquele que Isaías anuncia, mas anuncia a chegada para breve daquele sobre quem “repousará o espírito do Senhor”. Isso mesmo afirma João ao dizer “Aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu e não sou digno de levar as suas sandálias. Ele batizar-vos-á no Espírito Santo e no fogo”. Os dois anunciam um Messias que vem fazer justiça segundo a verdade e não “segundo as aparências”.
Animado pelo Espírito, de acordo com Isaías, Ele julga com o “chicote da sua palavra” e “o sopro dos lábios” e segundo João, ele tem “na mão a pá de joeirar” e o “machado à raiz das árvores” que não dão fruto.
Em Isaías o alvo da justiça de Deus são os violentos e os ímpios, para João são os fariseus que se aproximam do batismo num gesto exterior que não corresponde à atitude interior, porque não estão arrependidos, não estão dispostos à conversão. Por isso lhes chama víboras e os ameaça com o machado que corta o mal pela raiz e com a pá que separa o trigo da palha que será queimada no fogo do Espírito.
Os infelizes e os humildes, as gentes de Jerusalém, da Judeia e da região do Jordão, que vêm arrependidos ouvir João, confessam os seus pecados e são batizados. Esses poderão viver na paz proclamada pelo salmo, simbolizada por Isaías na harmonia entre os animais e na imagem da criança que mete “a mão na toca da víbora”. Esta será “uma grande paz até ao fim dos tempos”.
O resultado final desta justiça, é para Paulo, o caminho novo, anunciado por João como caminho do Senhor, que pode ser percorrido por todos, também pelos gentios que vivam unidos numa só alma e com uma só voz, alimentando os mesmos sentimentos uns para com os outros no seguimento de Cristo que se fez servo para dar cumprimento às promessas anunciadas nas Escrituras.
Meditação da Palavra
Nas figuras de Isaías e João Batista surge a palavra que desafia à coragem de mudar de vida e construir um mundo novo, ainda que, diante de nós os sinais de paz e de harmonia sejam difíceis de encontrar. Esse mundo novo começa dentro de cada um, ali onde se encontra a víbora, aninhada no mais íntimo e disposta a envenenar com palavras e gestos a nossa existência e a dos outros. Um mundo de feras que não permite a sobrevivência do cordeiro. Um mundo de fariseus que dissimulam com gestos exteriores as intenções do coração.
Há Alguém que vem inaugurar esse mundo novo de harmonia e paz, mesmo que os homens prefiram a guerra, a desordem e o caos. Há alguém que vem transformar as relações injustas em sinais de proteção e libertação, mesmo que teimemos em permanecer na indiferença para com os pobres e os humildes. Há alguém que vem salvar com o fogo do Espírito, mesmo que rejeitemos a proposta de conversão que é gritada no deserto. Esse Alguém é Jesus, o Messias esperado. O seu caminho já está a ser preparado por Isaías e João e pode sê-lo também por nós, se quisermos vencer a dissimulação de quem, em vez de procurar a justificação que vem de Deus, procura desculpas justificativas para continuar a viver longe de Deus e dos outros.
Aquele que vem e para o qual somos convidados, por João, a dirigirmos o nosso olhar ao longo de toda vida, vai dar início a um tempo novo, a um mundo novo, a uma nova civilização, atendendo os pobres, os humildes, os infelizes e os pecadores verdadeiramente arrependidos.
Perante o Jesus que vem salvar podemos continuar a tomar a atitude dissimulada dos fariseus ou assumir o olhar de esperança de Isaías. Podemos traduzir em nós o desprendimento de João que se assume como mais pequeno que Jesus, indigno de levar as suas sandálias e necessitado de receber o seu batismo no Espírito e no fogo.
Podemos assumir a atitude do povo que acorre a João, na esperança de receber no batismo a água que purifica do pecado confessado, na expetativa de podermos fazer o caminho plano que leva ao encontro do Messias.
Desde já, é possível chegar a Belém e ver no menino de Maria, o Messias que arrisca meter a mão na toca da víbora porque não teme o veneno do pecado e aceita brincar com o lobo apesar de ser cordeiro porque está disposto a dar a vida pela paz.
Neste domingo do Advento é possível ir ao deserto e ouvir a voz daquele que convida a viver os sentimentos que há em Cristo e viver com todos na unidade de um só coração e uma só alma.
Oração
Senhor!
Que não me falte a coragem de ir ao deserto e descer às águas do Jordão para iniciar um novo caminho. Ouvindo “a Voz que clama no deserto” que anuncia à conversão, que não me falte a coragem para me confessar pobre e humilde, necessitado de justificação. Que a tua palavra me fortaleça na esperança e me renove nos sentimentos para com os outros até chegar a ser, com eles, um só coração e uma só voz.
Desafio para a semana
Desprendo-me de tudo o que é supérfluo, que me impede de viver a esperança de Isaías e de assumir o desafio de aplanar em mim o caminho da justiça e da paz, em unidade de sentimentos com os outros.