O poder de um olhar

Tinha os olhos postos no horizonte. Não ouvia nada do que se passava à sua volta: O cantar dos passarinhos, os gritos das crianças a brincar, o ruído dos carros em movimento constante, o barulho das máquinas nas obras, a insistência da mulher a chamar… O seu olhar estava para lá do que a vista podia alcançar, estava aonde o coração queria chegar. É para lá daqueles montes, muito para lá do mar, é em outro continente, é muito longe… O filho estava para lá do pôr do sol… mas naquela direção. Ele sabia que era naquela direção. O seu olhar via-o, o seu coração falava com ele, ele sabia onde era, mas os olhos…. ainda não viam.

LEITURA I Ap 7, 2-4.9-14

Eu, João, vi um anjo que subia do Nascente,
trazendo o selo do Deus vivo.
Ele clamou em alta voz
aos quatro anjos a quem foi dado o poder
de causar dano à terra e ao mar:
«Não causeis dano à terra, nem ao mar, nem às árvores,
até que tenhamos marcado na fronte
os servos do nosso Deus».
E ouvi o número dos que foram marcados:
cento e quarenta e quatro mil,
de todas as tribos dos filhos de Israel.
Depois disto, vi uma multidão imensa,
que ninguém podia contar,
de todas as nações, tribos, povos e línguas.
Estavam de pé, diante do trono e na presença do Cordeiro,
vestidos com túnicas brancas e de palmas na mão.
E clamavam em alta voz:
«A salvação ao nosso Deus, que está sentado no trono,
e ao Cordeiro».
Todos os anjos formavam círculo
em volta do trono, dos Anciãos e dos quatro Seres Vivos.
Prostraram-se diante do trono, de rosto por terra,
e adoraram a Deus, dizendo:
«Amen! A bênção e a glória, a sabedoria e a ação de graças,
a honra, o poder e a força
ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos. Amen!».
Um dos Anciãos tomou a palavra e disse-me:
«Esses que estão vestidos de túnicas brancas,
quem são e de onde vieram?».
Eu respondi-lhe:
«Meu Senhor, vós é que o sabeis».
Ele disse-me:
«São os que vieram da grande tribulação,
os que lavaram as túnicas
e as branquearam no sangue do Cordeiro».

João recorda aos cristãos perseguidos que eles foram marcados no batismo e, agora, pertencem ao Deus vivo. Esta pertença não os libertas das provações deste mundo, a “grande tribulação”, mas garante que, vivendo na fidelidade, serão purificados no sangue do Cordeiro e incorporados à multidão daqueles que, no céu, adoram a Deus.

Salmo 23 (24), 1-2.3-4ab.5-6 (R. cf. 6)

O Salmo começa por afirmar a soberania universal de Deus, ele é o Senhor de toda a terra. Diante de um Deus assim, quem pode considerar-se digno de se aproximar da Sua santidade, “subir à montanha do Senhor“, “habitar na sua casa?” Só aqueles que não deixaram o coração prender-se aos ídolos, nem sujaram as mãos a oferecer-lhe sacrifícios nem mancharam os lábios na idolatria. Os que assim procederam são a “geração dos que procura a face de Deus” e, como recompensa, recebe a Sua bênção e salvação.


LEITURA II 1 Jo 3, 1-3

Caríssimos:
Vede que admirável amor o Pai nos consagrou
em nos chamar filhos de Deus.
E somo-lo de facto.
Se o mundo não nos conhece,
é porque não O conheceu a Ele.
Caríssimos, agora somos filhos de Deus
e ainda não se manifestou o que havemos de ser.
Mas sabemos que, na altura em que se manifestar,
seremos semelhantes a Deus,
porque O veremos tal como Ele é.
Todo aquele que tem n’Ele esta esperança
purifica-se a si mesmo,
para ser puro, como Ele é puro.

São João convida a contemplar o amor extraordinário do Pai, que não apenas nos chama filhos, mas nos faz seus verdadeiramente filhos. Esta filiação já é uma realidade, mas há de manifestar-se plenamente um dia. Entretanto, vivemos no meio do mundo que não conhece nem crê e nele nos havemos de purificar.


EVANGELHO Mt 5, 1-12

Naquele tempo,
ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-Se.
Rodearam-n’O os discípulos
e Ele começou a ensiná-los, dizendo:
«Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos céus.
Bem-aventurados os humildes,
porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça,
porque deles é o reino dos céus.
Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa,
vos insultarem, vos perseguirem
e, mentindo, disserem todo o mal contra vós.
Alegrai-vos e exultai,
porque é grande nos céus a vossa recompensa».

A felicidade proposta por Jesus não é um paliativo para as dificuldades de cada dia nem uma tentativa de resignação perante a dor e o sofrimento. A felicidade proposta nas Bem-aventurança é já uma realidade na vida de todos os que se comprometem com a vida a transformar o mundo num lugar onde Deus se faz presente com o seu reino.

Reflexão da Palavra

Carregado de linguagem simbólica, o livro do Apocalipse é um bom exemplo da literatura apocalítica. João, é o seu autor, como ele próprio diz por diversas vezes, “eu João vi”, não sendo certo que se trate do apóstolo e evangelista. Foi escrito para as sete comunidades cristãs da Ásia Menor, provavelmente no tempo de Domiciano, que impunha o culto ao império e ao imperador exigindo ser tratado como “Dominus et Deus”. Moveu uma perseguição contra os cristãos porque não reconheciam o imperador como Deus.

João, através de imagens simbólicas, faz uma crítica à situação política do império, afirma a soberania de Deus e do Cordeiro imolado e anima os cristãos à perseverança no meio da perseguição.

Para compreender o texto da liturgia de Todos os Santos temos que recordar o final do capítulo seis, onde João: “Chegou o grande dia da sua ira!” e pergunta:“Quem poderá resistir?” (Ap 6, 17). A resposta a esta pergunta é dada no capítulo sete através das duas visões do autor: a primeira, a dos 144.000 que ainda combatem a grande tribulação e foram marcados na fronte porque pertencem a Deus, são a Igreja da terra protegida por Deus e pelos seus anjos; e a segunda, a da multidão inumerável, dos que já foram salvos, “de todas as nações, tribos, povos e línguas“, são a Igreja celeste, glorificada.

144 mil é um número simbólico que não pretende restringir a salvação a um pequeno número mas indicar que a salvação se destina a todos. A multidão incontável revela isso mesmo, que todos se podem salvar. Estes são os que cantam ao Cordeiro, apresentados como tendo sido purificados, pois estão revestidos de “túnicas brancas”, e como vitoriosos, pois têm “palmas nas mãos”. São os santos e os mártires, que “vieram da grande tribulação”, da terra, onde derramaram o seu sangue e foram purificados “no sangue do Cordeiro”. Apesar de terem derramado o sangue por Cristo não é a sua morte que lhes dá a vitória, mas é o sangue de Cristo, o cordeiro, quem os salva.

Com estes símbolos João pretende animar os cristãos das comunidades perseguidas para se manterem fiéis, porque um dia poderão participar, como estes, na liturgia celeste.

O salmo 23 faz parte da liturgia do templo de Jerusalém. Os peregrinos eram confrontados nas celebrações do templo com a grandeza de Deus. Ele é o Senhor de toda a terra: “Do Senhor é a terra e o que nela existe, o mundo e quantos nele habitam”. Perante esta afirmação surge a pergunta: “Quem poderá subir à montanha do Senhor? Quem habitará no seu santuário?”. Quem poderá ser suficientemente santo para entrar e habitar na casa do Senhor? As condições são claras: “as mãos inocentes e o coração puro”e“não invocou o seu nome em vão”. Aquele que não se deixou contaminar pelos ídolos, não lhes entregou o coração, não lhes ofereceu sacrifícios com as suas mãos e não lhes rendeu culto com os seus lábios. Esse pode entrar e habitar na casa do Senhor porque só para ele elava o seu olhar, é o seu rosto que ele procura.

A leitura da carta de João, dirigida a uma comunidade que vive atormentada com falsas doutrinas sobre Jesus, começa com um convite “Vede”. Na Bíblia fala-se muito deste ver: “Deus viu que era bom”, o povo de Deus viu as maravilhas que o Senhor realizou a seu favor, o olhar de Deus que se dirige para o justo, o pobre, o órfão e a viúva, o peregrino e o pecador procuram ver “a face de Deus”. Há também um outro modo de ver que não agrada a Deus: a mulher, Eva, viu que o fruto era agradável à vista, O povo viu os ídolos dos outros povos, Jesus alerta para um modo de ver “será mau o teu olhar…?”.

João distingue o olhar do cristão e o olhar do mundo. O olhar do cristão vê o “admirável amor o Pai”, “o mundo não o conheceu” porque tem os olhos fechados para esse amor que nos chama e faz de nós “filhos de Deus”. Não é um amor comum, mas um amor divino que nos transforma, recria, à imagem do Filho, “semelhantes a Deus”.

A filiação divina não é uma promessa para futuro, ela é “”uma realidade que o cristão possui por graça, “agora somos filhos de Deus”, no entanto, “ainda não” se revelou a plenitude desta filiação, essa plenitude pertence ao futuro. No presente temos uma certeza: sabemos com segurança porque contemplamos em nós o amor do Pai que, quando esse dia chegar, “seremos semelhantes a Deus”. Nesse dia poderemos vê-lo face a face e nessa visão seremos assimilados, transformados definitivamente pelo seu amor.

Conhecer esta verdade não é um ato meramente intelectual, é o exercício da esperança que exige compromisso no presente, pois, a visão futura motiva a purificação atual, “para ser puro, como Ele é puro”. A vida cristã é isso mesmo, uma imitação de Cristo, um caminho de conformação com a sua santidade.

O evangelho recolhe o texto das Bem-aventuranças que em Mateus dá início ao “Sermão da Montanha”. Jesus “sobe ao monte”, numa imagem que recorda Moisés que sobe ao Sinai para receber os dez mandamentos. Jesus é o novo Moisés. Jesus “sentou-se” como Mestre rodeado dos discípulos e da multidão e ensina a nova lei que vem completar e não abolir a antiga lei.

A “lei” está composta por oito bem-aventuranças (alguns autores dizem ser nove contando também o versículo 11 conclusivo). Todas se iniciam com “Bem-aventurados”; seguindo-se a indicação de um determinado grupo de pessoas e circunstâncias: os pobres, os que choram, os que lutam; e terminam com a indicação da recompensa que tem ligação direta com o Reino de Deus e que pode ser dada já ou no futuro. No final, o que pode ser a nona bem-aventurança, está dirigida aos discípulos e incide sobre a perseguição sofrida “por minha causa“. As bem-aventuranças mais de que de uma felicidade superficial, indicam um estado profundo de bem-estar, uma bênção divina, uma participação na alegria do Reino de Deus. Uma felicidade que contrasta com as circunstâncias externas. A força das palavras de Jesus afirma que são felizes aqueles que o mundo considera desgraçados.

Meditação da Palavra

Quando pensamos em “santos”, talvez nos venham à mente imagens de estátuas distantes, vitrais coloridos ou histórias de vidas heroicas, quase sobre-humanas. A Solenidade de Todos os Santos vem hoje alargar o nosso olhar e aquecer o nosso coração. Esta não é apenas a festa dos grandes nomes do calendário; é a festa de uma “multidão imensa, que ninguém podia contar“: a festa dos nossos avós, pais, amigos e vizinhos que viveram na fé e nos precederam na casa do Pai. É a festa da nossa família do Céu. E, mais ainda, é a festa da nossa própria vocação, do nosso destino.

A primeira leitura, do Livro do Apocalipse, abre uma janela para o Céu e mostra-nos o destino que nos espera. O que vemos? Não um clube exclusivo, mas uma multidão incontável de todas as nações, culturas e línguas. Estão de pé, vitoriosos, vestidos de branco e com palmas na mão, cantando o louvor de Deus. A sua santidade não é uniforme; é uma sinfonia de rostos e histórias.

E de onde vêm eles? Qual o segredo do seu sucesso? Um ancião explica: “São os que vieram da grande tribulação, os que lavaram as túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro“. A sua santidade não foi uma vida fácil, sem problemas. Foi uma vida de luta (“a grande tribulação“), mas uma luta cuja vitória não veio das suas próprias forças, mas da graça de Cristo, simbolizada no “sangue do Cordeiro“.

Se o Apocalipse nos mostra o destino, o Evangelho de hoje dá-nos o mapa para lá chegar. Jesus sobe ao monte e proclama as Bem-aventuranças. Este não é um código de leis, mas o retrato-falado do cidadão do Reino dos Céus. É o auto-retrato de Cristo e, por isso, o retrato de todos os que O seguem.

E que retrato é este? É uma vida ao contrário da lógica do mundo. Felizes não são os ricos, os auto-suficientes, os que dominam. Felizes são os “pobres em espírito“, os humildes, os que choram, os que têm fome de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os construtores da paz e os perseguidos. Ser santo não é fazer coisas extraordinárias; é viver o ordinário da vida com a lógica extraordinária do amor, da misericórdia e da humildade de Cristo.

Este caminho das Bem-aventuranças pode parecer-nos uma montanha demasiado alta para escalar. Mas a segunda leitura, de São João, revela-nos o segredo que torna a viagem possível. Ele não começa por dizer “Tendes de ser”, mas sim “Vede o que já sois“: “Vede que admirável amor o Pai nos consagrou em nos chamar filhos de Deus. E somo-lo de facto“.

A nossa santidade não parte do zero. Parte de uma identidade que já nos foi dada gratuitamente no Batismo. Somos filhos de Deus. A vida cristã não é um esforço desesperado para ganhar o amor de Deus, mas a resposta feliz de quem já se sabe amado. E esta identidade tem um futuro glorioso: “sabemos que […] seremos semelhantes a Deus, porque O veremos tal como Ele é“. A esperança neste destino dá-nos a força para nos purificarmos e caminharmos, dia após dia.

Rezar a Palavra

Senhor, quero ver como João, para contemplar o teu amor de Pai e compreender-me filho. Os meus olhos ainda não podem ver-te face a face e não consigo ter noção do que serei quando um dia experimentar o abraço que renova e salva todas as coisas. Dá-me, Senhor, o dom da esperança que compromete na mudança interior e na transformação do mundo. 

Compromisso semanal

Recordo os meus antepassados e reconheço neles a ação da graça divina que os santificou ao longo da vida, fazendo deles homens e mulheres de esperança.