Depois de tudo ficaremos apenas a lavar as redes?

De pé, equilibrando-se no ritmo das ondas, lança as redes ao mar. Não fizera outra coisa em toda a sua vida. Com mais peixe ou menos peixe, mais de noite do que de dia, lança as redes e puxa as redes como se não houvesse outra saída.

Dentro dele ressoa uma voz: “faz-te ao largo”. Sem dar tempo para pensar, os movimentos dos braços e do coração impelem o barco para a água e sem acreditar vê-se no meio do mar. A mesma voz de novo se impõe: “Lança as redes”. E eis que a multidão se reúne para escutar.

LEITURA I Is 6, 1-2a.3-8

No ano em que morreu Ozias, rei de Judá,
vi o Senhor, sentado num trono alto e sublime;
a fímbria do seu manto enchia o templo.
À sua volta estavam serafins de pé,
que tinham seis asas cada um
e clamavam alternadamente, dizendo:
«Santo, santo, santo é o Senhor do Universo.
A sua glória enche toda a terra!».
Com estes brados as portas oscilavam nos seus gonzos
e o templo enchia-se de fumo.
Então exclamei:
«Ai de mim, que estou perdido,
porque sou um homem de lábios impuros,
moro no meio de um povo de lábios impuros
e os meus olhos viram o Rei, Senhor do Universo».
Um dos serafins voou ao meu encontro,
tendo na mão um carvão ardente
que tirara do altar com uma tenaz.
Tocou-me com ele na boca e disse-me:
«Isto tocou os teus lábios:
desapareceu o teu pecado, foi perdoada a tua culpa».
Ouvi então a voz do Senhor, que dizia:
«Quem enviarei? Quem irá por nós?».
Eu respondi:
«Eis-me aqui: podeis enviar-me».

Numa visão, Isaías vê um pouco da glória de Deus, porque a Deus ninguém pode vê-lo, mas o pouco que vê é suficiente para reconhecer que Deus é três vezes santo, enquanto ele é pecador. Curiosamente, o reconhecimento do seu estado de impureza não o destrói, mas liberta-o. Uma brasa vinda do céu, toca-o e ele fica purificado. Agora, já pode ser mensageiro de Deus e, por isso, afirma “Eis-me aqui: podeis enviar-me”.

Salmo 137 (138), 1-2a.2bc-3.4-5.7c-8 (R. 1c)

O salmista sente-se protegido por Deus, por isso canta, louva e adora, reconhecendo a fidelidade e  a bondade de Deus para com ele. Sabe que Deus olha para os humildes e estende a mão para o salvar. O que Deus fez na sua vida revela que irá estar sempre presente e a sua ação irá mais longe do que a sua promessa, por isso confia que Deus nunca o abandonará.

LEITURA II – Forma longa 1 Cor 15, 1-11

Recordo-vos, irmãos, o Evangelho
que vos anunciei e que recebestes,
no qual permaneceis e pelo qual sereis salvos,
se o conservais como eu vo-lo anunciei;
aliás teríeis abraçado a fé em vão.
Transmiti-vos em primeiro lugar o que eu mesmo recebi:
Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras;
foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras,
e apareceu a Pedro e depois aos Doze.
Em seguida apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez,
dos quais a maior parte ainda vive,
enquanto alguns já faleceram.
Posteriormente apareceu a Tiago e depois a todos os Apóstolos.
Em último lugar, apareceu-me também a mim,
como o abortivo.
Porque eu sou o menor dos Apóstolos
e não sou digno de ser chamado Apóstolo,
por ter perseguido a Igreja de Deus.
Mas pela graça de Deus sou aquilo que sou,
e a graça que Ele me deu não foi inútil.
Pelo contrário, tenho trabalhado mais que todos eles,
não eu, mas a graça de Deus, que está comigo.
Por conseguinte, tanto eu como eles,
é assim que pregamos;
e foi assim que vós acreditastes.

Paulo reconhece que foi pela graça de Deus que se tornou um apóstolo. Ele era um perseguidor da Igreja, mas Jesus apareceu-lhe ressuscitado como fizera a Pedro e a muitos outros e, desde esse dia, tornou-se anunciador do mesmo evangelho que o salvou.

EVANGELHO Lc 5, 1-11

Naquele tempo,
estava a multidão aglomerada em volta de Jesus,
para ouvir a palavra de Deus.
Ele encontrava-Se na margem do lago de Genesaré
e viu dois barcos estacionados no lago.
Os pescadores tinham deixado os barcos
e estavam a lavar as redes.
Jesus subiu para um barco, que era de Simão,
e pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra.
Depois sentou-Se
e do barco pôs-Se a ensinar a multidão.
Quando acabou de falar, disse a Simão:
«Faz-te ao largo
e lançai as redes para a pesca».
Respondeu-Lhe Simão:
«Mestre, andámos na faina toda a noite
e não apanhámos nada.
Mas, já que o dizes, lançarei as redes».
Eles assim fizeram
e apanharam tão grande quantidade de peixes
que as redes começavam a romper-se.
Fizeram sinal aos companheiros que estavam no outro barco,
para os virem ajudar;
eles vieram e encheram ambos os barcos,
de tal modo que quase se afundavam.
Ao ver o sucedido,
Simão Pedro lançou-se aos pés de Jesus e disse-Lhe:
«Senhor, afasta-Te de mim, que sou um homem pecador».
Na verdade, o temor tinha-se apoderado dele
e de todos os seus companheiros,
por causa da pesca realizada.
Isto mesmo sucedeu a Tiago e a João, filhos de Zebedeu,
que eram companheiros de Simão.
Jesus disse a Simão:
«Não temas.
Daqui em diante serás pescador de homens».
Tendo conduzido os barcos para terra,
eles deixaram tudo e seguiram Jesus.

Lucas coloca Pedro diante de Jesus numa relação semelhante à de Isaías diante de Deus. Perante a pesca abundante, Pedro prostra-se diante de Jesus e reconhece-se pecador e indigno de estar na sua presença. É Jesus quem estende a mão para Pedro e o convida a confiar que o perdão fará dele pescador de homens.

Reflexão da Palavra

A primeira leitura situa-nos em Jerusalém, no ano 740 a.C., ano em que morreu Ozias, rei de Judá, no momento em que Isaías faz a experiência do chamamento vocacional para a missão profética. Isaías está no templo quando tem uma visão “vi o Senhor”. Que vê Isaías? Vê a glória de Deus, uma vez que a Deus ninguém pode ver e continuar a viver, como Deus disse a Moisés (Ex 33,20).

O que Isaías vê é suficiente para reconhecer que Deus é Três vezes Santo, “Santo, santo, santo é o Senhor do Universo” e ele é “um homem de lábios impuros” que vive “no meio de um povo de lábios impuros”. Sente-se perdido porque julga ter visto a Deus e, na sua condição de pecador, não pode sair dali vivo, porque é indigno de contemplar o que os seus olhos contemplam.

A visão de Isaías mostra Deus em toda a sua glória e poder, “sentado num trono alto e sublime”, a sua presença “enchia o templo”, a voz dos serafins é como a voz do trovão que faz tremer o lugar em que se encontram, “as portas oscilavam nos seus gonzos”. Esta descrição faz lembrar o encontro de Moisés com Deus no cimo do monte Sinai.

Perante esta manifestação divina e sentindo-se perdido, grita “ai de mim”. Ele crê não sair dali vivo porque há entre ele e Deus uma distância intransponível que não permite o encontro entre eles. No entanto, se ao homem é impossível, para Deus não. Deus vem ao encontro do homem ultrapassando o abismo que os separa. “Um dos serafins voou ao meu encontro, tendo na mão um carvão ardente que tirara do altar com uma tenaz”. É este gesto de Deus em direção ao homem que transforma a distância em proximidade, transforma a impureza em santidade, “isto tocou os teus lábios: desapareceu o teu pecado, foi perdoada a tua culpa”.

Quebrada a distância, removido o impedimento, Isaías pode responder ao chamamento e aceitar a missão, por isso, à pergunta de Deus: “Quem enviarei? Quem irá por nós?”, Isaías responde “Eis-me aqui: podeis enviar-me”, tornando-se a voz de Deus no meio do seu povo.

Esta experiência marca toda a missão de Isaías ao ponto de, quando se refere a Deus, dizer sempre “o Santo de Israel”.

O salmo 138 é uma ação de graças na qual o autor reconhece tudo quanto o Senhor fez por ele, compromete-se a louvá-lo diante dos povos e confia que todos os reis louvem o Senhor “pois grande é a sua glória”.

O Salmista agradece ao Senhor “pela tua bondade e pela tua fidelidade”, porque o atendeu e “aumentastes as forças da minha alma”, porque apesar de ser “excelso” o Senhor “repara no humilde”, “conservas-me a vida” e “a tua mão direita me salva”, o Senhor “tudo fará por mim” e o “teu amor é eterno”.

O Senhor é razão de confiança para o salmista mas a sua ação destina-se a todos os povos, pois, todos os que “ouvirem a palavra da tua boca” louvarão o Senhor e celebrarão os seus caminhos. Todos são obra das mãos de Deus, ele repara em todos, até nos humildes e na sua glória não abandona a obra das suas mãos.

Continua a ser lida a primeira carta aos coríntios. No texto deste domingo Paulo recorda que o Evangelho que ele anuncia lhe foi transmitido por outros, que o receberam em primeira mão. E recorda o núcleo central desse evangelho “Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”.

O evangelho que os coríntios receberam, no qual acreditaram e no qual serão salvos não é uma invenção de Paulo, foi-lhe anunciado e fala de um encontro com Cristo ressuscitado. Aquele que esteve morto, ressuscitou e apareceu, primeiro “a Pedro e depois aos Doze. Em seguida apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a maior parte ainda vive, enquanto alguns já faleceram. Posteriormente apareceu a Tiago e depois a todos os Apóstolos. Em último lugar, apareceu-me também a mim”.

Como Isaías, Paulo também sente que aquele encontro com Jesus ressuscitado foi um encontro com a sua própria indignidade “eu sou o menor dos Apóstolos e não sou digno de ser chamado Apóstolo, por ter perseguido a Igreja de Deus”, mas Jesus, com quem ele se encontrou, fez dele um apóstolo “pela graça de Deus sou aquilo que sou”. Esta graça transformou-o de tal modo que ele pode afirmar que “a graça que Ele me deu não foi inútil”, pelo contrário, moveu-o a trabalhar pelo evangelho, de modo que “tenho trabalhado mais que todos eles, não eu, mas a graça de Deus, que está comigo”. A fé dos coríntios é fruto deste trabalho de Paulo.

O Evangelho é a manifestação da vontade salvífica de Deus em Jesus. Nele cumpre-se todo o plano de salvação de Deus para a humanidade. Um plano que é realização da esperança latente no coração de todos os crentes. Por isso Paulo fala do cumprimento das escrituras ao terceiro dia, o dia da concretização da esperança, o dia em que Deus se manifesta em favor dos homens. “Segundo as Escrituras” morreu e “segundo as Escrituras” ressuscitou.

Todo aquele que acreditar no evangelho, acredita no perdão de Deus que transformou Paulo em verdadeiro apóstolo e tem o poder de transformar e salvar todo aquele que acredita como ele.

Pedro vive no barco uma experiência semelhante à experiência que Isaías viveu no templo de Jerusalém. Jesus encontra Pedro no seu barco de pesca num dia em que ele experimenta o fracasso. Tinha andado a noite toda à pesca e não conseguira que as redes apanhassem qualquer peixe, “andámos na faina toda a noite e não apanhámos nada”. É aí, na barca e no fracasso do pescador que se revela o poder de Jesus. Esta não é a primeira vez que Jesus se encontra com Pedro, pois já tinha ido a sua casa onde curou a sogra que se encontrava doente.

Aceitando o desafio de Jesus, Pedro lança as redes contra toda a esperança “já que o dizes, lançarei as redes” e vê acontecer o inesperado, “apanharam tão grande quantidade de peixes que as redes começavam a romper-se”.

Aquela pesca milagrosa faz Pedro entender que não está apenas diante de um homem que tem palavras de sabedoria que agradam ao ouvido, mas diante de Deus em quem vale a pena confiar. E diante do mistério de Deus feito homem, prostra-se reconhecendo-se pecador e indigno de estar na sua presença, por isso diz, “afasta-Te de mim, que sou um homem pecador

Ao reconhecer-se pecador, Pedro, deixa espaço para que Jesus atue como Deus na sua vida e o torne capaz de se lançar numa aventura maior, sem medo do fracasso, ser pescador de homens. A resposta de Jesus é clara, “não temas”. Tudo o que vai acontecer daí em diante não é ação dos homens mas plano de Deus “daqui em diante serás pescador de homens”. Aquele que tirava peixes do mar permitindo que morressem, vai a partir de agora tirar homens do mar, onde habitam os demónios que trazem a morte, para os salvar mediante o anúncio da Palavra de Jesus. Por isso, “deixaram tudo e seguiram Jesus”.

Meditação da Palavra

A palavra deste domingo representa um desafio a acreditar que Deus não nos larga da sua mão nem deixa por terminar o que iniciou em nós, a obra das suas mãos.

De facto, ao escutar a vocação de Isaías, de Pedro e de Paulo percebe-se que, na vida deles, o mais importante é realizado por Deus e não pelos homens. Desde logo, a iniciativa é de Deus. É Ele quem se revela a Isaías numa visão, mostrando-se em toda a sua santidade e enchendo o templo com a sua glória. É Jesus quem sobe para a barca de Simão-Pedro, para falar à multidão e o desafia a contemplar o poder de Deus obedecendo à sua ordem de fazer-se ao largo e lançar as redes para a pesca. Foi Jesus quem se atravessou no caminho de Damasco insistindo com Paulo a reconhecê-lo naqueles que ele perseguia.

A ação de Deus realiza-se num momento particularmente difícil e pouco feliz das suas vidas. Isaías vive a morte prematura do rei Osias e experimenta a insegurança própria de um tempo politicamente conturbado, ao mesmo tempo que sabe ser pecador, “sou um homem de lábios impuros, moro no meio de um povo de lábios impuros”. Pedro não é propriamente um exemplo, ele próprio se reconhece pecador e indigno de estar no mesmo barco com Jesus “afasta-te de mim, que sou um homem pecador” e Paulo é um perseguidor da Igreja de Jesus Cristo, sendo indigno de ser apóstolo, como ele próprio reconhece “sou o menor dos Apóstolos e não sou digno de ser chamado Apóstolo, por ter perseguido a Igreja de Deus”.

A todos eles o Senhor transforma pela sua ação. A Isaías toca-o com a brasa que purifica e não queima, a Pedro o Senhor diz “não temas” e a Paulo transformou-o pela sua graça.

Todos eles foram envolvidos pelo mistério de Deus e chamados a comprometerem-se com o seu projeto de salvação. Pela graça de Deus começou neles uma obra de salvação destinada a todos os homens. Uma obra que Deus mesmo completa através deles e apesar deles e das suas fragilidades.

Isaías sente-se chamado a ir em nome de Deus, e responde “eis-me aqui: podeis enviar-me”. Pedro e os seus companheiros, de acordo com o final do Evangelho, “deixaram tudo e seguiram Jesus” e Paulo tornou-se apóstolo, o menor dos apóstolos, “trabalhado mais que todos eles, não eu, mas a graça de Deus, que está comigo”. Na disponibilidade e no compromisso permitiram que Deus completasse neles o que pela sua graça começou.

Compreendemos que o nosso pecado, as fragilidades da nossa vida e das nossas decisões, não são impedimento para responder a Deus, nem para entrar no seu plano de salvação para a humanidade, assumindo um compromisso de ir em seu nome, anunciar o seu evangelho, ser lugar da sua presença e pedra viva da sua Igreja.

Será a confiança em Deus, na sua graça, no seu poder e na sua glória, que fará de nós instrumentos fiéis através dos quais a mesma graça se manifesta a todos os homens da terra.

Como Isaías, como Pedro e Paulo, também nós fomos tocados no Batismo pela graça de Deus para vivemos em santidade. Revestidos da graça começou em nós uma obra que se completa pela ação de Deus, na liberdade de dizermos “podeis enviar-me”. Inseridos na barca de Pedro somos chamados a colocar a vida toda ao serviço da missão de Jesus, como pescadores de homens. Confiados naquele que nos tocou podemos ir mais longe do que todos os outros, no anúncio do evangelho.

Rezar a Palavra

Completa em mim, Senhor, o que começaste no meu batismo. Vence em mim o medo que a minha pequenez provoca quando estou diante de ti, diante da vida e diante dos outros. Que a tua glória preencha todo o meu espaço interior e me fortaleça para a missão de pescar homens para o reino de Deus Pai.

Compromisso semanal

Dou graças a Deus porque continua a confiar em mim e a conceder-me a sua graça, apesar das minhas fraquezas.