Chegar mais alto – subir à cruz ou subir ao poder

As palavras rebentaram-lhe na boca e espremeram-lhe o coração. Oxalá nunca as tivesse dito. Estava à beira de dizer “basta” e as palavras ecoavam-lhe dentro da sua cabeça: “Irei contigo até ao fim do mundo”. Oxalá nunca as tivesse pronunciado. Agora era tarde e sentia que a decisão deste momento, era uma traição ao amor entusiasmado do início.

Até onde estou disponível para ir contigo?

LEITURA I Is 53, 10-11

Aprouve ao Senhor esmagar o seu servo pelo sofrimento. Mas, se oferecer a sua vida como sacrifício de expiação, terá uma descendência duradoira, viverá longos dias, e a obra do Senhor prosperará em suas mãos. Terminados os sofrimentos, verá a luz e ficará saciado na sua sabedoria. O justo, meu servo, justificará a muitos e tomará sobre si as suas iniquidades.

O servo do Senhor, de que fala Isaías e que nós identificamos com Cristo na sua paixão, ofereceu a sua vida em união com os pecadores. O seu sacrifício foi eficaz e cumpriu o objetivo de reconciliar com Deus toda a humanidade. Agora todos temos acesso à nova vida que é dom de Deus.

Salmo 32 (33), 4-5.18-19.20.21 (R. 22)

O salmista reconhece a grandeza do Senhor que se manifesta na sua palavra, verdadeira, eficaz e criadora. Pelos seus feitos em favor de Israel e pelas vitórias que concede ao rei, Israel deve colocar no Senhor a sua confiança.

LEITURA II Heb 4, 14-16

Irmãos: Tendo nós um sumo sacerdote que penetrou os Céus, Jesus, Filho de Deus, permaneçamos firmes na profissão da nossa fé. Na verdade, nós não temos um sumo sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas. Pelo contrário, Ele mesmo foi provado em tudo, à nossa semelhança, exceto no pecado. Vamos, portanto, cheios de confiança ao trono da graça, a fim de alcançarmos misericórdia e obtermos a graça de um auxílio oportuno.

Também a carta aos hebreus propõe a total confiança em Deus, “vamos cheios de confiança ao trono da graça”. Jesus, que experimentou as nossas fragilidades, não é nosso inimigo, é nosso irmão, “capaz de se compadecer das nossas fraquezas”. A sua solidariedade para connosco levou-o a oferecer a sua própria vida em sacrifício. Ele é o verdadeiro sacerdote que “penetrou os Céus”, mas continua junto de nós.

EVANGELHO – Forma longa Mc 10, 35-45

Naquele tempo, Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe: «Mestre, nós queremos que nos faças o que Te vamos pedir». Jesus respondeu-lhes: «Que quereis que vos faça?». Eles responderam: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda». Disse-lhes Jesus: «Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu vou beber e receber o batismo com que Eu vou ser batizado?». Eles responderam-Lhe: «Podemos». Então Jesus disse-lhes: «Bebereis o cálice que Eu vou beber e sereis batizados com o batismo com que Eu vou ser batizado. Mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não Me pertence a Mim concedê-lo; é para aqueles a quem está reservado». Os outros dez, ouvindo isto, começaram a indignar-se contra Tiago e João. Jesus chamou-os e disse-lhes: «Sabeis que os que são considerados como chefes das nações exercem domínio sobre elas e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder. Não deve ser assim entre vós: quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos; porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos».

Depois do terceiro anúncio da paixão, dois discípulos de Jesus manifestam o seu interesse em ocupar os primeiros lugares à sua direita e à sua esquerda. Os outros discípulos ficam indignados por eles terem a coragem de manifestar a Jesus este interesse que era de todos. Jesus ensina que, com ele, o lugar mais importante é o último e que a atitude certa para os seus discípulos é a do serviço.

Reflexão da Palavra

O texto de Isaías, tirado do quarto cântico do servo de Iahvé não é um elogio ao sofrimento. Esta seria uma conclusão precipitada das palavras “aprouve a Deus esmagar o seu servo pelo sofrimento”. Na verdade, no início do cântico não se proclama o sofrimento, mas o êxito “o meu servo terá êxito, será muito engrandecido e exaltado” (Is 52,13). A grandeza do servo não está no facto de sofrer, mas na fidelidade apesar do sofrimento. Na sua confiança o servo compreende que o sofrimento não é uma fatalidade ou uma desgraça ou um castigo de Deus. Para o servo é um sacrifício que ele aceita livremente para benefício de outros.  A origem do sofrimento está no pecado dos homens e não em Deus e ele, com o seu sacrifício, abre um caminho de reconciliação para todos.

O salmo 32 é um hino de louvor configurado em três partes. A primeira (v. 1-3) é uma introdução, a segunda, (v. 4-19) apresenta as intenções do louvor, e a terceira (v. 2022) é uma súplica conclusiva.

O salmista começa por convidar os justos e os retos de coração a louvar o Senhor com música, cânticos e aclamações. São indicados os instrumentos musicais como a cítara e a harpa de dez cordas. Os instrumentos devem ser tocados com arte e o cântico deve ser “um cântico novo”.

As motivações do louvor são a palavra do Senhor, que é verdadeira, eficaz e criadora; a misericórdia do Senhor que preside a toda a criação; os planos do Senhor que  são distintos dos planos das nações e permanecem para sempre; Israel tem por Deus o Senhor que o escolheu e vigia sobre a sua vida discernindo as suas obras; acompanha o rei nas suas batalhas e garante-lhe a vitória. Por todas estas razões devem louvar o Senhor, e colocar nele a total confiança “Ele é o nosso amparo e protetor”.

A carta aos hebreus apresenta Jesus como o Grande sacerdote que entrou nos céus depois de ter passado pelo sofrimento e pela morte, num sacrifício livremente assumido em favor dos irmãos. Ele não é um sacerdote à medida dos sacerdotes do templo de Jerusalém que são pecadores. Ele é inocente, “foi provado em tudo, à nossa semelhança”, mas não cometeu qualquer pecado. Experimentou a nossa fragilidade e, por isso, se compadece de nós. Não ficou indiferente, nem se revoltou contra nós por termos carregado sobre ele o peso dos nossos pecados. Foi ele quem voluntariamente carregou com as nossas culpas e, com o seu sacrifício, se tornou para toda a humanidade o sacerdote que nos convém como intercessor. Confiados nele, podemos “permanecer firmes na profissão da nossa fé” e ir “cheios de confiança ao trono da graça”, certos de que “alcançaremos misericórdia e a graça de um auxílio oportuno”.

O evangelho de Marcos é curioso na forma como apresenta os anúncios da paixão. O primeiro anúncio é feito depois de Pedro ter feito a profissão de fé em Jesus “tu és o Messias”, como resposta à pergunta de Jesus “e vós, quem dizeis que eu sou?” e obtém de Pedro uma repreensão. A segunda é feita quando Jesus desce com Pedro, Tiago e João do monte depois da transfiguração. Desta vez ficaram a discutir sobre o que seria ressuscitar dos mortos. O texto do evangelho deste domingo é a resposta de Tiago e João ao terceiro anúncio da paixão. De facto, imediatamente antes, Jesus diz “subimos a Jerusalém e o Filho do Homem vai ser entregue aos sumos sacerdotes e aos doutores da Lei, e eles vão condená-lo à morte e entrega-lo aos gentios. E hão de escarnece-lo, cuspir sobre ele, açoitá-lo e matá-lo” (Mc 10, 33-34).

Claramente, Jesus aparece na atitude de serviço. Ele sobe a Jerusalém e, no caminho, reúne os seus discípulos para, pela terceira vez, anunciar a sua paixão que é um serviço à humanidade. Os discípulos sobem com ele fisicamente, mas não o acompanham na intenção e isso vê-se na resposta que dão os irmãos, filhos de Zebedeu. Tiago e João, ainda estão iludidos com a possibilidade de Jesus chegar a ser rei de Israel. Mesmo assim, Jesus não os repreende, põe-se ao seu serviço apontando o caminho e ensinando-lhes a verdadeira atitude do discípulo. O caminho é o cálice e o batismo e estes são, a cruz e a morte.

Os discípulos não entendem nada quando Jesus fala da paixão. É uma realidade que não está no seu horizonte. Eles sonham com os melhores lugares no reino dos céus. Jesus ensina-lhes, com paciência, o caminho da cruz como caminho de todo o discípulo, “podeis beber o cálice que Eu vou beber e receber o batismo com que Eu vou ser batizado?”. Inconscientes, não sabem o que pedem e mostram-se prontos para o que for necessário e respondem, “podemos”. Percebemos, porque o evangelista nos foi ensinando, que eles não estão a falar a mesma linguagem de Jesus. Para Jesus o cálice e o batismo são a paixão e a morte, mas para eles trata-se da glória e do poder que esperam receber de Jesus quando ele se sentar no trono de David. A resposta dos dois irmãos provoca a indignação dos demais.

Para Jesus, nem a atitude dos dois irmãos nem a dos dez restantes discípulos é digna de um discípulo. Por isso, continua a ensiná-los no caminho do serviço de que ele mesmo é exemplo, “quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos” porque é essa a opção de Jesus “o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos”.

A missão de Jesus é servir a humanidade dando a vida como servo que está ao serviço e não distribuir cargos importantes no reino de seu Pai. Essa função pertence única e exclusivamente ao Pai.

Meditação da Palavra

Toda a liturgia da palavra deste domingo se orienta para a conclusão do evangelho, “o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos”. Este é o ideário de Jesus, atestado por Isaías na descrição que faz do servo de Iahvé e na epístola aos hebreus. O servo de Iahvé vê-se esmagado pelo sofrimento, oferece a sua vida como sacrifício de expiação, toma sobre si as iniquidades de todos. É uma descrição que nos lembra Jesus no mistério da paixão que ele, por três vezes anunciou aos discípulos. Jesus é também o sumo sacerdote que entrou nos céus e, porque “foi provado em tudo” pode compadecer-se de nós e das nossas fraquezas, abrindo um caminho de acesso ao trono da graça onde alcançaremos misericórdia.

O evangelho apresenta-nos uma vez mais os dois irmãos, Tiago e João, filhos de Zebedeu. Já os conhecemos do início do evangelho de Marcos, quando em 1, 19-20, Jesus os encontrou “no barco a consertar as redes”. Perante o chamamento deixaram tudo, o barco as redes e o pai, entusiasmados com a ideia de seguir Jesus. Conhecemo-los também pela proximidade a Jesus. Eles são os escolhidos, juntamente com Pedro, para irem a casa de Jairo quando Jesus ressuscitou a menina acabada de morrer e para assistirem à transfiguração de Jesus no cimo do monte. Eles são os primeiros a serem escolhidos para constituírem o grupo dos doze.

Aparecem no evangelho deste domingo, um tanto desfigurados em relação àquele entusiasmo inicial. Após o terceiro anúncio da paixão, eles revelam não estar com Jesus. A reação dos discípulos aos sucessivos anúncios da paixão foi sempre negativa. Jesus nunca encontrou disponibilidade para irem com ele até à morte. Para os discípulos, a subida a Jerusalém acalentava a esperança de verem Jesus restaurar o reino de David e sentar-se no seu trono para governar o povo do Senhor, porque reconheciam nele o Messias.

Após o terceiro anúncio da paixão, o mais pormenorizado de todos, como se pode ler “subimos a Jerusalém e o Filho do Homem vai ser entregue aos sumos sacerdotes e aos doutores da Lei, e eles vão condená-lo à morte e entrega-lo aos gentios. E hão de escarnece-lo, cuspir sobre ele, açoitá-lo e matá-lo” (Mc 10, 33-34), os dois irmãos revelam o que todos os discípulos traziam como desejo dentro deles e que não lhes deixava espaço para aceitar a morte de Jesus, “concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda”. A estas palavras os doze, diz Marcos, “começaram a indignar-se contra Tiago e João”.

A atitude dos dois irmãos, inconscientes perante a realidade anunciada por Jesus sobre o cálice e o batismo que ele vai receber, assim como a indignação dos restantes dez, revelam que nenhum deles está com Jesus, não têm os mesmos sentimentos. Todos caminham fisicamente atrás do mestre, mas a razão que os arrasta não coincide com a de Jesus. Literalmente, eles querem subir ao trono e Jesus quer subir à cruz, eles querem o poder e Jesus entrega a vida, eles querem a glória dos homens e Jesus procura a reconciliação dos homens com o Pai.

O grupo dos doze, núcleo da Igreja nascente, revela-se complexo, com dificuldade em unir-se no mesmo objetivo, sem disponibilidade para abraçar o projeto de Jesus. Apesar da atitude dos doze, Jesus não se exalta nem os repreende, mas dispõe-se a ensinar o caminho pelo qual todos devem seguir. Estão dispostos a beber o cálice e a receber o batismo de Jesus, então devem assumir também os critérios dessa decisão, bem diferentes dos critérios do mundo. No mundo “os que são considerados como chefes das nações exercem domínio sobre elas e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder”. No entanto, para os que querem ser verdadeiros discípulos de Jesus, “não deve ser assim”. Os discípulos devem ser como o Mestre que “não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos”, portanto, “quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos”.

Para Jesus, em nenhum momento se coloca a hipótese de escolher outros discípulos, chamar outros que compreendam a sua decisão e aceitem ir com ele até ao fim, sem resistências interiores, sem manobras de interesse próprio e sem jogadas de interesses ideológicos. Pelo contrário, Jesus assume as fragilidades de cada um e carrega sobre ele as iniquidades de todos, até que eles compreendam que o caminho escolhido, sendo difícil, é o que leva ao trono da graça e oferece a desejada misericórdia. A paciência de Jesus revela a paciência que cada discípulo há de ter com os outros, porque ainda vamos a caminho. Servir os outros na paciência de quem sabe esperar o momento em que os outros se dispõem a uma verdadeira conversão, assumindo a subida a Jerusalém como caminho de imitação de Jesus e na disponibilidade de servir e dar a vida por todos, é o que Jesus nos propõe hoje.

Em todos os homens, de todos os tempos, permanece a tentação do poder e a vaidade de ocupar os lugares mais importantes. Nós e os nossos irmãos também sofremos esta tentação. Por vezes até transformamos os serviços que prestamos à comunidade em armas de poder para evidenciar a distância entre nós e os outros. O exemplo de Tiago e João, deve servir para fugir desta tentação e as palavras de Jesus, juntamente com o seu testemunho na cruz, hão de servir para nos motivarmos à humildade e à descoberta da alegria de servir.

Rezar a Palavra

Na palavra que hoje me ofereces, Senhor, encontro o chamamento ao serviço e o desafio da humildade. Em mim sinto constantemente o apelo a ocupar o primeiro lugar, a passar à frente de todos, a mostrar que sou melhor e mais importante, que mereço mais do que todos ser o centro das atenções. Tu, Senhor, ensinas-me que o teu caminho, o da cruz, é o único que leva ao trono da graça.

Compromisso semanal

Quero subir ao trono da graça e encontrar misericórdia.