A voz de Deus põe limites à tempestade

No seu pequeno e frágil barco, o marinheiro entra no mar. Não teme a força das ondas nem se assusta com a imensidão do mar porque confia no seu coração apaixonado pela aventura. Tem consigo o livro de instruções, os instrumentos de navegação e o kit de salvamento. Conhece as zonas mais perigosas. Sabe em que momentos se deve aproximar mais da costa e onde encontrar refúgio. Sem medo enfrenta as ondas quando não tem outra solução. Levanta as velas coloridas para se tornar visível ao longe. Emite sinais de alerta. Pede auxílio quando sente que não consegue sair sozinho da tempestade. Não anda ao sabor do vento, só porque é mais fácil. Resiste o mais que pode. Aguarda confiante pelo socorro. No final, confere os estragos e zela para que não haja mais danos. Regressa sempre a casa.

LEITURA I Jb 38, 1.8-11

O Senhor respondeu a Job do meio da tempestade, dizendo: «Quem encerrou o mar entre dois batentes, quando ele irrompeu do seio do abismo, quando Eu o revesti de neblina  e o envolvi com uma nuvem sombria, quando lhe fixei limites e lhe tranquei portas e ferrolhos? E disse-lhe: ‘Chegarás até aqui e não irás mais além, aqui se quebrará a altivez das tuas vagas’».

Job sente-se perdido no meio da tempestade em que se transformou a sua vida. Reclama com Deus por se sentir injustiçado. Deus é mais forte que qualquer tempestade, pode dominar a força do mar e se Job quiser pode aproveitar aquele momento difícil para fortalecer a sua confiança no Senhor.

Salmo Responsorial Salmo 106 (107), 23-24.25-26.28-29.30-31(R. 1b)

O salmo 106 é um hino de ação de graças, que a comunidade reunida canta ao Senhor louvando-o por tudo quanto ele fez a favor do seu povo.

LEITURA  II 2Cor 5, 14-17

Irmãos: O amor de Cristo nos impele, ao pensarmos que um só morreu por todos e que todos, portanto, morreram. Cristo morreu por todos, para que os vivos deixem de viver para si próprios, mas vivam para Aquele que morreu e ressuscitou por eles. Assim, daqui em diante,  já não conhecemos ninguém segundo a carne. Ainda que tenhamos conhecido a Cristo segundo a carne, agora já não O conhecemos assim. Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura. As coisas antigas passaram: tudo foi renovado.

Para Paulo, não é necessário ter conhecido Jesus segundo a carne para ser apóstolo de Cristo. Cristo morreu por todos e ressuscitou e, agora, todos o podem conhecer, já não segundo a carne, mas como ressuscitado.

EVANGELHO Mc 4, 35-41

Naquele dia, ao cair da tarde, Jesus disse aos seus discípulos: «Passemos à outra margem do lago». Eles deixaram a multidão e levaram Jesus consigo na barca em que estava sentado. Iam com Ele outras embarcações. Levantou-se então uma grande tormenta, e as ondas eram tão altas que enchiam a barca de água. Jesus, à popa, dormia com a cabeça numa almofada. Eles acordaram-n’O e disseram: «Mestre, não Te importas que pereçamos?». Jesus levantou-Se, falou ao vento imperiosamente e disse ao mar: «Cala-te e está quieto». O vento cessou e fez-se grande bonança. Depois disse aos discípulos: «Porque estais tão assustados? Ainda não tendes fé?». Eles ficaram cheios de temor e diziam uns para os outros: «Quem é este homem, que até o vento e o mar Lhe obedecem?».

A tempestade que se levanta no lago, enquanto os discípulos atravessam para a outra margem, é uma oportunidade para Jesus se revelar e para os discípulos afirmarem a sua confiança nele, porque ele é o Filho de Deus.

Reflexão da Palavra

Job foi alvo de uma tempestade que alterou a sua vida. Na tranquilidade dos dias da sua vida, construída com o seu trabalho, Job entendia-se a si mesmo e era entendido pelos seus amigos como um homem justo. Dedicado ao Senhor, a quem permanecia fiel, fora abençoado com muitos filhos, muitos rebanhos e muitas propriedades. Era um homem tranquilo e feliz até ao dia em que uma tempestade transformou a sua vida num caos, deixando-o impotente perante a realidade.

O mar é, na mentalidade da época, o lugar do caos. Escondem-se nele monstros e demónios, que ninguém consegue dominar. A vida de Job, que era um mar sereno e tranquilo, viu-se transformada num mar revolto, que ele não consegue dominar e não alcança uma explicação para o sucedido. Os seus amigos levantam suspeitas que põem em causa a sua honestidade. O próprio Job se questiona sobre a sua situação, sem encontrar resposta. Não faz sentido, segundo a sua maneira de ver, que o justo tenha que enfrentar tamanho sofrimento.

Na nostalgia do passado, Job exclama “quem me dera voltar a ser como dantes, nos dias em que Deus me protegia” (Jb 29,2) e tece uma série de considerações sobre a sua situação que podemos resumir nas afirmações “chamo por ti, e tu não me respondes; insisto e não fazes caso. Tornaste-te cruel comigo, persegues-me com toda a força da tua mão. Levantas-me ao alto e fazes-me cavalgar com o vento e, depois, arrastas-me na tempestade. Bem sei que me levas à morte” (Jb 30, 20-23). Diz Job “que Deus me pese na balança justa e reconhecerá a minha inocência” (Jb 316), “acaso a infelicidade não é para o ímpio, e o infortúnio, para os que praticam a iniquidade?” (Jb 31,3).

O texto da primeira leitura faz parte da resposta de Deus a Job que se sente injustamente tratado. Na resposta, Deus não procura ter razão nem dar razão a Job, mas mostrar qual o lugar do homem diante de Deus. Eliú já se tinha irritado contra Job por causa das suas palavras insensatas, dizendo-lhe “Deus é maior do que o homem. Porque te queixas contra Ele? Por não dar resposta aos teus discursos? Deus fala, ora de uma maneira ora de outra, mas o homem não entende”. Job não percebeu que aquela tempestade era uma manifestação de Deus e do seu poder. Deus é mais forte que todas as tempestades e domina a fúria das águas do mar com a sua palavra.

A resposta de Deus, vem “do meio da tempestade” e revela que, para o Senhor, o mar não passa de um recém-nascido a quem ele domina com o poder da sua palavra, “chegarás até aqui e não irás mais além, aqui se quebrará a altivez das tuas vagas”. Job ainda não percebeu que, apesar de ser justo, Deus não lhe deve nada, ele continua a ser uma criatura a quem Deus salva das tempestades e de quem Deus cuida, mas segundo os seus critérios inexplicáveis para os homens.

O salmo 106 é um hino de ação de graças comunitário que se compõe de duas partes (Vs. 1-33 e 33-43) sendo a segunda um acrescento posterior à composição. O hino original (v. 1 a 33) começa com um convite ao louvor “dai graças ao Senhor…”, depois, em quatro conjuntos temáticos apresenta as razões para dar graças. Primeiro, “andavam errantes… tinham fome e sede… clamaram ao Senhor… Ele deu de beber… e matou a fome… conduziu-os por um caminho seguro”. Depois, “viviam nas trevas… prisioneiros…clamaram ao Senhor… Ele livrou-os”. Mais adiante “enfraquecidos por causa dos seus pecados… clamaram ao Senhor… livrou-os da morte”. Finalmente recorda “os que se fizeram ao mar…soprou o vento de tempestade e as ondas levantaram-se… clamaram ao Senhor… transformou a tempestade em bonança”. Os vários momentos da história de Israel são motivo para dar graças ao Senhor porque Ele continua hoje a libertar o seu povo. No meio das tempestades da vida, Deus está sempre presente.

Na segunda carta aos coríntios, resposta de Paulo depois dos conflitos ali levantados por causa de alguns que entendiam que ele não tinha a mesma autoridade de apóstolo dos doze, recorda-se o centro das nossas relações e a perspetiva através da qual nos conhecemos uns aos outros. Não ter conhecido Jesus segundo a carne não é nenhum impedimento para anunciar o evangelho, porque “agora já não O conhecemos assim”. A Cristo já ninguém o conhece segundo a carne, nem mesmo os doze, mas segundo a sua nova realidade de ressuscitado.

A morte de Cristo altera todo panorama da humanidade diante de Deus. Anunciado por Isaías como aquele por cuja morte se reconcilia com Deus toda a humanidade, ele é o justo no qual Deus concentra o seu olhar e graças a ele todos os outros são salvos das suas infidelidades. “um só morreu por todos” e nele “todos morreram” para si mesmos, a fim de viverem “para Aquele que morreu e ressuscitou por eles”. Do mesmo modo que Deus encontra a todos e a todos reconcilia na cruz de Cristo, também todos, contemplando a Cristo no mistério da cruz, se encontram com Deus. É na cruz que todos se tornam “uma nova criatura” e, por isso, já não vê cada um segundo os critérios humanos, mas segundo os critérios de Cristo. Neste sentido, todos conhecemos a Cristo como ele é agora, ressuscitado e conhecemos a todos a partir da cruz e da ressurreição de Cristo, porque todos fomos renovados na sua morte. Paulo, apesar de não ter conhecido a Cristo segundo a carne, conheceu-o do modo que ele agora pode ser conhecido, tal como ele é, segundo a perspetiva da grande renovação provocada pela sua morte e ressurreição.

Já sabemos que Marcos tem a preocupação de apresentar Jesus ao leitor do seu evangelho. Começa por dizer que este é o “evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” e termina com a afirmação do centurião “verdadeiramente este homem era filho de Deus”. No texto deste domingo surge a pergunta “quem é este homem…?” à qual o leitor já pode responder dizendo “é o Filho de Deus”, pois só Deus tem poder sobre o mar, como se viu no texto de Job, primeira leitura.

A pergunta dos doze, que estão na barca com Jesus em plena tempestade, revela já uma inquietação que os domina. Eles sabem que só Deus tem poder sobre o mar, por isso se enchem de temor “ficaram cheios de temor”, porque se experimentam diante do enviado de Deus. Estavam assustados por causa da força das vagas, mas agora não é o medo, mas o temor que os domina e impede de falar. A pergunta contém uma admiração, uma contemplação de Jesus e do seu mistério.

O episódio narrado por Marcos realiza-se quando desce a noite, “ao cair da tarde”, e no meio do lago, “passemos à outra margem do Lago”, quando se dirigem para território pagão. Estão reunidos todos os elementos para Jesus se manifestar como Filho de Deus. O lago é o lugar dos demónios, a noite, ausência de luz, é o ambiente indicado para a prática do mal e do outro lado do lago e aguarda-os um lugar de gente pouco recomendável. Para culminar a cena, Jesus dorme, o que dá às forças do mal margem para atuarem livremente. É aí que se levanta uma tempestade com o vento à solta e as “ondas a lançarem-se sobre o barco”.

Os discípulos fazem a experiência da impotência no meio da tempestade. Clamam a Jesus, que dorme, e ele impõe a sua autoridade falando “falou ao vento imperiosamente e disse ao mar”. Perante a palavra de Jesus o caos, as forças do mal, são dominadas “o vento cessou e fez-se grande bonança”, tal como Deus já tinha dito a Job.

Restaurada a harmonia, Jesus questiona os discípulos sobre a fé. Não esqueçamos que Marcos escreve para o leitor se questionar sobre a sua relação com Jesus. Perante as forças do mal que atitude toma o discípulo de Jesus? Enche-se de medo ou confia? Como é que, ainda não tendes fé, confiança? Quem é mais forte, as forças do mal ou a palavra de Jesus?

Meditação da Palavra

Começa com o texto do evangelho deste domingo a revelação de Jesus através do poder sobre as forças do mal. Marcos tem a preocupação de ajudar o leitor a reconhecer Jesus como o Filho de Deus, por isso, no final do texto coloca na boca dos discípulos a pergunta: “Quem é este homem…?”. Ele, Marcos, sabe que é Jesus o Filho de Deus, e o leitor também sabe desde o início que este é “o evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”. No entanto, à medida que avança na revelação, o evangelista, vai regressando sempre à pergunta sobre Jesus para que o leitor afirme a sua fé, tornando-se discípulo.

A Palavra coloca Deus e o homem frente a frente em contexto de limite. A tempestade domina, de forma direta ou indireta, os textos da liturgia deste domingo. Na primeira leitura Job vive a dor de um sofrimento injusto, realidade que se torna na sua vida como uma tempestade que altera para sempre aquilo que ele foi construindo com a sua fidelidade a Deus e com o seu trabalho. Reclama de Deus uma resposta, porque não entende como é possível que ele, o justo, sofra o castigo dos ímpios. Afinal, a infelicidade é o destino dos ímpios e o infortúnio a recompensa dos que praticam a iniquidade. Job considera-se justo aos olhos de Deus e dos homens e reclama, porque todos, perante o seu sofrimento, o consideram um ímpio a quem Deus castigou por viver disfarçado de justo.

Deus responde a Job e a resposta de Deus ajuda a compreender depois o evangelho. A resposta de Deus é dada a Job no meio da tempestade, que é a sua vida naquele momento, porque “Deus fala, ora de uma maneira ora de outra”, como dizia Eliú. E na sua resposta faz compreender que ele é o Senhor, criou tudo sem precisar de Job “onde estavas quando lancei os fundamentos da terra?” (Job 38, 4). E acrescenta que ele, o Senhor, domina as forças do mal que se manifestam de diversas maneiras, simbolizadas na irreverência do mar. Foi o Senhor quem fechou com chave as portas ao mar impondo-lhe limites “fixei limites e lhe tranquei portas e ferrolhos”. O Senhor domina com a sua voz, com a sua palavra todas as tempestades. Nenhuma tempestade vai além dos limites impostos por Deus.

O evangelho, mostrando o poder de Jesus sobre o mar e as forças do mal que nele se escondem revela que ele é o Filho de Deus. Marcos recorda que tudo começa quando cai a noite e deixa de brilhar a luz, no meio do lago, em cuja profundidade se refugiam os demónios. Estes elementos estão a dizer aos discípulos que é arriscado seguir por aquele caminho e naquela direção. No entanto, Jesus ordena e eles lançam-se no cumprimento da missão. Para agravar a situação, já de si difícil, Jesus dorme. Vai no barco, mas vai a dormir.

Era previsível a tempestade com todos aqueles sinais negativos. As forças do mal parecem vencer e a resistência da barca de Pedro é posta em causa. Os discípulos acordam Jesus com uma súplica. Foi assim que Israel conseguiu chegar à terra prometida no regresso do Egito. Andavam errantes, tinham fome e sede, passaram pelas trevas e pela prisão, experimentaram o peso dos pecados e enfrentaram as ondas e o vento de tempestade e clamaram ao Senhor que os conduziu por um caminho seguro, os alimentou, libertou da aflição e da morte, como recorda o salmo 106.

A súplica dos discípulos é atendida, mas não sem uma repreensão de Jesus questionando-os sobre a sua falta de confiança. Quem acreditais que tem poder sobre as tempestades que se levantam na vossa vida, na vida da vossa comunidade e mesmo no mundo onde habitais? O poder está nas forças do mal que resistem ao anúncio de Jesus, o Filho de Deus, ou no próprio Jesus que fala na palavra anunciada?

É Paulo quem responde a esta questão afirmando que a fé em Jesus implica uma renovação que se opera graças à sua morte e ressurreição. Uma renovação que faz conhecer Jesus, não na impotência da sua carne, como muitos que acompanharam Jesus desde a Galileia até Jerusalém, mas num conhecimento novo, na força da ressurreição, que o próprio Paulo viveu no caminho de Damasco e que fez dele um apóstolo de Jesus.

O discípulo de Cristo é uma nova criatura que nasceu da morte de Cristo, porque ali onde Cristo morreu por todos, todos morreram, porque já não vivem para si mesmos, mas para Cristo e estão nele pela ressurreição e nele se reconhecem uns aos outros como membros da comunidade crente.

Rezar a Palavra

Como Job, reclamo, Senhor a tua atenção. Sinto a força das palavras daquele justo que se sente injustiçado, não por eu ser justo, mas por ser difícil suportar as tempestades em que, por vezes, me vejo mergulhado. E como ele digo: “Chamo por ti, e tu não me respondes; insisto e não fazes caso”. Eu sei que sempre me escutas e vens em socorro da minha aflição. Tu és mais forte que as forças do mal e com a tua palavra calas o vento e amainas o mar. Não permitas que perca a confiança em ti, Senhor.

Compromisso semanal

Invoco o Senhor no meio das tempestades e renovo a minha confiança na sua voz pacificadora.