Demasiado humano para ser divino

Saíram da fábrica depois de oito horas de trabalho. Levantaram-se cedo e foram juntos correr e libertar toxinas. Combinaram o almoço de fim de semana depois de um passeio de bicicleta. Encontraram-se no domingo de manhã para o café habitual. Encontram-se regularmente junto da escola onde estudam os filhos. Despedem-se sempre com olhar de amigos. Falam muitas vezes do que sentem, do que vivem, do que os move, daquilo em que acreditam. Invariavelmente, um diz ao outro como remate de conversa “mostra-me as tuas asas e acreditarei em ti”.

LEITURA I Ez 2, 2-5

Naqueles dias, o Espírito entrou em mim e fez-me levantar. Ouvi então Alguém que me dizia: «Filho do homem, Eu te envio aos filhos de Israel, a um povo rebelde que se revoltou contra Mim. Eles e seus pais ofenderam-Me até ao dia de hoje. É a esses filhos de cabeça dura e coração obstinado que te envio, para lhes dizeres: ‘Eis o que diz o Senhor’. Podem escutar-te ou não – porque são uma casa de rebeldes –, mas saberão que há um profeta no meio deles».

Ezequiel, profeta do exílio, é enviado por Deus a dar esperança aos exilados. Deus avisa-o de que o seu povo, a quem ele o envia, é um povo de cabeça dura, podem escutar ou não, mas ele tem uma missão que recebeu e não pode deixar de a cumprir mesmo que isso lhe traga dissabores.

Salmo 122 (123), 1-2a.2bcd.3-4 (R. 2cd)

O povo humilhado, eleva a Deus uma súplica porque já não suporta mais o desprezo e o sarcasmo dos arrogantes e dos orgulhosos. A súplica traduz-se num pedido simples, sincero e confiado “tem piedade de nós”.

LEITURA II 2 Cor 12, 7-10

Irmãos: Para que a grandeza das revelações não me ensoberbeça, foi-me deixado um espinho na carne, – um anjo de Satanás que me esbofeteia – para que não me orgulhe. Por três vezes roguei ao Senhor que o apartasse de mim. Mas Ele disse-me: «Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que se manifesta todo o meu poder». Por isso, de boa vontade me gloriarei das minhas fraquezas, para que habite em mim o poder de Cristo. Alegro-me nas minhas fraquezas, nas afrontas, nas adversidades, nas perseguições e nas angústias sofridas por amor de Cristo, porque, quando sou fraco, então é que sou forte.

Paulo, junto com a grandeza da sua dedicação ao evangelho e à Igreja, sente que dentro de si existem fraquezas que são como um espinho. No entanto, em vez de se lamentar, ele gloria-se nas suas fraquezas porque quando é fraco é que é forte, porque nele se manifesta o poder de Cristo.

EVANGELHO Mc 6, 1-6

Naquele tempo, Jesus dirigiu-Se à sua terra e os discípulos acompanharam-n’O. Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes estavam admirados e diziam: «De onde Lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que Lhe foi dada e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E não estão as suas irmãs aqui entre nós?». E ficavam perplexos a seu respeito. Jesus disse-lhes: «Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa». E não podia ali fazer qualquer milagre; apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. Estava admirado com a falta de fé daquela gente. E percorria as aldeias dos arredores, ensinando.

Na sua terra, em Nazaré, Jesus não fez nenhum milagre porque não encontrou fé. As pessoas sabiam que ele era o filho de Maria, mas, apesar de verem e ouvirem o que Jesus dizia e fazia, não chegaram a compreender que o carpinteiro, filho de Maria, é também o Filho de Deus.

Reflexão da Palavra

Perdida a independência do reino de Judá, cuja história não cabe aqui descrever, Ezequiel vai para o exílio de Babilónia na primeira deportação, no ano 597. É ali, no meio dos desterrados que o jovem recebe de Deus a vocação profética.

Filho do sacerdote Buzí, está familiarizado com a situação político-religiosa do tempo anterior ao desterro. Exilado fala aos seus conterrâneos do que se passa em Judá e em Jerusalém e anuncia a queda da cidade como uma catástrofe provocada pelas injustiças praticadas pelos governantes sobre o povo. Anuncia também a esperança na libertação que o Senhor vai realizar a seu tempo.

O seu ministério é realizado através de ações simbólicas, parábolas e imagens, bem como através de discursos.

O texto deste domingo é tirado do relato vocacional do profeta. A sua vocação é apresentada como uma ação de Deus e não uma decisão do próprio: “o Espírito entrou em mim e fez-me levantar”, é assim que descreve o profeta o seu chamamento. O profeta vê os céus abertos e “contempla visões divinas”, entre outras ele contempla “algo que tinha o aspeto da glória de Deus” (1,28). Ele é reconhecido como o “filho do sacerdote Buzí” (1,3), “Filho de homem” (2,1), ou seja, “filho de Adão”. O profeta pertence à terra. Efetivamente ele cai por terra ao contemplar a glória de Deus “contemplei e prostrei-me com o rosto por terra” (1,28), situação da qual só sai quando a voz que lhe fala, diz: “põe-te de pé” e no mesmo instante o “Espírito penetrou em mim… e mandou-me pôr de pé (2,2). 

O interlocutor do profeta é “uma voz”, “ouvi uma voz que falava” (1,28) e que dá ordens indicando a missão “vou enviar-te”, “envio-te a eles e deves dizer-lhes”. A missão é a de anunciar o que lhe é mandado, “assim fala o Senhor Deus”. O importante é dizer tudo o que lhe é mandado para que saibam que “há um profeta entre eles”. Aqueles a quem o profeta é enviado são “filhos de Israel”, “rebeldes, que se insurgiram contra mim”, “têm a cabeça dura e o coração obstinado”. O profeta não pode ter medo, “não tenhas medo”, “não receies as suas palavras, ainda que espinhos e abrolhos te rodeiem, e te venhas a sentar sobre escorpiões” e não deve estar preocupado se o escutam ou não, “podem escutar-te ou não”.

Rodeado de gente arrogante e orgulhosa, o salmista, e com ele toda a comunidade suplicante que sobe a Jerusalém, suplica a Deus que tenha piedade. Por duas vezes aparece a súplica “tem piedade”, aliás é essa a motivação do salmista. O salmo, dividido em duas partes, revela na primeira parte uma grande confiança em Deus de quem se espera que “tenha piedade de nós”. Na segunda parte surge a súplica nascida de uma situação de humilhação, “estamos saturados de desprezo. A nossa alma está saturada do sarcasmo”. Apesar da dureza da situação, o povo não grita nem se manifesta com gemidos, apenas “levanto os meus olhos para Vós, para Vós que habitais no Céu”, com o mesmo sentimento que o escravo e a escrava, “como os olhos do servo”, “como os olhos da serva”, “assim os nossos olhos”, não por serem escravos, mas por confiarem e esperarem no Senhor.

Paulo tem razões para se gloriar e não precisa de inventarnada. A sua dedicação ao evangelho e às comunidades por ele fundadas, assim como os sofrimentos por que passou, são de tal ordem que ele tem razões suficientes para se apresentar e se impor diante dos coríntios, mas não o faz.

Pelo contrário, Paulo reconhece que tem “fraquezas” e entende que não deve gloriar-se por outras razões a não ser por essas fraquezas, para não causar em outros uma ideia errada a seu respeito. 

Porque razão se há de gloriar nas fraquezas? Porque o Senhor lhe disse “basta-te a minha graça”. Paulo entende, então, que a força está em Deus e não nele e a força de Deus se manifesta na fraqueza, como já tinha esclarecido no capítulo 4 desta segunda carta, ao dizer “trazemos este tesouro em vasos de barro, para que se veja que este extraordinário poder é de Deus e não é nosso”. Por isso, Paulo encontra alegria “nas fraquezas, nas afrontas, nas adversidades, nas perseguições e nas angústias” que sofre não por heroísmo, mas “por amor a Cristo” e porque “quando sou fraco, então é que sou forte”, porque se manifesta nele o poder de Cristo.

O evangelho mostra Jesus, sempre acompanhado dos discípulos, na “sua terra” e mais concretamente, a ensinar na sinagoga em dia de sábado. À partida o leitor pensa que todos conhecem Jesus, porque Nazaré é a sua terra, mas na realidade as pessoas revelam não o conhecer verdadeiramente, porque perguntam “de onde Lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que Lhe foi dada e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos?”. Significa que o conhecem mas não assim, como ele se apresenta na função de ensinar nem com as capacidades divinas que ali revela.

O que sabem as pessoas da sua terra? Que ele é o “filho de Maria”. Mas o leitor de Marcos sabe, desde o início do evangelho que, aquele a quem reconhecem como “o carpinteiro, filho de Maria” é o “Filho de Deus”. Marcos oculta a paternidade adotiva de José, dando prioridade à mãede Jesus, precisamente para insistir que a paternidade de Jesus é divina.

O conhecimento da filiação humana impede-os de ver a filiação divina. Apesar de ouvirem e verem o que Jesus diz e faz, “ficavam perplexos a seu respeito”, escandalizados, é o termo mais fiel, porque não creem. Em resposta à sua incredulidade permanente, Marcos acentuam a permanente admiração de Jesus. Como podem continuar incrédulos diante de Jesus depois do que viram e ouviram?

O sinal maior da incredulidade está na impossibilidade de fazer milagres. Jesus manifestou o seu poder diante dos seus conterrâneos, mas o seu poder não vai contra a liberdade de cada um. Por isso, “apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos”.

Do mesmo modo que os profetas foram rejeitados, também Jesus, mais que profeta, é rejeitado. No entanto, como tivemos oportunidade de ver em Ezequiel, a missão de Jesus não termina ali, “podem escutar-te ou não mas saberão que há um profeta no meio deles” (Ez 2,5). Por isso, Marcos termina dizendo “percorria as aldeias dos arredores, ensinando”.

Meditação da Palavra

A liturgia deste domingo coloca-nos perante três personagens que assumem nas suas vidas a vocação profética. Ezequiel é chamado por Deus para ir e falar, arriscando-se a enfrentar “espinhos, abrolhos e escorpiões” e a não ser escutado porque fala a um povo “de cabeça dura e coração obstinado”. Paulo, desde a experiência no caminho de Damasco nunca maisdeixou de anunciar o evangelho no meio de “fraquezas, afrontas, adversidades, perseguições e angústias” e arriscando-se à incompreensão daqueles que não o reconhecem como verdadeiro apóstolo por lhe conhecerem as fraquezas. Jesus, que ensina com sabedoria e poder sobrenatural na sinagoga de Nazaré, tem dificuldade em que o reconheçam para além da sua realidade humana. Para os conterrâneos ele é apenas “o carpinteiro, filho de Maria”.

Para os habitantes de Nazaré, por ser o carpinteiro, Jesus não merece crédito apesar de ficarem admirados com a sua sabedoria e reconhecerem que ele atua com uma força superior a ele, uma força divina, a partir da qual ele realiza “tão grandes milagres”. A filiação de Jesus é, para os seus conterrâneos, uma pedra que os impede de chegar ao reconhecimento da sua origem divina. 

Para nós, os leitores do evangelho de Marcos, a pergunta sobre Jesus, implícita no desabafo dos ouvintes de Nazaré,“de onde é que isto lhe vem…?”, já foi feita muitas vezes e tem uma resposta desde o início do evangelho, ele é “o filho de Deus”. Mas para eles, de acordo com Marcos, Jesus é apenas o “filho de Maria” que, por ser um simples carpinteiro não merece reconhecimento, pelo que, ficaram escandalizados, “isto parecia-lhes escandaloso”.

A atitude deles, provoca em Jesus uma admiração, pelo facto de persistirem, obstinadamente, em não acreditar nele. É a mesma atitude do povo de Deus, deportado em Babilónia, a quem Ezequiel é enviado. Estes são os “filhos de Israel”, “rebeldes, que se insurgiram contra mim”, “têm a cabeça dura e o coração obstinado”.

De pessoas com esta atitude pode esperar-se que não escutem, ainda que quem fala possa ser um profeta, como Ezequiel, ou um apóstolo, como Paulo, ou o próprio filho de Deus, como Jesus. A rejeição da palavra está sempre presente como uma possibilidade. Afinal Ezequiel é apenas o “filho de homem”, Paulo nasceu para Cristo “como um abortivo” e Jesus é somente “o Filho de Maria”. Os limites humanos e terrenos não deviam ser razão para não aceitar a palavra de Deus, mas Deus não vai contra a liberdade de o homem aceitar ou não a sua palavra.

Ezequiel é desde logo avisado pela voz que lhe fala “podem escutar-te ou não – porque são uma casa de rebeldes”. Paulo reconhece que a sua fraqueza é, para o seu ministério, um impedimento para que muitos acolham o evangelho, mas foi avisado pelo Senhor de que a força do evangelho não vem dele, vem de Deus. Por isso, recebe do Senhor a resposta positiva de “basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que se manifesta todo o meu poder”. Jesus vê-se confrontado com a sua origem humana e sente a oposição dos ouvintes, porque é o “carpinteiro, filho de Maria”.

Para o crente, esta oposição surge muitas vezes como motivo de desânimo. O leitor de Marcos fica tão admirado como Jesus perante a incredulidade dos habitantes de Nazaré. Afinal, os pagãos reconhecem Jesus como filho de Deus, os espíritos impuros sabem quem ele é, e os que o viram crescer não são capazes de ver além da realidade humana de Jesus. De facto, em conclusão, percebe-se que “um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa”.

Ezequiel é apenas um deportado entre muitos, Paulo é um judeu como tantos, Jesus é um nazareno como os da sua terra, todos demasiado humanos para poderem ser divinos. Em todos os tempos e lugares, homens e mulheres, falaram e falam como enviados de Deus. Padres, diáconos, religiosos, catequistas, orientadores das celebrações dominicais, professores de EMRC, anunciam o evangelho de Jesus, o Filho de Deus, e sentem muitas vezes a rejeição por parte de quem os escuta, só porque são humanos, porque lhes conhecem os defeitos, os pecados, as imperfeições e fraquezas. São demasiado humanos para serem divinos. Alguns desanimam e não querem escutar por verem a fraqueza dos que anunciam e por vezes os que anunciam desanimam ao ver que não os querem escutar.

O exemplo de Jesus, que não se deixa vencer pela falta de fé dos nazarenos, e o exemplo de Ezequiel que continua a sua missão profética apesar de não ser escutado e o exemplo de Paulo que se alegra nas suas fraquezas transformando-as em lugar da manifestação do poder de Deus, servem aos crentes de todos os tempos para não desistirem perante as adversidades causadas pelos incrédulos, ou por quantos de coração obstinado e cabeça dura resistem em não escutar a “voz que fala”, ou pelos arrogantes e orgulhosos que desprezam e humilham os que anunciam o evangelho.

Resistindo perante as adversidades, os crentes revelam que existe no meio deles um profeta, que tem o poder de Deus eanuncia uma palavra que salva. É sempre possível transformar o mensageiro em adversário, mas também é possível encontrar no outro aquele que vem em nome do Senhor.

Rezar a Palavra

Sou demasiado humano e vivo no meio de humanos com dificuldade para ver o divino acontecer nas palavras, nos gestos, nas relações, nos encontros, nos abraços, na preocupação com o outro. Somos todos demasiado humanos para nos percebermos divinos, para percebermos que tu, Senhor, te revelas neste humano. O teu poder, Senhor, não dispensa a nossa vontade, a decisão livre da nossa adesão. Mostra-nos as asas que colocaste em cada um e faz-nos ver a tua presença também naqueles que não querem escutar, para não desistirmos de anunciar o evangelho daquele que salva, porque é o Filho de Maria que também é Filho de Deus.

Compromisso semanal

Quero vencer o humano sem deixar de ser humano, para que se possa ver que o poder vem de Deus e não de mim.