Coroados de honra e de glória

No sopé da montanha foi surgindo uma pequena aldeia que se tornou uma grande cidade. Não fora por acaso que ali chegaram os primeiros habitantes. Ali passava um grande rio que corria velozmente cumprindo a sua missão.
Um dia alguém perguntou: De onde vem este rio? Parecia uma pergunta desnecessária por ser óbvia. Vem da nascente. Alguém conhece a nascente? E, de onde vem a água para a nascente? Vem da chuva que cai pontual no inverno, há anos, sem nunca falhar.
A nascente, o rio e a chuva. A mesma água, de três modos distintos, circula para dar vida aos habitantes daquela aldeia que se tornou cidade. Porquê?

LEITURA I Pr 8, 22-31

Eis o que diz a Sabedoria de Deus:
«O Senhor me criou como primícias da sua atividade,
antes das suas obras mais antigas.
Desde a eternidade fui formada,
desde o princípio, antes das origens da terra.
Antes de existirem os abismos e de brotarem as fontes das águas,
já eu tinha sido concebida.
Antes de se implantarem as montanhas e as colinas,
já eu tinha nascido;
ainda o Senhor não tinha feito a terra e os campos,
nem os primeiros elementos do mundo.
Quando Ele consolidava os céus,
eu estava presente;
quando traçava sobre o abismo a linha do horizonte,
quando condensava as nuvens nas alturas,
quando fortalecia as fontes dos abismos,
quando impunha ao mar os seus limites
para que as águas não ultrapassassem o seu termo,
quando lançava os fundamentos da terra,
eu estava a seu lado como arquiteto,
cheia de júbilo, dia após dia,
deleitando-me continuamente na sua presença.
Deleitava-me sobre a face da terra
e as minhas delícias eram estar com os filhos dos homens».

Nesta leitura a Sabedoria apresenta-se a si mesma como uma criatura de Deus, que ele concebeu antes de ter criado o mundo e que o assiste no projeto criador. A Sabedoria está antes “antes das origens…, antes de existirem os abismos…, antes de se implantarem as montanhas” e assiste como arquiteto o ato criador de Deus “eu estava a seu lado como arquiteto”.

Salmo Responsorial Sl 8, 4-9 (R. 2a)
O salmo 8 enaltece Deus como criador e o homem como a mais admirável de todas as criaturas. Depois de enaltecer a grandeza de Deus, o salmista questiona o porquê de tanta dedicação de Deus para com o homem. De facto, diante da grandeza do universo “quando contemplo os céus… a lua e as estrelas”, o homem parece insignificante e, por isso, desproporcionada a atenção que Deus lhe dedica.

LEITURA II Rm 5, 1-5

Irmãos:
Tendo sido justificados pela fé,
estamos em paz com Deus,
por Nosso Senhor Jesus Cristo,
pelo qual temos acesso, na fé,
a esta graça em que permanecemos e nos gloriamos,
apoiados na esperança da glória de Deus.
Mais ainda, gloriamo-nos nas nossas tribulações,
porque sabemos que a tribulação produz a constância,
a constância a virtude sólida,
a virtude sólida a esperança.
Ora a esperança não engana,
porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações
pelo Espírito Santo que nos foi dado.

Paulo diz que tudo em nós é ação de Deus, porque ele é generoso no dar e não espera que sejamos bons para nos fazer participantes da sua graça. De facto, é por Jesus que somos justificados, nele temos acesso à graça e o “amor de Deus foi derramado em nossos corações”.

EVANGELHO Jo 16, 12-15

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Tenho ainda muitas coisas para vos dizer,
mas não as podeis compreender agora.
Quando vier o Espírito da verdade,
Ele vos guiará para a verdade plena;
porque não falará de Si mesmo,
mas dirá tudo o que tiver ouvido
e vos anunciará o que está para vir.
Ele Me glorificará,
porque receberá do que é meu
e vo-lo anunciará.
Tudo o que o Pai tem é meu.
Por isso vos disse
que Ele receberá do que é meu
e vo-lo anunciará».

Este pequeno texto de João coloca diante de nós as Pessoas da Santíssima Trindade. O Espírito Santo “guiará”, “dirá” e anunciará” aos discípulos, tudo o que Jesus explicou e eles não podem ainda compreender. O Espírito anuncia o que recebe do Pai e de Jesus. As três Pessoas vivem em sintonia de missão, revelando a sua intimidade.

Reflexão da Palavra

O texto do livro dos Provérbios, que compõe a primeira leitura da solenidade da Santíssima Trindade, apresenta a sabedoria divina com elementos que podem ser encontrados em outros lugares da Bíblia. De facto, paira sobre o homem bíblico a ideia de que Deus tem a seu lado a sabedoria e ela o assiste em todas as suas ações. Nos versículos anteriores recorda-se que a sabedoria está em todo o lado “sobre as colinas” e “nas encruzilhadas”, “junto às portas da cidade e nas vias de acesso”. Ela “Levanta a sua voz” e faz-se ouvir pelos homens “ingénuos” e “insensatos” para que adquiram inteligência. As suas palavras “são justas”, “são claras” e “proclamam a verdade”. Ela concede prudência aos ingénuos e inteligência aos insensatos. Quem acolhe a sua instrução adquire “o conhecimento mais precioso” que “vale mais que as pérolas” e que o “ouro fino”. À sabedoria pertencem os dons atribuídos ao Espírito Santo “o conselho e a equidade, a inteligência e a fortaleza”. Ela deixa-se encontrar por quem a procura, é fonte de inspiração para os que governam e para os juízes e enriquece os que a amam.

No entanto, o texto deste domingo, recorda que ela pertence a Deus, não atua sozinha, não vale por si mesma, mas enquanto que é criatura de Deus “o Senhor me criou como primícias da sua atividade”. A sua existência é anterior a todas as coisas “antes das suas obras mais antigas”, “antes das origens da terra” e “antes de existirem os abismos e de brotarem as fontes das águas, já eu tinha sido concebida”, pois “quando Ele consolidava os céus, eu estava presente”.

Esta anterioridade da Sabedoria em relação à obra da criação e a sua proximidade com Deus, ao ponto de ser o seu arquiteto, “eu estava a seu lado como arquiteto”, revela que Deus, apesar de uno não está só, é uma antevisão do mistério da Trindade.

Do mesmo modo que a sabedoria se deleita na presença de Deus também se deleita em “estar com os filhos dos homens”. É esta proximidade de Deus, que estando bem em si mesmo, vem ao encontro dos homens suas criaturas revendo neles a sua própria beleza, porque saíram das suas mãos.

Pela boca do salmista, Israel aclama a grandeza de Deus e a pequenez do homem diante da obra da criação. De facto, o salmo começa e acaba com a exclamação: “Ó Senhor, nosso Deus, como é admirável o teu nome em toda a terra!”. O reconhecimento da grandeza de Deus é o ponto de partida para refletir sobre o homem “que é o homem…?”. O homem é uma criatura, mas distinta de todas as outras, pois foi criado como “um ser divino”, partilha da realeza que pertence a Deus “de honra e gloria o coroaste”, recebeu “poder sobre a obra das vossas mãos, tudo submetestes a seus pés”. O homem cuida de todos os animais, e Deus cuida dele com uma solicitude permanente, porque não pode esquecer-se “da obra das suas mãos”.

Em Roma vive-se o mesmo problema das comunidades de Corinto, de Filipos e da Gália. O cristianismo começa na comunidade judaica que se reúne nas sinagogas e espalha-se também pelos pagãos e daí surgem divisões entre os judeus e destes com os pagãos. As obrigações da lei judaica devem ou não continuar a ser cumpridas pelos convertidos? Os pagãos devem ser obrigados a tornarem-se judeus para poderem ser batizados? Paulo, que ainda não foi a Roma, escreve para esclarecer que a fé cristã está acima das tradições judaicas e das tradições pagãs. Em Cristo somos uma realidade nova que supera o passado de cada um.

No texto desta liturgia, Paulo explica que é Deus quem nos justifica a todos, independentemente da nossa origem. Fomos todos “justificados pela fé” e, por isso, “estamos em paz com Deus” e, em Cristo, “temos acesso a esta graça em que permanecemos e nos gloriamos, apoiados na esperança da glória de Deus”.

Este mistério de justificação foi realizado em Cristo, não é coisa nossa, pelo que não podemos ser nós a determinar quem está ou não justificado, nem impor outros meios de justificação além da Cruz de Jesus. Já fomos justificados, estabelecidos na graça e vivemos animados pela esperança.  Já “foi derramado em nossos corações pelos Espírito Santo” o amor de Deus.

Com isto Paulo coloca os cristãos na intimidade de Deus trinitário: “Estamos em paz com Deus”, por Cristo fomos justificados e temos acesso à graça e pelo Espírito fomos preenchidos pelo amor de Deus. Esta é a nova aliança que pôs fim à aliança com Moisés.

O cristão tem mais com que se preocupar. Tem tribulações suficientes e deve aproveitar essas tribulações para se fortalecer, pois, “a tribulação produz a constância, a constância a virtude sólida, a virtude sólida a esperança”, e a esperança, que em Paulo significa participar na “glória de Deus”, “não engana”.

No evangelho, Jesus fala da sua relação com o Pai e com o Espírito Santo aos seus discípulos: “Tudo o que o Pai tem é meu” e “o Espírito da verdade… receberá do que é meu e vo-lo anunciará”. Há uma relação íntima das três Pessoas da Trindade. O Pai e o Filho participam da mesma verdade e o Espírito é quem conhece a verdade e a pode dar a conhecer. A verdade é o próprio mistério de Deus que se revela em Cristo. No entanto, a revelação é complexa e progressiva. Só ao final, os discípulos, poderão conhecer a verdade, porque ainda estão a caminho. O Espírito conduz para a verdade, mas ainda não chegaram à verdade. A verdade é Cristo “eu sou o caminho, a verdade e a vida”, mas como conhecer a verdade se ainda estão na Última Ceia? A morte de Jesus vai ainda escurecer o pouco que já veem e a ressurreição será um misto de alegria e de medo, por tão inacreditável.

Conhecer o mistério de Deus, esse mistério que é vida íntima da Trindade, é uma experiência que irão fazer plenamente ao final e não agora. Por enquanto estão a caminho. Guiados pelo Espírito podem penetrar cada vez mais na intimidade de Deus. Essa experiência será o fundamento da esperança que não engana, pois confirma que irão conhecer plenamente o mistério divino.

Meditação da Palavra

Diante da grandeza do universo o homem sempre se considerou a si mesmo um mistério e sempre se questionou como faz o salmista: “Que é o homem…?”. A resposta a esta pergunta é dada pela palavra deste domingo em que a Igreja celebra o mistério de Deus, uno e trino, e onde se diz que o mistério do homem só encontra resposta no mistério de Deus.

É por isso que Jesus, no contexto da Última Ceia, diz aos discípulos: “Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis compreender agora”. Que coisas são estas? Tudo o que se refere ao mistério de Deus, uno e trino, no qual o homem se revê e se encontra a si mesmo. É a intimidade de Deus que Jesus quer transmitir, mas que não há tempo, pois chega a hora em que ele próprio tem que partir de regresso à intimidade do Pai. Trata-se do conhecimento de Deus, conhecimento que é experiência e não raciocino intelectual. É revelação feita por Deus e não descoberta filosófica ou teológica do homem. Trata-se de um dom que só o Espírito Santo pode fazer chegar ao coração do homem porque o recebe diretamente do Pai e do Filho. Por isso, Jesus deixa esta missão para o Espírito. Será ele a anunciar aos seus discípulos “tudo o que tiver ouvido”, “o que está para vir”, “a verdade plena”, o que diz respeito à intimidade entre o Pai e o Filho, “porque não falará de si mesmo”, mas do que receber de Jesus.

É, portanto, o Espírito Santo quem nos ensina e conduz para a verdade, para a intimidade trinitária, para o conhecimento de Deus que é Pai de Nossos Senhor Jesus Cristo. Em Cristo podemos conhecer Deus e, iluminados pelo Espírito Santo, encontrar nele a resposta às perguntas mais importantes da existência humana: Quem sou eu? Porque existo? De onde venho? Que faço aqui? Para onde vou? Porque a dor, o sofrimento e a morte? Perguntas que não têm resposta fora de Deus.

O salmista desvela um pouco deste mistério quando canta o nome de Deus como admirável em toda a terra, fala dele como um rei cuja majestade se eleva acima dos céus e de cujas mãos saíram todas as coisas. A grandeza do universo, o sol, a lua e as estrelas, não ofuscam a grandeza divina. Deus permanece mistério, mas revela a sua majestade. Do mesmo modo fala do homem. O universo também não ofusca a grandeza do homem, antes revela com perplexidade e surpresa que a sua existência está envolta em mistério. Sendo minúsculo diante do universo, é ele quem domina sobre as obras criadas pelas mãos de Deus. Não tendo o esplendor do sol e da luz, Deus cuida dele com esmero. Que mistério é esse que se esconde no homem ao ponto de levar Deus a coroá-lo de honra e glória?

Só Aquele que existe desde “antes”, como diz o livro dos provérbios, pode dar a conhecer este mistério. Quem é este que existe desde “antes”? É o Espírito de Sabedoria. Ele existe desde “antes” e conhece Deus e o homem. A Espírito de Sabedoria está em Deus desde sempre como diz a primeira leitura: “eu estava a seu lado como arquiteto, cheia de júbilo, dia após dia, deleitando-me continuamente na sua presença” e com os homens, “deleitava-me sobre a face da terra e as minhas delícias eram estar com os filhos dos homens”.

Conhecidos pela sabedoria de Deus podemos conhecer, não da mesma maneira, mas por revelação e graça. Como acrescenta a segunda leitura “tendo sido justificados pela fé… temos acesso, na fé, a esta graça em que permanecemos e nos gloriamos” que é fundamento da verdadeira “esperança” que“não engana”. Vivemos, então, no tempo da esperança que é também tempo de tribulação. Mas a certeza de poder participar da “glória de Deus”, de o conhecer como somos conhecidos, dá-nos a força para lutar no meio das tribulações, sabendo que “a tribulação produz a constância, a constância a virtude sólida, a virtude sólida a esperança”. Uma certeza que nos é dada pelo “o amor de Deus” revelado na cruz de Jesus e que“foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo”.

É no mistério de Deus amor, que o Espírito revela aos nossos corações, que podemos conhecer-nos a nós mesmos e ao mistério que envolve a nossa existência e a relação de Deus connosco.

A difícil tarefa de compreender como é que Deus, na sua grandeza e majestade, se interessa por nós, homens, suas criaturas, ao ponto de vir ao nosso encontro e morrer por nós para nos coroar de honra e glória, vai acontecendo progressivamente, na medida em que entramos na sua intimidade. Guiados pelo Espírito Santo chegaremos um dia a ver Deus face a face, entraremos na sua glória, seremos aquilo para que fomos criados, participantes da divindade, quando finalmente mergulharmos na intimidade da vida trinitária. Ali acabarão as perguntas pois tudo será visível aos nossos olhos.

Rezar a Palavra

Tu és, Senhor, a minha herança e o meu cálice, a minha sorte está nas tuas mãos, por isso, te bendirei até durante a noite e tenho diante de mim o teu olhar. O meu coração se alegra e a minha alma exulta porque me tens em segurança. Na tua presença encontro alegria e delícias eternas à tua direita.

Compromisso semanal

Reconheço-me privilegiado por ter sido justificado gratuitamente, por ter acesso à graça de Deus e por experimentar em mim o seu amor.