A terra dos vivos
Em 1979, no livro Memória de Elefante, Lobo Antunes escrevia a dada altura: … o meu avô ficou transformado em cruz como acontece a todos os que desaparecem da aldeia”. Os batizados são marcados pela cruz e pertencem à cruz. É bom recordar que, aqueles que já partiram foram transformados na cruz, configurados com Cristo na cruz e na ressurreição.
LEITURA I Job 19, 1.23-27ª
Job tomou a palavra e disse:
«Quem dera que as minhas palavras fossem escritas num livro,
ou gravadas em bronze com estilete de ferro,
ou esculpidas em pedra para sempre!
Eu sei que o meu Redentor está vivo
e no último dia Se levantará sobre a terra.
Revestido da minha pele, estarei de pé;
na minha carne verei a Deus.
Eu próprio O verei,
meus olhos O hão de contemplar».
No meio da injustiça que é o sofrimento do justo, do abandono e desconfiança de todos em relação a ele, Job faz uma profissão de fé na justiça de Deus e na ressurreição depois da morte.
Salmo 26 (27), 1.4.7 e 8b e 9a.13-14
A resposta à primeira leitura vem do salmo 26 e é também uma profissão de fé. O salmista tem a sua confiança posta no Senhor. Não admite que nada nem ninguém o afaste da casa do Senhor. A sua confiança dá-lhe força e impede o medo. Por isso não teme ser atacado nem abandonado, pois, o Senhor é o seu protetor, ele o acolherá e conduzirá por caminhos direitos. A sua confiança é uma fé inabalável na bondade do Senhor e na vida eterna: “Creio firmemente”.
LEITURA II 2 Cor 4, 14 – 5, 1
Como sabemos, irmãos,
Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus
também nos há de ressuscitar com Jesus
e nos levará convosco para junto d’Ele.
Tudo isto é por vossa causa,
para que uma graça mais abundante
multiplique as ações de graças de um maior número de cristãos
para glória de Deus.
Por isso, não desanimamos.
Ainda que em nós o homem exterior se vá arruinando,
o homem interior vai-se renovando de dia para dia.
Porque a ligeira aflição dum momento
prepara-nos, para além de toda e qualquer medida,
um peso eterno de glória.
Não olhamos para as coisas visíveis,
olhamos para as invisíveis:
as coisas visíveis são passageiras,
ao passo que as invisíveis são eternas.
Bem sabemos que,
se esta tenda, que é a nossa morada terrestre, for desfeita,
recebemos nos céus uma habitação eterna,
que é obra de Deus
e não é feita pela mão dos homens.
Para Paulo os sofrimentos vividos por causa da sua missão apostólica não podem comparar-se com a vida eterna que espera alcançar e que lhe será dada por aquele que ressuscitou Jesus. As realidades deste mundo, nas quais se inclui o corpo não têm comparação com a glória que nos será dada por Deus na eternidade.
EVANGELHO Mt 11, 25-30
Naquele tempo, Jesus exclamou:
«Eu Te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra,
porque escondeste estas verdades aos sábios e inteligentes
e as revelaste aos pequeninos.
Sim, Pai, Eu Te bendigo,
porque assim foi do teu agrado.
Tudo Me foi dado por meu Pai.
Ninguém conhece o Filho senão o Pai
e ninguém conhece o Pai senão o Filho
e aquele a quem o Filho o quiser revelar.
Vinde a Mim,
todos os que andais cansados e oprimidos,
e Eu vos aliviarei.
Tomai sobre vós o meu jugo
e aprendei de Mim,
que sou manso e humilde de coração,
e encontrareis descanso para as vossas almas.
Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve».
Só os humildes estão disponíveis para aprender de Jesus. Só eles conhecem o justo sentido, a medida certa de todas as coisas que surgem na vida. Só em Jesus podemos conhecer a Deus e só nele encontramos o descanso da alma e a paz interior.
Reflexão da Palavra
O livro de Job pertence ao conjunto dos livros sapienciais. Na Bíblia hebraica é o primeiro dos livros que compõem a secção dos Escritos. Escrito em forma de diálogo é essencialmente um texto poético. De autor anónimo, terá sido escrito entre os séculos VI e IV a. C. altura em que o sofrimento é uma provocação na vida de Israel. O exílio coloca de modo profundo a pergunta sobre o sofrimento. O tema geral do livro é mesmo o sofrimento do justo e a resposta de Deus a esse sofrimento.
O livro tem início com dois capítulos em prosa que fazem a apresentação geral do protagonista e a desgraça que se abate sobre ele, apesar de ser considerado justo aos olhos de Deus. Seguem-se os capítulos centrais (3-42) que incluem o lamento inicial de Job (cap. 3), três ciclos de discursos entre Job e os seus amigos Elifaz, Bildad e Zofar, os discursos de Eliú (um quarto interlocutor), e a resposta de Deus a Job “do meio da tempestade”. Culmina com a submissão de Job. O final, capítulo 42, conclui o livro com uma repreensão de Deus aos amigos de Job e a recuperação, em dobro, de todos os bem que ele possuía antes de passar pelo sofrimento.
O texto da primeira leitura pertence ao segundo diálogo com os amigos e configura a quinta resposta de Job. Enquanto os amigos traçam um veredito que põe em causa a inocência de Job, determinando que o sofrimento é fruto do seu pecado e em breve Deus lhe dará o último castigo, a morte, ele, serve-se das suas afirmações para se analisar e encontrar uma segunda hipótese que não é tida em conta pelos amigos, encarcerados como estão nas suas convicções.
Job atingiu o auge do sofrimento e está no limite das suas forças humanas e espirituais. Sente que o sofrimento que o domina é injusto, que está a ser incompreendido pelos amigos e abandonado por Deus e pela família. No meio deste desalento, Job faz a mais bela profissão de fé e de esperança.
Ele está convencido do que diz e, por isso, quer que todos leiam as suas palavras, gravadas em pedra ou em bronze. Ele está inocente e, se for arrastado para a morte sem que se faça justiça, ele espera ser justificado no futuro, pelo reconhecimento póstumo da sua inocência. A sua convicção leva-o a dizer “Eu sei”, com certeza inabalável. Olhando para ele no meio do sofrimento, ninguém vê inocência, ninguém dirá que é inocente. Mas ele vê dentro de si a verdade e vê que alguém o vai resgatar daquela injustiça e repor o seu bom nome. O seu redentor não é um parente próximo, é o próprio Deus, no presente pode parecer o seu adversário por causa do sofrimento, mas será o seu defensor. Este Deus está vivo e, se não faz nem diz nada em sua defesa, ele agirá no último dia, quando Job estiver de pé, ainda que já não tenha pele nem carne. Nesse dia, Job verá, com os seus próprios olhos, não através da experiência de outros, o próprio Deus, o seu redentor. Ele lhe fará justiça.
O salmo 26, construído em três partes bem definidas: começa com uma afirmação de confiança, expõe em seguida a súplica no meio da perseguição e conclui com uma nova afirmação de confiança. A confiança do salmista vem do Senhor, ele é “luz” e “salvação”, é “protetor da minha vida”. Confiado nesta proteção, o salmista não tem medo, não teme nada nem ninguém: “de quem hei de ter medo?”. Mesmo que a sua vida seja levada ao extremo, “ainda que um exército me cerque” ele manterá a confiança.
É nesta confiança que o salmista faz a sua súplica ao Senhor. É uma súplica confiante, pois o que ele já viu é suficiente para confiar que o Senhor o fará sempre que necessário, a seu favor. O seu grande desejo é “habitar na casa do Senhor” e não quer que nenhuma circunstância o impeça de “saborear” o encanto do Senhor. Para isso, ele “deseja ardentemente”, “anseia”, “murmura”, “procura” a face do Senhor. A sua confiança é tal que “ainda que meu pai e minha mãe me abandonem, o Senhor há de acolher-me”.
No final o salmista faz uma profissão de fé semelhante à de Job: “Creio, firmemente, vir a contemplar a bondade do Senhor na terra dos vivos” e diz a si mesmo: “Confia no Senhor! Sê forte e confia no Senhor!”.
A segunda leitura é tirada do capítulo quarto, da segunda carta aos coríntios no qual Paulo fala sobre as grandes dificuldades do ministério apostólico. O apóstolo é como um vaso de barro que transporta um tesouro. Ele próprio experimentou a aflição, as perseguições e enfrentou a morte por causa de Jesus. No texto de hoje, o apóstolo explica porque é que não desanima no meio de tanta adversidade: “Por isso, não desanimamos”. Porque “Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos há de ressuscitar com Jesus e nos levará convosco para junto d’Ele”. Para Paulo as dificuldades por que tem passado por causa do evangelho não são sinal de um abandono de Deus mas consequência de um serviço aos outros. Como servidor ele tudo suporta, “é por vossa causa, para que uma graça mais abundante multiplique as ações de graças de um maior número de cristãos para glória de Deus”.
Paulo não deixa de dizer que esta verdade é conhecida de todos, “como sabemos”, diz ele logo de início. Esta verdade é mais importante do que preservar a própria vida, pois vive desta certeza: “ainda que em nós o homem exterior se vá arruinando, o homem interior vai-se renovando de dia para dia”. As dificuldades corporais são “uma ligeira aflição” comparadas com a glória eterna. A “leve aflição” não se compara com “o peso eterno de glória”. É preciso saber escolher entre o que é “passageiro” e o que é “eterno”, entre o “visível” e o “invisível”.
O corpo com que vivemos neste mundo não se compara com o corpo com que viveremos no céu. Aquele é passageiro, feito pelas mãos humanas, é uma tenda que se desfaz, ao passo que este é eterno porque é obra de Deus.
Mateus reúne as palavras da oração de Jesus depois de ele ter desmascarado a incredulidade das cidades da Galileia: “Corazim, Betsaida, Cafarnaum”. Para que os apóstolos, continuadores da sua missão, não se deixem vencer pelo aparente fracasso da missão, quando este suceder, Jesus recorda que o evangelho é revelado aos humildes, “aos pequeninos”, porque os “sábios e inteligentes” não estão disponíveis para o receber. O evangelho é sabedoria de Deus e não sabedoria dos homens. Não se chega à sabedoria de Deus com a inteligência mas com o coração, só um coração humilde está disponível para os desafios do evangelho anunciado por Jesus.
Este conhecimento é a profundidade do coração de Deus, ou seja, a relação que existe entre o Pai e o Filho, o seu mistério que não cabe na inteligência humana mas cabe no coração dos simples que acolhem a revelação de Jesus.
No final Jesus faz um convite claro e determinado: “Vinde a mim”, como a Sabedoria faz no Antigo Testamento (Provérbios 9,5; Sirácides 24,19). Jesus é a sabedoria divina encarnada. A ele podem acorrer todos os que estão cansados, aqueles para quem a vida é um fardo pesado, todos os que não conseguem suportar mais o sofrimento, o pecado e as contradições da vida. Em Jesus encontram-se o alívio e o descanso da alma, mas também com ele se aprende a encontrar paz interior, a medir com verdade e justiça todas as coisas, a descobrir o sentido e razão de tudo o que acontece na vida.
Meditação da Palavra
A Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos é um dia de silêncio, de memória e de uma profunda saudade. Os nossos corações voltam-se para os rostos, as vozes e os abraços daqueles que amamos e que já partiram. A liturgia de hoje não nos pede para ignorar o peso dessa ausência. Pelo contrário, acolhe a nossa dor e, com delicadeza, ilumina-a com a luz da esperança cristã, transformando o luto numa vigília de expectativa.
Nenhuma outra figura bíblica encarna o sofrimento humano como Job. Despojado de tudo, com o corpo coberto de chagas e o coração em pedaços, ele representa a humanidade nas suas mais dolorosas experiências. E é precisamente desse profundo abismo de dor que ressoa a mais intensa profissão de fé de toda a Escritura: “Eu sei que o meu Redentor está vivo!“.
A esperança de Job não é uma ideia. É uma certeza vivida na primeira pessoa: “Eu próprio O verei, meus olhos o hão de contemplar“. Ele anseia por um encontro real, onde a justiça e o amor de Deus restaurarão a sua carne ferida. O grito de Job é o grito de todo o homem que se depara com o corpo sem vida de um ente querido, a fé ousa proclamar que aquela pessoa, na sua identidade única e intransferível, verá a Deus. É, confiados nesta promessa, que nos mantemos firmes na oração por eles.
Se Job nos dá o grito da fé, Paulo, na sua carta aos Coríntios, oferece-nos a sua razão teológica. Ele ensina-nos a ver para além das aparências. É verdade que “o homem exterior se vai arruinando” – a fragilidade, a doença e a morte são realidades visíveis, mas, ao mesmo tempo, “o homem interior vai-se renovando de dia para dia”.
A morte, na visão cristã, não é um fatalismo, mas uma passagem. Paulo usa a imagem da nossa vida terrena como uma “tenda”, uma morada provisória. A morte é o momento em que esta tenda é desfeita para recebermos “nos Céus uma habitação eterna, que é obra de Deus”. Esta verdade de fé convida-nos a reorientar o nosso olhar: a não nos fixarmos no visível, que é passageiro, mas a projetarmo-nos no invisível, que é eterno. A nossa saudade é real, mas a vida para a qual os nossos defuntos foram chamados é infinitamente mais real e duradoura.
Para onde nos leva esta esperança? Qual o rosto do nosso Redentor? O Evangelho dá-nos a resposta na oração emocionada de Jesus. Ele, que conhece o Pai, revela-nos o Seu coração. E a seguir, lança o convite mais consolador de toda a Escritura: “Vinde a Mim, todos os que andais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei”.
Neste dia, quem está mais “cansado e oprimido” do que aqueles que sentem o peso da perda, mais recente ou mais distante? Jesus é o destino daqueles que partiram e o descanso dos que ficaram. Com a sua palavra Jesus alivia o sofrimento e a saudade, dando-nos a certeza de que o “jugo é suave” e a “carga é leve”. O encontro final com Deus não é um tribunal temível, mas a chegada a casa, ao colo de um Pai que nos acolhe através do seu Filho “manso e humilde de coração”.
É confiados nesta certeza que nos unimos aos que partiram através da oração, porque sabemos que é na comunhão da fé que nos encontramos uns com os outros. A nossa oração não é falar para o vazio, mas acompanhar com o nosso amor e a nossa fé aqueles que nos precederam na viagem para o Pai. Ao rezar por eles, afirmamos a nossa fé na ressurreição e a nossa esperança de, um dia, nos reunirmos com eles na “terra dos vivos”, como espera o salmista.
Rezar a Palavra
Neste dia em que recordamos os nossos defuntos, sentimos que a oração nos une a eles e as tuas palavras confortam-nos na dor e na saudade. Sabemos que o Pai nos espera a todos com um abraço capaz de nos refazer na nossa identidade curando todas as nossas feridas. Não permitas que o sofrimento nos faça cair no desânimo que leva a desacreditar do teu amor.
Compromisso semanal
Hoje visito um cemitério, acendo uma vela em casa e recordo diante de Deus os meus familiares que já partiram ou, simplesmente, faço uma profissão de fé na ressurreição.






