Deus não se cansa de nós

“Atiraste uma pedra no peito de quem só te fez tanto bem. E quebraste um telhado, perdeste um abrigo, perdeste um amigo. Conseguiste magoar quem das mágoas te livrou.
Quebraste o telhado que nas noites de frio ter servia de abrigo. Feriste o amigo que os teus erros não viu e o teu pranto enxugou.
Mas acima de tudo atiraste uma pedra turvando essa água, essa água que um dia, por estranha ironia, tua sede matou” David Nasser.

LEITURA I 2Cr 36, 14-16.19-23

Naqueles dias, todos os príncipes dos sacerdotes e o povo multiplicaram as suas infidelidades, imitando os costumes abomináveis das nações pagãs, e profanaram o templo que o Senhor tinha consagrado para Si em Jerusalém. O Senhor, Deus de seus pais, desde o princípio e sem cessar, enviou-lhes mensageiros, pois queria poupar o povo e a sua própria morada. Mas eles escarneciam dos mensageiros de Deus, desprezavam as suas palavras e riam-se dos profetas, a tal ponto que deixou de haver remédio, perante a indignação do Senhor contra o seu povo. Os caldeus incendiaram o templo de Deus, demoliram as muralhas de Jerusalém, lançaram fogo aos seus palácios e destruíram todos os objetos preciosos. O rei dos caldeus deportou para Babilónia todos os que tinham escapado ao fio da espada; e foram escravos deles e de seus filhos, até que se estabeleceu o reino dos persas. Assim se cumpriu o que o Senhor anunciara pela boca de Jeremias: «Enquanto o país não descontou os seus sábados, esteve num sábado contínuo, durante todo o tempo da sua desolação, até que se completaram setenta anos». No primeiro ano do reinado de Ciro, rei da Pérsia, para se cumprir a palavra do Senhor, pronunciada pela boca de Jeremias, o Senhor inspirou Ciro, rei da Pérsia, que mandou publicar, em todo o seu reino, de viva voz e por escrito, a seguinte proclamação: «Assim fala Ciro, rei da Pérsia: O Senhor, Deus do Céu, deu-me todos os reinos da terra, e Ele próprio me confiou o encargo de Lhe construir um templo em Jerusalém, na terra de Judá. Quem de entre vós fizer parte do seu povo ponha-se a caminho, e que Deus esteja com ele».

Deportados para Babilónia, os israelitas, reconhecem que a desgraça lhes bateu à porta por causa das suas infidelidades, mas Deus não desistiu deles e enviou Ciro para reconduzir o seu povo de regresso a casa.

Salmo Responsorial Salmo 136 (137), 1-2.3.4-5.6 (R. 6a)
Sem liberdade, longe da pátria e oprimido, Israel não pode cantar os cânticos de júbilo e alegria que cantava nas peregrinações a Jerusalém. O salmo traduz a situação de um povo esmagado pela dor causada pela desgraça que lhe coube em sorte.

LEITURA II Ef 2, 4-10

Irmãos: Deus, que é rico em misericórdia, pela grande caridade com que nos amou, a nós, que estávamos mortos por causa dos nossos pecados, restituiu-nos à vida com Cristo – é pela graça que fostes salvos – e com Ele nos ressuscitou e com Ele nos fez sentar nos Céus. Assim quis mostrar aos séculos futuros a abundante riqueza da sua graça e da sua bondade para connosco, em Jesus Cristo. De facto, é pela graça que fostes salvos, por meio da fé. A salvação não vem de vós: é dom de Deus. Não se deve às obras: ninguém se pode gloriar. Na verdade, nós somos obra de Deus, criados em Jesus Cristo, em vista das boas obras que Deus de antemão preparou, como caminho que devemos seguir.

Graças ao amor misericordioso de Deus, o homem morto por causa das suas faltas, pode voltar a vida em Cristo. Pela ressurreição participa da vida nova dos tempos futuros, porque Deus não desiste do seu plano de amor universal.

EVANGELHO Jo 3, 14-21

Naquele tempo, disse Jesus a Nicodemos: «Assim como Moisés elevou a serpente no deserto, também o Filho do homem será elevado, para que todo aquele que acredita tenha n’Ele a vida eterna. Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele. Quem acredita n’Ele não é condenado, mas quem não acredita já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho Unigénito de Deus. E a causa da condenação é esta: a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque eram más as suas obras. Todo aquele que pratica más ações odeia a luz e não se aproxima dela, para que as suas obras não sejam denunciadas. Mas quem pratica a verdade aproxima-se da luz, para que as suas obras sejam manifestas, pois são feitas em Deus.

Jesus revela, no diálogo com Nicodemos, que ele é o único que pode subir ao céu porque só ele desceu do céu. Desceu para falar das coisas do céu que só ele conhece e para conceder a vida eterna àqueles que, vendo-o elevado na cruz, acreditem que Deus está presente nele.

Reflexão da Palavra

Por detrás do texto da primeira leitura, tirado do segundo livro das crónicas, está o facto histórico da invasão e destruição de Jerusalém por Nabucodonosor rei dos Caldeus ou Babilónia, no ano 598, a.C.. Nesta invasão depõe o rei de Israel, saqueia o templo e realiza uma primeira deportação. Coloca no trono de Israel o rei Sedecias, um dos filhos mais novos de Josías.

O rei Sedecias, como se relata no mesmo livro em 36, 11-13, desobedece a Deus e aos profetas e inicia uma revolta contra Nabucodonosor que, regressa a Jerusalém e destrói a cidade, incendeia o templo, derruba as muralhas e passa ao fio da espada a população, sem poupar jovens e crianças. Dá-se a segunda deportação, desta vez levando todo o povo para Babilónia, onde estiveram cinquenta anos.

Por detrás do texto da primeira leitura que coincide com o final do segundo livro das crónicas, está também um outro facto. Já depois de os Persas dominarem os Babilónios, surge o rei Ciro, ano 538 a. C, que põe em prática uma política diferente da dos babilónios. Devolve aos seus países de origem os deportados por Nabucodonosor para Babilónia. Também Israel tem oportunidade de regressar à sua pátria. Nesta decisão de Ciro, os judeus veem a mão libertadora de Deus.

O autor das crónicas recorda no texto da primeira leitura que, desde os chefes até ao povo em geral se multiplicaram “prevaricações, imitando práticas abomináveis das nações, e profanaram o templo”, referindo-se aos sacrifícios humanos e à idolatria. Apesar de o Senhor lhes ter feito “advertências por meio de mensageiros”, refere-se em particular ao profeta Jeremias, eles “riram-se dos profetas” atitude que obrigou Deus a agir para que o seu povo compreendesse.

É neste contexto que se apresenta a destruição da cidade e a deportação para Babilónia como castigo. Mas o final é sempre feliz, porque o Senhor dá início a uma época de libertação agindo sobre o espírito de Ciro.

Na sequência do texto das crónicas, que recorda a deportação para o exílio, tem sentido o salmo 136. Trata-se de uma lamentação do povo deportado para Babilónia. As opiniões dividem-se entre ter sido composto ainda na Babilónia como cântico de resistência que ajuda a manter viva a tradição judaica e a não se deixar engolir pela cultura local e os que entendem este salmo como um hino dos peregrinos de Jerusalém recordando o tempo em que estiveram em Babilónia e mantiveram viva a lembrança da cidade santa.
O facto é que o salmo reflete a situação dramática do povo no cativeiro, as saudades da sua pátria e a impossibilidade de cantar em terra estrangeira, submetidos ao opressor, os cânticos que só fazem sentido na sua terra, entre os seus e em liberdade. Numa segunda parte o salmista pede vingança. O sentimento é o de quem tem diante de si a lei de Talião, “olho por olho dente por dente”, aplicando o mesmo castigo que lhes foi infligido.

Paulo, na carta aos efésios, apresenta o misterioso plano do amor de Deus para salvar o homem dominado pelo pecado. De acordo com 2,1-3, a situação dos homens era a de “mortos pelas vossas faltas e pecados” referindo-se aos gentios e “entregues aos nossos desejos mundanos, … estávamos sujeitos por natureza à ira divina, precisamente como os demais” referindo-se aos judeus.
A sorte dos homens muda porque (v. 4) “Deus, que é rico de misericórdia… deu-nos a vida com Cristo”, antecipadamente e de graça. A situação do homem que era de morte, causada pelo pecado, “pelas nossas faltas”, porque Deus é “amor imenso” e age gratuitamente, transforma-se em vida pela ressurreição, “Ele nos ressuscitou e nos sentou nos altos céus”. Tudo isto acontece em Cristo, “pela extraordinária riqueza da sua graça”, porque “é dom de Deus” e por meio da fé.

O evangelho de João que é proposto neste IV domingo, pertence à última parte do diálogo de Jesus com Nicodemos. Neste diálogo, Jesus, fala sobre o nascimento segundo o Espírito ao que Nicodemos questiona: “Como pode ser isso?” Em resposta, Jesus apresenta-se como aquele que desceu do céu, o Filho do Homem, e o mesmo que há de subir. Ninguém mais pode falar das coisas do céu, porque ninguém subiu ao céu e só o Filho do Homem desceu do céu. Só ele desceu e só ele pode subir, porque está ali a sua origem.

O descer e subir configura uma missão, pois, o Filho do Homem foi enviado por Deus para cumprir a sua vontade e para de novo subir para onde estava antes. Descer para subir à cruz e subir ao céu onde será glorificado, “é necessário que o Filho do Homem seja erguido ao alto”, à semelhança da serpente que Moisés ergueu no deserto e que salvou os israelitas no deserto.

Subir ao alto significa a cruz que, não é consequência de uma fatalidade, mas cumprimento da vontade de Deus. Foi Deus quem “entregou o seu filho” como resposta do seu amor. Um amor que não se reduz a um sentimento de compaixão mas uma ação que opera uma verdadeira transformação do mundo todo. Uma missão que não tem como finalidade condenar mas salvar, uma vez que não é Deus quem condena mas o homem que se recusa a crer, preferindo as trevas e odiando a luz.

A salvação vem de fora, vem de Deus, consiste na vida eterna e alcança-se pela fé, uma fé que é reconhecimento da presença de Deus em Jesus. Os israelitas salvavam-se ao olhar para a serpente, em Jesus não basta olhar o crucificado, é necessário crer nele, “a fim de que todo o que nele crê não se perca mas tenha a vida eterna”.

A vida eterna é existência em plenitude e não uma existência que começa depois da morte. Trata-se de uma existência que é em primeiro lugar pertença a Cristo no qual se recriam aqueles que nele creem. Deste modo, a morte não é mais do que a confirmação da pertença a esta vida em Cristo.

Meditação da Palavra

Deus não se cansa dos homens nem desiste de os libertar. Seja lá atrás quando a impertinência do rei Sedecias leva o povo à desgraça do desterro de Babilónia ou no tempo de Jesus, quando a incapacidade de ver nele o Filho do Homem conduz à rejeição do Filho de Deus, ou hoje, quando por causa das nossas faltas caímos como mortos. Deus não se cansa nem desiste.

Se o povo da aliança abandona o Senhor que os libertou da terra do Egito para adorar ídolos ao ponto de se deixar tentar pelos sacrifícios pagãos, muitas vezes com imolação de crianças, e a consequência deste desvario é a deportação para terra estrangeira, Deus não fica inativo. Desperta um rei pagão, Ciro, fazendo dele uma imagem dos bens que se haviam de manifestar mais tarde em Jesus, para operar a libertação do seu povo e o fazer regressar à terra da promessa. Ciro, rei da Pérsia, é apenas uma sombra dos bens que se revelam mais tarde com a chegada de Jesus, o verdadeiro Filho do Homem.

No diálogo com Nicodemos fica bem patente que, perante a opção negativa dos homens, que “preferiram as trevas à luz, porque as suas obras eram más” e “quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz“, Deus não se deixa vencer pela maldade das obras humanas e responde a partir do “amor imenso com que nos amou”. A resposta de Deus configura-se na entrega do “seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna”.

A iniciativa da libertação do homem, seja do cativeiro da Babilónia ou da morte em que nos encerram os nossos pecados, é sempre de Deus, que é rico de misericórdia e não envia “o seu filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. A condenação não é da vontade de Deus mas da recusa do homem. Podendo aproximar-se da luz e receber, em Cristo, a vida da ressurreição e a possibilidade de se sentar com ele nos céus, prefere as trevas e odeia a luz.

Também nós, hoje, vivemos tantas vezes “de acordo com o príncipe deste mundo” e entregues aos “desejos mundanos”, seguindo “os seus impulsos”. Por isso, necessitamos da ação libertadora de Deus que não se cansa nem desiste de nós. Na sua grande misericórdia “restitui-nos à vida com Cristo”, ele que “desceu do céu” e como a serpente elevada por Moisés no deserto, foi “erguido ao alto”, elevado na cruz, atrai para si não apenas o nosso olhar, mas desperta em nós a fé, para que crendo nele, encontremos e vivamos desde já a vida eterna a fim de nos podermos sentar com ele no céu.

Em Cristo está aberto para nós, os mortos pelo pecado, um caminho de “graça e de bondade”, “que devemos seguir” e que é “dom de Deus” e “não se deve às obras” dos homens. Um caminho “que Deus de antemão preparou”, que tem o seu início na cruz de Cristo e que é salvação para aqueles que nele acreditam.

Reconhecendo que Deus não se cansa nem desiste de nós, reconhecemos também que em Cristo está presente e manifesta-se a sua imensa misericórdia e a sua graça que é salvação para todos. Por isso, expomos a nossa vida toda à luz que vem do mistério da cruz, com a certeza de ser ali que nos reconfiguramos, pela ressurreição em Cristo, como verdadeiros filhos. É do amor imenso de Deus que não se cansa nem desiste de nós que nos vem a alegria apesar do pecado em que sempre podemos cair.

Rezar a Palavra

Senhor, temos vindo a fazer um caminho de reconhecimento de nós mesmos, ao longo desta quaresma. Neste momento encarnamos os sentimentos de Israel desterrado em Babilónia. Devora-nos a saudade da vida dos dias em que cantávamos os cânticos de louvor nas grandes manifestações de fé que já tivemos oportunidade de viver. O nosso pecado faz-nos sentir longe de ti, sem pátria, sem templo, sem palavra, sem confiança. Mas tu não desistes de nós. No teu filho Jesus Cristo, dás-nos uma nova oportunidade de passar das trevas para a luz, de abandonar as obras das trevas e regressar à verdade. É a tua misericórdia sempre em ação a nosso favor. Faz-nos regressar.

Compromisso semanal

Reconheço a riqueza inesgotável da misericórdia de Deus por mim, como dom gratuito oferecido na cruz de Jesus.