A liberdade de não ter nada
Mandaste-me seguir-te e eu peguei em tudo o que tinha e fui contigo. Levei sandálias e alforge, túnica e capa. Levei pão e bolsa com dinheiro. Levei sonhos e projetos e vontade de chegar.
Hoje, olhaste para mim com amor e disseste… “falta-te uma coisa…”. Olhei para mim e não entendi… Que poderá faltar-me?
Depois percebi. Falta-me a liberdade de não ter nada, nem uma pedra onde reclinar a cabeça.
LEITURA I Sb 7, 7-11
Orei e foi-me dada a prudência; implorei e veio a mim o espírito de sabedoria. Preferi-a aos cetros e aos tronos e, em sua comparação, considerei a riqueza como nada. Não a equiparei à pedra mais preciosa, pois todo o ouro, à vista dela, não passa de um pouco de areia, e, comparada com ela, a prata é considerada como lodo. Amei-a mais do que a saúde e a beleza e decidi tê-la como luz, porque o seu brilho jamais se extingue. Com ela me vieram todos os bens e, pelas suas mãos, riquezas inumeráveis.
Atribuídas a Salomão, estas palavras recordam que, diante da sabedoria de Deus todas as coisas deste mundo são como lodo. Nem os cetros, os tronos, as riquezas, a prata, o ouro e as pedras preciosas valem alguma coisa diante da sabedoria. Até a saúde e a beleza são nada diante dela. Quem tem a sabedoria de Deus recebe com ela tudo o que necessita.
Salmo Responsorial Sl 89 (90), 12-13.14-15.16-17 (R. 14)
O salmista pede ao Senhor que lhe ensine a justa medida de todas as coisas, pois sem a sabedoria de Deus nem os dias somos capazes de medir “ensinai-nos a contar os nossos dias”. A falta de sabedoria leva ao afastamento de Deus e, por isso, é necessário pedir para regressar. A proximidade de Deus revela que a verdadeira alegria não está no resultado das nossas mãos, mas em tudo o que o Senhor faz por nós “Voltai, Senhor!… Tende piedade… Saciai-nos… Compensai… Manifestai… Confirmai….
LEITURA II Heb 4, 12-13
A palavra de Deus é viva e eficaz, mais cortante que uma espada de dois gumes: ela penetra até ao ponto de divisão da alma e do espírito, das articulações e medulas, e é capaz de discernir os pensamentos e intenções do coração. Não há criatura que possa fugir à sua presença: tudo está patente e descoberto a seus olhos. É a ela que devemos prestar contas.
Sabemos que diante da Palavra de Deus tudo fica revelado, porque ela penetra até ao mais íntimo, até onde se escondem as intenções. Desta forma podemos conhecer a verdade e tomar decisões mais verdadeiras para seguirmos pelo caminho que Deus mesmo nos oferece, o caminho da vida eterna.
EVANGELHO Forma longa Mc 10, 17-30
Naquele tempo, ia Jesus pôr-Se a caminho, quando um homem se aproximou correndo, ajoelhou diante d’Ele e perguntou-Lhe: «Bom Mestre, que hei de fazer para alcançar a vida eterna?». Jesus respondeu: «Porque Me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus. Tu sabes os mandamentos: ‘Não mates; não cometas adultério; não roubes; não levantes falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe’». O homem disse a Jesus: «Mestre, tudo isso tenho eu cumprido desde a juventude». Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu: «Falta-te uma coisa: vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me». Ouvindo estas palavras, anuviou-se-lhe o semblante e retirou-se pesaroso, porque era muito rico. Então Jesus, olhando à sua volta, disse aos discípulos: «Como será difícil para os que têm riquezas entrar no reino de Deus!». Os discípulos ficaram admirados com estas palavras. Mas Jesus afirmou-lhes de novo: «Meus filhos, como é difícil entrar no reino de Deus! É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus». Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros: «Quem pode então salvar-se?». Fitando neles os olhos, Jesus respondeu: «Aos homens é impossível, mas não a Deus, porque a Deus tudo é possível». Pedro começou a dizer-Lhe: «Vê como nós deixámos tudo para Te seguir». Jesus respondeu: «Em verdade vos digo: Todo aquele que tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras, por minha causa e por causa do Evangelho, receberá cem vezes mais, já neste mundo, em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, juntamente com perseguições, e, no mundo futuro, a vida eterna».
O evangelho oferece três diálogos de Jesus, um com o homem rico, outro com os discípulos e outro com Pedro. Nestes diálogos ensina que, diante dele, é necessário fazer escolhas e nem todos são capazes de decidir o melhor porque o desprendimento é difícil. Só unidos a Deus saberemos desprender-nos para seguirmos Jesus.
Reflexão da Palavra
Para compreender o texto do livro da Sabedoria, que se lê este domingo, é necessário recordar aquele episódio de 1Rs 3, 5-15, onde se relata o sonho de Salomão em Gabaon e onde ele, ainda no início do seu reinado, não pede a Deus riquezas nem poder, mas apenas “um coração cheio de entendimento para governar o teu povo, para discernir entre o bem e o mal” (3,9).
Sabemos, pela experiência da vida, que a felicidade não se encontra nas riquezas, no poder nem no conhecimento. Tudo isto, diz a primeira leitura é “como nada… não passa de um pouco de areia… considerada como lodo”. Salomão escolhe a sabedoria do coração e não as riquezas. Em resposta Deus dá-lhe o que ele não pede, como recompensa “dou-te um coração sábio… dou-te também o que nem sequer pediste: riqueza e glória” (3,12).
O livro da sabedoria, escrito novecentos anos depois de Salomão, vem ensinar aos que estão agarrados ao poder e às riquezas, julgando-se donos de uma inteligência superior, duas lições. A primeira é que, nada do que eles possuem tem realmente valor se não estiver orientado pela verdadeira sabedoria e, esta, é dada por Deus aos que a pedem com humildade como Salomão, “orei e foi-me dada a prudência; implorei e veio a mim o espírito de sabedoria”. A segunda é que, ricos ou pobres, sábios ou humildes, poderosos ou súbditos, todos somos homens, criaturas, e não Deus. Só Deus é o Senhor.
O salmo 89 é um salmo penitencial que terá feito parte de uma celebração no templo de Jerusalém. O salmo é todo ele uma tomada de consciência do poder eterno de Deus e da caducidade da vida humana. Enquanto Deus é “desde sempre e para sempre”, a existência do homem é pó e volta ao pó apenas com uma palavra de Deus. Mil anos para Deus é como o dia de ontem e os dias do homem “passam depressa e nós desaparecemos”, podem ser setenta, quando muito oitenta anos, e são trabalho e miséria. O salmista sente que Deus colocou “as nossas culpas diante de ti, os nossos pecados ocultos, à luz da tua face”. Por isso, eleva uma súplica ao Senhor, “ensina-nos a contar os nossos dias, para chegarmos à sabedoria do coração”. E ainda, “volta, Senhor!… tem compaixão… Sacia-nos… alegra-nos… Manifesta o teu esplendor… Venham sobre nós as graças do Senhor… confirmai em nosso favor a obra das nossas mãos”.
Em muitas situações da história da salvação, desde as primeiras páginas de Genesis até Jesus, a palavra de Deus aparece como criadora de todas as coisas, fundadora do seu povo, libertadora de todos os cativeiros, orientadora no caminho da vida e na fuga do mal, no chamamento à fidelidade e ao amor de Deus, no abandono do pecado e na conversão. Em muitas situações a palavra foi luz para os passos do rei, do povo, de cada homem e foi uma espada capaz de sentenciar aqueles que não prestaram atenção à palavra. Recordamos aqui as palavras de Dt. 32,46-47 “Tomai em consideração todas as palavras que eu testemunho hoje contra vós e que deveis ordenar aos vossos filhos a fim de que guardem e cumpram todas as palavras desta lei. Ela não deve ser para vós uma coisa indiferente, porque ela é a vossa vida e por ela prolongareis os vossos dias sobre a terra, da qual ides tomar posse”.
A carta aos Hebreus recorda que a Palavra de Deus atinge todas as realidades do homem, a alma e o espírito, as articulações, as medulas, os pensamentos e intenções do coração. Todos seremos julgados pela palavra e ninguém lhe pode escapar. Este poder de penetrar em nós, não é para condenar, mas para salvar. Jesus é a Palavra do Pai feita carne e “Deus não enviou o seu filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3, 17).
No evangelho, Marcos apresenta um homem que se aproxima de Jesus quando ele vai com os discípulos a caminho de Jerusalém. A cena está cheia de pormenores interessantes para a compreensão de quem lê o evangelho. O homem não tem nome, nem idade, como no evangelho de Mateus que refere tratar-se de um jovem, nem posição social como em Lucas que diz ser um chefe. O homem demonstra ter um assunto urgente para resolver, pelo que se aproxima a correr e reconhece em Jesus grande autoridade, ao ponto de se colocar de joelhos e de o tratar por mestre. O assunto sério surge em forma de pergunta “que hei de fazer para alcançar a vida eterna?”.
A pergunta está no centro, entre Jesus e o homem. Trata-se de uma questão de “vida ou de morte”. Ele quer alcançar a “vida eterna”. Como resposta, Jesus aponta para os mandamentos e o homem revela que os cumpre desde a juventude. Perante isto, Jesus desafia-o a ir mais longe “falta-te uma coisa: vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me”. A resposta de Jesus não permite indecisão, é muito clara na afirmação “vai… vende… dá… vem e segue-me”. A decisão está, agora, nas mãos daquele homem que tem urgência em resolver a questão mais séria da sua vida.
É perante a resposta de Jesus que ficamos a saber que este homem “era muito rico”. É por causa das riquezas que ele toma a decisão contrária ao desafio de Jesus “anuviou-se-lhe o semblante e retirou-se pesaroso”, ou seja, entrou na escuridão daquela morte que ele queria evitar na sua vida. Aquele que desejava a vida eterna, fica-se pela noite escura das riquezas acumuladas que ele, por experiência, sabe que não é vida.
O olhar de Jesus que manifestava amor por aquele homem, desvia-se para os discípulos e conclui que é “difícil para os que têm riquezas entrar no reino de Deus!”. Marcos deixa claro a todos os que leem o seu evangelho que, ser discípulo de Jesus implica uma opção séria e um desprendimento de todas as amarras e que esta, não é uma tarefa fácil. Entrar no reino é difícil mesmo para os que cumprem a lei, para os que desejam o bem e até para os que admiram Jesus e andam com ele. Esta exigência leva os discípulos a questionar “Quem pode então salvar-se?”. A resposta de Jesus encerra uma decisão, pois, seguindo os critérios dos homens ninguém consegue entrar, mas seguindo os critérios de Deus, que ele próprio apresenta com a sua vida, é possível. Desprendido dos bens deste mundo o homem vive da gratuidade de Deus, reconhece a sua bondade e deixa-se seduzir ao ponto de entregar toda a sua vida nas suas mãos, como Jesus. Na bondade de Deus está a recompensa que o homem experimenta quando vende tudo e dá aos pobres.
É isso que Jesus diz a Pedro quando ele questiona “vê como nós deixámos tudo para Te seguir”. Pedro questiona Jesus sobre que recompensa pode esperar por ter deixado tudo. Se muitos não vão entrar no reino que Jesus vai instaurar em Jerusalém, eles, os doze, não podem ficar sem recompensa. Os critérios de Pedro são ainda os dos homens. Por isso, Jesus aponta para uma recompensa que pode ter tudo o que ele deixou, mas “juntamente com perseguições”. Não se entra no reino sem passar pela tribulação. Não é por acaso que no seguimento desta cena vem a terceiro anúncio da paixão.
Meditação da Palavra
A vida de cada homem é a história de um chamamento a seguir Jesus até à vida eterna. É assim que começa a vida cristã de todos os batizados. No batismo perguntam-nos “Para que queres o batismo?” A esta pergunta respondemos “para alcançar a vida eterna”. A liturgia deste domingo pede que façamos uma avaliação sobre o objetivo “alcançar a vida eterna” e o sobre os meios que usamos e as opções que fazemos para lá chegar.
Recordamos que, domingo passado, a palavra nos questionava se queríamos a ditadura da Lei ou a liberdade do coração. A lei permite ou proíbe, mas o coração liberta. Também este domingo, o desafio é procurar tudo o que liberta o coração. Os bens deste mundo, a riqueza, o poder, e até a saúde e a beleza, podem tomar o lugar de Deus e aprisionar o coração de modo que deixamos de ser livres para seguir Jesus até onde ele nos levar.
Recordamos que os discípulos, depois de decidirem seguir Jesus, se encontram a caminho de Jerusalém na expetativa de que ele vai restaurar o reino de Israel e, finalmente, eles vão receber a recompensa por terem deixado tudo. No caminho, por duas vezes, Jesus afirmou que vai morrer e eles, manifestaram-se contrários a essa possibilidade. Pedro chegou mesmo a avançar para a frente de Jesus querendo impedi-lo.
O evangelho fala de um homem que, por não ter nome, nem idade nem posição social, pode ser qualquer um de nós. Trata-se de um homem bom, que cumpre os mandamentos desde a juventude e que tem como desejo alcançar a vida eterna. Nós também somos boas pessoas, procuramos cumprir os mandamentos e desejamos alcançar a vida eterna. Como para ele, Jesus também nos olha com amor e, nas palavras do evangelho de marcos, desafia-nos “vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me“. Se queres, como dizes, alcançar a vida eterna tens que te desprender de tudo o que impede qualquer homem de lá chegar. Coloca Deus no primeiro lugar e não deixes que o coração fique preso aos tesouros da terra, porque “onde estiver o teu tesouro aí estará o teu coração”, afirma Jesus. Parece estranho que Jesus nos diga, a nós, que ainda nos falta uma coisa, mas é a verdade.
Aos discípulos pareceu-lhes estranho que Jesus considerasse os bens, as riquezas deste mundo, um impedimento para alcançar a vida eterna. Eles tinham deixado tudo, na perspetiva de virem a alcançar ainda mais. Lembremos os dois discípulos Tiago e João, que vêm com a mãe para pedir um lugar à sua direita e à sua esquerda no reino. Os discípulos, quando Jesus lhes diz cara a cara “como será difícil para os que têm riquezas entrar no reino de Deus!” e repetiu com um exemplo “Meus filhos, como é difícil entrar no reino de Deus!”, ficaram apavorados e soltaram uma exclamação involuntária, a medo “Quem pode então salvar-se?”. A condição do homem, como revela o salmo 89 é marcada pela caducidade. Sem Deus o homem é pó, os seus dias são como um sopro e se Deus coloca diante de si os nossos pecados, então, “quem poderá salvar-se?”. Mas “no Senhor está a misericórdia” e a ele nada é impossível, ele pode sempre voltar para nós os seus olhos e salvar-nos.
As duas leituras oferecem um caminho, o da sabedoria que vem de Deus e é dada aos humildes que a pedem “orei e foi-me dada a prudência; implorei e veio a mim o espírito de sabedoria” e “com ela me vieram todos os bens e, pelas suas mãos, riquezas inumeráveis”, diz o livro da Sabedoria recordando o exemplo de Salomão. Mas também deixando a palavra penetrar até à medula, até onde se escondem as intenções do coração, para que fique tudo “patente e descoberto a seus olhos” porque é por ela que somos examinados para entrar na vida eterna.
Rezar a Palavra
Volta, Senhor, para nós e ensina-nos a sabedoria do coração. Examina-nos com a tua palavra para sermos purificados das nossas faltas e libertos das nossas amarras. Que o nosso desejo de vida eterna nos leve a fazer contigo o caminho de Jerusalém e a unirmos à tua a nossa vida, de modo que sejam confirmadas em ti as obras das nossas mãos.
Compromisso semanal
Examino, à luz da palavra do evangelho, as intenções do meu coração.