Depois de alguns domingos em que escutámos o capítulo 6 do Evangelho de S. João, voltamos ao Evangelho de Marcos, o evangelista deste ano. Deixamos um discurso de Jesus (sobre o pão da vida) para voltarmos ao relato directo do confronto de Jesus com os fariseus e os escribas. A passagem de hoje questiona a relação da lei de Deus com a tradição dos homens. Há leis humanas e tradições religiosas e sociais que se podem transformar em absolutos e impedem a capacidade de discernir e o crescimento interior. Jesus supera a atitude legalista e o apego às fórmulas privilegiando a vontade de Deus, a vontade interior da consciência e a docilidade à palavra.
Trata-se de perceber o que é mais importante no homem: se o exterior, o protocolo, a publicidade, a passadeira, a televisão, a fama… ou o interior do coração?! Claramente, para Jesus, conta o coração, o amor, a ternura, a intenção que pomos nas coisas, a consciência que nos move a tomar decisões num sentido ou noutro, a vontade que nos faz pôr as coisas em movimento…
- Os mandamentos para Israel
– Para Israel, como para qualquer outro povo, os mandamentos são muito importantes porque eles ajudam a avaliar os comportamentos: se estão de acordo com a lei são aprovados; se transgridem a lei têm que ser corrigidos… É fácil reconhecer que toda a vida em comunidade exige o cumprimento de normas porque são estas que regulam o comportamento das pessoas.
– Mas, Israel via na Lei um dos suportes essenciais para a sua existência como povo: a Lei de Israel foi dada directamente por Deus através de Moisés e, aqueles que a aceitam são, pelo cumprimento dessa lei, o povo escolhido por Deus. É a Lei que identifica o povo: “que povo tão inteligente e sabedor é esta grande nação…” (1ª leitura)
– As leis são, pois, necessárias… Se alguma instituição perdurou em Israel e ajudou este povo a ultrapassar todas as crises, foi a Lei, a Torá…
- À luz do Evangelho de hoje
– Quando Jesus é confrontado com a transgressão de alguns preceitos legais por parte dos seus discípulos, responde aos escribas e fariseus com palavras do profeta Isaías onde este denuncia um certo comportamento que se apoia no cumprimento de algumas normas mas que não favorece a intenção do coração e a sua orientação para Deus… Jesus contesta que o apego à Lei pode levar a uma vida superficial e até falsa…
– À primeira vista, o assunto parece que tem apenas a ver com alguns aspectos da religião judaica e com mais um confronto de Jesus com os homens da Lei mas, a situação permite esclarecer alguns pontos importantes da nossa relação com Deus no contexto actual…
– A denúncia de Jesus coloca o dedo numa ferida que perdura ao longo dos tempos: “este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de Deus…” Parece que o coração pode estar inclinado para uma determinada direcção e a boca vai noutro sentido: podem estar dissociados no culto, no ensino, na pregação e na acção…
– Contrapondo à importância que é dada às coisas exteriores, Jesus diz que é do interior do homem que saem as boas e as más intenções… Num tempo em que nos queixamos tanto do que se passa à nossa volta, dos comportamentos dos responsáveis políticos, dos legisladores e dos que controlam a vida em sociedade, seria bom cada um reflectir sobre o que habita o seu interior, o seu coração…
– Nas palavras de Jesus há também uma clara chamada de atenção para todos os que estão habituados a viver a religião como uma prática de ritos exteriores, uma rotina que pode até incluir hábitos muito piedosos, mas que não tocam o coração e os comportamentos…
- Jesus e a Lei
– A denúncia de Jesus aponta para dois tipos de desvios provocados pela Lei: o ritualismo e a moral farisaica… A esta conduta contrapõe a religião do amor e a moral de atitudes…
– O ritualismo caracteriza-se por práticas religiosas que não envolvem o coração e a vida… A moral farisaica é a moral da aparência, da fachada, do fazer para ser visto…
– Orações, ritos, ofertas, promessas, cumprimento dos preceitos, proibições,… Tudo isto concorre para o chamado ritualismo… Jesus propõe o coração, a consciência, a escuta da Palavra, como fonte das atitudes morais na linha do que os profetas do Antigo Testamento já propunham:
“Este povo honra-me com os lábios mas o seu coração está longe de mim”
“A religião pura, aos olhos de Deus, é visitar os órfãos e as viúvas…”
“Quero misericórdia e não sacrifícios”
– Jesus é muito claro para os fariseus e para todos os que reduzem a prática religiosa a um conjunto de ritos: “Devíeis praticar a justiça, a misericórdia e a fidelidade antes de todas as outras prescrições da Lei” (ver Mt 23); “Não há nada fora do homem que, ao entrar nele, o possa tornar impuro. O que sai de dentro do homem é que o torna impuro” (Ev. de hoje). Afinal, o que é que habita o nosso interior? O nosso coração?