Iniciamos a Quaresma, o tempo litúrgico que abarca os quarenta dias até à celebração da Páscoa. Agora até temos ouvido falar de “quarentenas” que devem ser cumpridas, uma palavra que tem a mesma raiz, mas cujo tempo de duração se encurtou ficando reduzido a uns tantos dias de isolamento profiláctico. Nós celebramos os quarentas dias e revisitamos o significado bíblico deste tempo, onde se inspira a Liturgia, como um tempo de amadurecimento, de revitalização, um tempo terapêutico, de interioridade, de recordar e viver as experiências libertadoras, fazendo as perguntas apropriadas e procurando as respostas que Deus dá.
Na nossa linguagem religiosa dizemos também que é um tempo de conversão. É a conversão que nos abre as portas do futuro e nos faz descobrir a misericórdia de Deus; faz-nos dar um abanão na indiferença e na monotonia do quotidiano levando-nos até ao deserto para fazer a experiência que Jesus fez. Queremos começar esta caminhada com os olhos fixos n’Ele. Ninguém, na história, soube dar uma interpretação mais autêntica sobre a condição humana. Este ano lemos o Evangelho de Marcos, aquele que nos diz que o homem Jesus, assim tão humano, era, realmente, Deus.

  1. As vicissitudes da humanidade e o amor de Deus

– Ao longo da história, a humanidade experimentou muitas calamidades (dilúvio, pestes, domínio de poderosos impérios, fome…) e, apesar de tudo, foi-se sempre renovando porque Deus vai refazendo a sua história de amor com os homens. Foi assim logo desde o princípio quando Deus, depois do dilúvio, estabeleceu uma aliança com todos os seres criados por sua iniciativa. É uma aliança universal, com todas as criaturas, cuja garantia é unicamente o amor de Deus porque nem sequer são exigidas contrapartidas…
– A própria natureza dá-nos sinais desta aliança de Deus com a Sua criação: o arco-íris da aliança com Noé e a nova criação saída da arca, é o resultado do contraste da chuva com o sol… Este sinal parece representar a presença amorosa de Deus que sustém a humanidade e a criação inteira…
– Para nós, cristãos, esta aliança completa-se definitivamente em Jesus Cristo… O Evangelho de hoje, logo no início da Sua actividade, situa-O no deserto, um lugar de prova, que tanto pode levar à depressão como pode gerar o encontro consigo mesmo e com Deus: aquele Espírito que desceu sobre Jesus no Baptismo é o mesmo que O conduz ao deserto e O leva a reflectir sobre a sua missão…

  1. O deserto: lugar de decisões

– O deserto é um lugar difícil e inóspito, de exposição a muitos problemas; neste lugar, ninguém sabe mais que os outros, ninguém tem mais, e ninguém manda mais… O deserto é sinal de pobreza, de austeridade, da simplicidade mais absoluta porque nada ali está construído… É por isso que se converte no lugar onde o homem sincero e simples experimenta a maravilhosa providência de Deus… Uma vez superada a tentação e a prova, é o lugar por excelência do encontro com Deus, da Sua manifestação e do exercício da liberdade…
– Foi no deserto que Jesus fez a sua escolha, no meio das incertezas, da insegurança e das fragilidades: disse não ao poder, ao dinheiro e à violência… Escolheu o caminho da humildade: humilhou-se a si próprio, assumiu a condição humana, e fez-se servo de todos… O deserto permitiu-lhe também experimentar uma convivência harmoniosa com todos os seres criados e assim restabelecer as relações do princípio da criação quebradas por Adão (Gn 2,19-20)… A própria “arca de Noé” já tinha dado um sinal desta nova harmonia… Mas é Jesus que redime toda a criação…

  1. O nosso deserto

– Em certo sentido também se pode dizer que nós estamos “a atravessar um deserto”: pensávamos que éramos os donos do mundo, os únicos senhores e proprietários e, de um momento para o outro, vemo-nos desprotegidos, cansados e inseguros…
– Sentimos que devemos aprender outras coisas, que o Espírito que conduziu Jesus ao deserto, também nos deve conduzir nesta Quaresma e ajudar-nos a fazer as escolhas acertadas enfrentando “de caras” as tentações…
– O Evangelista Marcos não descreve as tentações como fazem Mateus e Lucas, talvez para nos indicar que o núcleo da tentação é sempre o mesmo: separar-nos do projecto de Deus, querer ser independentes e autónomos, pensar que não precisamos de arrependimento nem de conversão…
– É no meio das dificuldades que ressoa a palavra: “cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai na Boa Nova”. No vazio do deserto em que a humanidade se encontra, proclamamos com esperança que as incertezas e o medo hão-de passar… A conversão passa pela vontade de transformar os corações, os objectivos de vida e as preocupações de todos os dias; por reformular valores que dêem sentido à nossa existência… Quando o mundo se constrói sem Deus, constrói-se contra o homem e é preciso salvar o homem construindo o mundo com Deus… É este o grande significado das tentações de Jesus no deserto: construir o mundo com Deus.