Por quem caminhas?

Sob o sol escaldante do verão caminham lado a lado pelos campos. Vão na mesma direção. Mantêm o passo acertado, conscientes de que não vão sós. Pisam o mesmo chão e sentem o mesmo pó sujar-lhes os pés. Seguem lado a lado, mas não vão juntos. Cada um vai por si. Vão na mesma direção, mas não no mesmo sentido. Acertam o passo, mas não o coração. Pisam o mesmo chão e respiram o mesmo pó, mas não vivem o mesmo sonho nem respiram o mesmo espírito. Um avança por si, o outro avança por todos. Um quer ser grande, o outro quer ser pequeno. Um quer subir ao trono, o outro quer subir à cruz.

LEITURA I Sab 2, 12.17-20

Disseram os ímpios: «Armemos ciladas ao justo, porque nos incomoda e se opõe às nossas obras; censura-nos as transgressões à lei e repreende-nos as faltas de educação. Vejamos se as suas palavras são verdadeiras, observemos como é a sua morte. Porque, se o justo é filho de Deus, Deus o protegerá e o livrará das mãos dos seus adversários. Provemo-lo com ultrajes e torturas, para conhecermos a sua mansidão e apreciarmos a sua paciência. Condenemo-lo à morte infame, porque, segundo diz, Alguém virá socorrê-lo.

Dominados pela influência pagã, muitos judeus já não têm fé e perderam todas as referências morais aos mandamentos. Vivendo assim, não suportam os justos, aqueles que se mantêm fiéis ao Senhor e procuram em cumprir a sua lei. Movem, então, uma perseguição para pôr à prova a paciência e a fidelidade do justo.

Salmo 53 (54), 3-4.5.6.8 (R. 6b)

Vendo-se perseguido por todos os lados e sentindo a sua vida em perigo, o salmista, cheio de confiança, suplica a Deus que o salve, “salvai-me pelo vosso nome”, que lhe faça justiça, “fazei-me justiça”, pois está inocente e não merece que lhe queiram dar a morte.

LEITURA II Tg 3, 16 – 4, 3

Caríssimos: Onde há inveja e rivalidade, também há desordem e toda a espécie de más ações. Mas a sabedoria que vem do alto é pura, pacífica, compreensiva e generosa, cheia de misericórdia e de boas obras, imparcial e sem hipocrisia. O fruto da justiça semeia-se na paz para aqueles que praticam a paz. De onde vêm as guerras? De onde procedem os conflitos entre vós? Não é precisamente das paixões que lutam nos vossos membros? Cobiçais e nada conseguis: então assassinais. Sois invejosos e não podeis obter nada: então entrais em conflitos e guerras. Nada tendes, porque nada pedis. Pedis e não recebeis, porque pedis mal, pois o que pedis é para satisfazer as vossas paixões.

Tiago alerta a comunidade para os males que dominam o interior do homem e perturbam as relações com os irmãos e com Deus. Aquele que se deixa dominar pela inveja e pela rivalidade acaba a provocar conflitos, guerras e morte e não adianta rezar, nestas circunstâncias, porque a sua oração está contaminada. Só a sabedoria de Deus pode dominar as paixões e semear a paz, porque é pura, pacífica, compreensiva e generosa.

EVANGELHO Mc 9, 30-37

Naquele tempo, Jesus e os seus discípulos caminhavam através da Galileia. Jesus não queria que ninguém o soubesse, porque ensinava os discípulos, dizendo-lhes: «O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens, que vão matá-l’O; mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará». Os discípulos não compreendiam aquelas palavras e tinham medo de O interrogar. Quando chegaram a Cafarnaum e já estavam em casa, Jesus perguntou-lhes: «Que discutíeis no caminho?». Eles ficaram calados, porque tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior. Então, Jesus sentou-Se, chamou os Doze e disse-lhes: «Quem quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo de todos». E, tomando uma criança, colocou-a no meio deles, abraçou-a e disse-lhes: «Quem receber uma destas crianças em meu nome é a Mim que recebe; e quem Me receber não Me recebe a Mim, mas Àquele que Me enviou».

Enquanto Jesus se dedica a ensinar aos discípulos que precisam de estar preparados para a sua paixão, que vai acontecer em Jerusalém, eles entretêm-se a falar uns com os outros sobre qual deles é o maior. Em resposta a esta atitude, Jesus recorda-lhes que os seus discípulos não são os que querem ser importantes, mas os que fazem tudo gratuitamente, por amor.

Reflexão da Palavra

Tirado do livro da Sabedoria, o texto da primeira leitura coloca em confronto os que se afastaram da fé e dos mandamentos e os que permanecem fiéis ao Senhor e procuram cumprir a lei.

A fidelidade do justo incomoda a hipocrisia dos ímpios. Por isso, estes, não admitindo que outros vivam o que eles rejeitam por se terem afastado da fé e da lei, movem uma perseguição aos justos, “provemo-lo com ultrajes e torturas… condenemo-lo à morte infame”, para verificarem “se as suas palavras são verdadeiras”, “conhecermos a sua mansidão e apreciarmos a sua paciência”, confirmarem “se o justo é filho de Deus”, e testarem se “Deus o protegerá e o livrará das mãos dos seus adversários”.

Estão aqui patentes as tentações que encontramos na vida de Jesus. No deserto, o demónio tentou Jesus, dizendo “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, pois está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, a fim de que eles te guardem; e também: Hão de levar-te nas suas mãos, com receio de que firas o teu pé nalguma pedra” (Lc 4,9-11)  e na cruz provocaram-no dizendo “Se és Filho de Deus, desce da cruz”.

O salmo 53 é uma suplica do justo no meio da perseguição que os ímpios lhe moveram. O salmo está construído em três partes. Primeiro pede auxílio “salvai-me”, “fazei-me justiça”, ouvi a minha oração, atendei às palavras da minha boca” e, expõe a razão do seu pedido de auxílio, “levantaram-se contra mim os arrogantes e os violentos atentaram contra a minha vida”. Na segunda parte manifesta a sua confiança no Senhor, “Deus vem em meu auxílio, o Senhor sustenta a minha vida” ao contrário dos que o perseguem que “não têm a Deus na sua presença”. Finalmente, o salmista, propõe-se fazer uma ação de graças, “de bom grado oferecerei sacrifícios, cantarei a glória do vosso nome, Senhor”.

Tiago alerta para a diferença entre a sabedoria que vem do alto e a sabedoria terrena. São duas perspetivas distintas com origens também distintas. A sabedoria do alto tem a sua origem em Deus e a sabedoria terra tem a origem diabólica.

A sabedoria terrena produz a inveja, a rivalidade, a desordem e toda a espécie de más ações, enquanto que a sabedoria do alto produz a paz, porque é pura, compreensiva e generosa. Tiago acrescenta ainda que os males deste mundo provêm do instinto, das paixões desordenadas, que contaminam as relações entre os homens e a relação com Deus. Por isso nascem as guerras e as orações não são escutadas.

Com Marcos estamos no caminho para Jerusalém. No domingo passado, Jesus deu início a este caminho e fez o primeiro anúncio da paixão. Hoje, depois de ter passado pela transfiguração no monte Tabor, Jesus fala pela segunda vez da sua morte que vai acontecer em Jerusalém.

Jesus continua o caminho da Galileia para Jerusalém e o evangelista especifica que ele não quer ser incomodado “porque ensinava os discípulos”. Já no domingo passado Marcos dizia “começou, depois, a ensinar-lhes” (8,31). Isto significa que o caminho para Jerusalém é um tempo de escola, na qual Jesus é o mestre e os discípulos são os alunos.

O conteúdo do ensino é muito claro, mas estranho, “O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens, que vão matá-l’O; mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará”, o mesmo conteúdo do primeiro anúncio da paixão.

Jesus é o “Filho do homem” e, ao ensinar os discípulos o conteúdo da sua missão, está já a viver o mistério da sua entrega, porque a paixão não é um acontecimento futuro, é algo sempre presente na sua vida.

A determinação de Jesus contrasta com o medo dos discípulos. O mestre ensina com autoridade e os discípulos experimentam o medo, ao ponto de nem fazerem perguntas. As palavras de Jesus não concordam com os objetivos dos discípulos. A subida a Jerusalém não tem por objetivo a concretização das suas expetativas, mas uma realidade totalmente inesperada para a qual não estão preparados. De facto, a diferença de projetos fica patente quando, já em casa, em Cafarnaum, Jesus questiona os discípulos sobre o que vinham a discutir no caminho. Também a esta pergunta respondem com silêncio.

A discussão dos discípulos incide sobre aquelas “coisas dos homens” que Jesus censurou em Pedro. Eles discutiam sobre “qual deles era o maior”. Jesus, no caminho, fala das coisas de Deus e eles falam das coisas dos homens. Então, de novo, Jesus, tomando a posição de mestre, chamou os discípulos para os ensinar sobre quem está no centro das suas prioridades. Aquele que quer ser o primeiro tem de se identificar com Jesus e escolher as suas prioridades. Ora, Jesus identifica-se com os últimos, os servos, as crianças, pois ele veio “para servir e dar a vida”. Por isso, quem acolher o último e se identificar com ele, acolhe o próprio Jesus e torna-se, como Jesus, servo.

Meditação da Palavra

Jesus é o verdadeiro Justo, de que fala a primeira leitura, “o Filho do Homem que vai ser entregue às mãos dos homens” como ensina o evangelho e a explicação para a sua morte é dada por Tiago, na segunda leitura, quando afirma que as guerras e os conflitos vêm das “paixões que lutam nos vossos membros”. Jesus não vem instaurar o reino mediante a espada ou a violência como fazem alguns revolucionários. O seu projeto nasce da sabedoria de Deus que “é pura, pacífica, compreensiva e generosa”.

O quadro da paixão de Jesus é anunciado por três vezes no evangelho de Marcos. A primeira, que tivemos oportunidade de refletir no domingo passado, apanha os discípulos desprevenidos ao ponto de Pedro se interpor diante de Jesus querendo demovê-lo da decisão de subir a Jerusalém e arriscar a morte. A segunda, escutamos hoje.

A importância de preparar os discípulos para o que vão encontrar em Jerusalém é tão grande, que Jesus quer ir sozinho com os discípulos, “caminhavam através da Galileia… não queria que ninguém o soubesse”. No entanto, Jesus encontra um obstáculo que é o mundo interior, o mundo que vai dentro dos apóstolos. Enquanto ele fala da sua paixão, “o Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens, que vão matá-l’O; mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará”, que é o projeto de Deus para a salvação dos homens, eles vão a discutir sobre questões dos homens, “tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior”.

É o permanente confronto entre Deus e o mundo, entre o projeto de Jesus e o projeto dos discípulos, entre o justo e o ímpio, entre o verdadeiro Messias e o messias esperado pelo povo. De facto, os critérios de Deus estão distantes dos critérios dos homens, como Jesus disse a Pedro “não compreendes as coisas de Deus, mas só as dos homens” Mc 8,33),  ou como se lê em Isaías 55,9 “tanto quanto os céus estão acima da terra, assim os meus caminhos estão acima dos vossos, e os meus planos estão acima dos vossos planos”.

Aquele que não se deixa instruir por Deus, pela sua sabedoria, acaba convencido pelos seus próprios critérios ou pelos critérios do mundo. É essa a situação retratada no livro da Sabedoria. Num tempo em que a influência pagã atingiu o mundo judaico, os jovens deixaram-se vencer pela ideia generalizada de que não há Deus, e se há, não vê, e se vê, não se interessa ou, é tão bom que perdoa tudo. Afastados de Deus e da lei terminam configurados como ímpios, a quem a postura dos justos, dos tementes a Deus, dos que permanecem fiéis, incomoda, até ao ponto de se alegrarem com a sua morte.

Percebemos aqui o anúncio da morte de Jesus e das razões da sua condenação, que são também as razões para a perseguição de todos os que, pela sua conduta, censuram os que vivem só para si fechados na “inveja e rivalidade”, na “desordem e toda a espécie de más ações”.

Estes, opõem-se aos justos, os que vivem segundo “a sabedoria que vem do alto” que “é pura, pacífica, compreensiva e generosa, cheia de misericórdia e de boas obras, imparcial e sem hipocrisia”. São assim, os que se fazem como crianças, os que ocupam o último lugar, “quem quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo de todos”, porque é com esses que Jesus se identifica e a esses acolhe abraçando, “tomando uma criança, colocou-a no meio deles, abraçou-a” e disse-lhes “quem receber uma destas crianças em meu nome é a Mim que recebe”.

Ao falar da sua paixão no caminho para Jerusalém e mostrando-se disposto a enfrentar a impiedade dos homens, Jesus pretende mostrar a diferença entre os justos e ímpios, entre os que se reconhecem como filhos de Deus e confiam nele, mesmo no meio da perseguição, e os ímpios que “não têm a Deus na sua presença”, entre os que vivem das “paixões que lutam nos seus membros” e os que “praticam a paz”.

O terreno dos ímpios é escorregadio porque, ao quererem pôr o justo à prova “com ultrajes e torturas, para conhecermos a sua mansidão e apreciarmos a sua paciência” e condená-lo “à morte infame, para ver se “Alguém virá socorrê-lo”, estão a contaminar a própria vida. Estão a entrar no caminho denunciado por Tiago em que, “cobiçais e nada conseguisSois invejosos e não podeis obter nadanada tendes, porque nada pedis. Pedis e não recebeis, porque pedis mal”.

Este é o caminho dos “arrogantes e violentos” que armam ciladas ao justo, o ultrajam e torturam, assassinam e provocam conflitos e guerras, dos que competem entre si na busca do primeiro lugar. É o caminho dos que procuram dar a morte a Jesus. Os discípulos de Jesus não podem seguir por este caminho.

O caminho de Jesus é o caminho do justo que sabe que Deus o vem salvar. É o caminho do último que não espera nada em troca e sabe que não tem nada a perder porque a morte do justo é cara aos olhos do Senhor.

Os discípulos “não compreendiam aquelas palavras e tinham medo de O interrogar”, porque para entender é necessário abandonar os próprios critérios de vida, vencer as paixões que lutam dentro de nós e aceitar os critérios de Deus que se identifica com os perseguidos, humilhados e condenados injustamente. Os discípulos não entendem porque têm medo que seja verdade o que suspeitam nas palavras de Jesus e preferem não escutar. É assim com os ímpios do livro da Sabedoria e com os cristãos a quem se dirige Tiago. Pode acontecer assim com todos os que não se deixam formar pela sabedoria que vem do alto”, que é compreensão, bondade, misericórdia, paz, generosidade, livre da inveja e da hipocrisia.

Rezar a Palavra

Senhor, Jesus, quero caminhar contigo. Aprender de ti a disponibilidade para a cruz, a generosidade para o amor, o desprendimento para a liberdade. A vitória sobre mim mesmo e sobre as minhas paixões está em seguir contigo em comunhão de corações, em partilha de vida, em compromisso na missão. Senhor, Jesus, que o medo não tome conta de mim e o fracasso não me torne incapaz de continuar contigo até ao fim.

Compromisso semanal

Que os meus passos sejam dados por ti no acolhimento dos mais pequenos.