Vai à fonte
No coração da aldeia, existia uma fonte antiga, de onde jorrava, incessante, uma água cristalina e fresca. Era o ponto de encontro de todos. Ali, pessoas de todas as idades se demoravam, partilhando conversas sérias ou banais, a vida que fluía em cada dia.
As crianças corriam para a fonte nos intervalos das brincadeiras e os jovens quebravam o silêncio da noitecom as suas gargalhadas. As mulheres depositavam ali os seus queixumes e preocupações, enquanto os homens lavavam o suor do trabalho árduo, encontrando um momento de descanso. A fonte era, verdadeiramente, o refúgio de toda a aldeia.
Tornou-se comum o conselho: “Vai à fonte.” Sempre que alguém se lamentava, vivia uma incerteza, procuravaconsolo, precisava de uma resposta, ou sentia um amargo na boca, uma dor no coração, um peso na alma, ou qualquer sentimento negativo, ouvia dentro de si o chamamento “Vai à fonte!”. E, invariavelmente, todos os que iam à fonte encontravam alívio e paz.
LEITURA I Zc 12, 10-11; 13, 1
Eis o que diz o Senhor: «Sobre a casa de David e os habitantes de Jerusalém derramarei um espírito de piedade e de súplica. Ao olhar para Mim, a quem trespassaram, lamentar-se-ão como se lamenta um filho único, chorarão como se chora o primogénito. Naquele dia, haverá grande pranto em Jerusalém, como houve em Hadad-Rimon, na planície de Megido. Naquele dia, jorrará uma nascente para a casa de David e para os habitantes de Jerusalém, a fim de lavar o pecado e a impureza».
Ao olhar para aquele que trespassaram, Jesus o crucificado, tomamos consciência do nosso pecado. Deus envia o seu Espírito de piedade e de súplica para nos conduzir à conversão e fará surgir uma nascente para lavar os nossos pecados e as nossas iniquidades. Jesus é esta nascente à qual podemos sempre ir para nos purificarmos.
Salmo 62 (63), 2-6.8-9 (R. 2b)
Neste salmo ressoa um grito de aflição, mas também de confiança. O salmista, sentindo-se vazio, como um deserto, sem vida, reconhece que só em Deus está a vida e só nele pode encontrar refúgio. O salmista representa a nossa humanidade anestesiada com as circunstâncias, perdida no meio do mundo, sem rumo e sozinha à procura da felicidade. O salmista dá-se conta de que só em Deus pode encontrar a verdadeira vida, só nele encontra refúgio.
LEITURA II Gal 3, 26-29
Irmãos: Todos vós sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, porque todos vós, que fostes batizados em Cristo, fostes revestidos de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; todos vós sois um só em Cristo Jesus. Mas, se pertenceis a Cristo, sois então descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa.
Contra aqueles que queriam impor a lei judaica a todos os que se convertiam ao cristianismo, Paulo afirma que em Cristo encontrámos a liberdade. Foi por um dom gratuito e não como um direito de pertença a um povo, ou por mérito documprirmos fielmente a lei, que fomos justificados. Em Cristo encontrámos a liberdade total e tornámo-nos herdeiros de Abraão, não pelo sangue, mas pela fé.
EVANGELHO Lc 9, 18-24
Um dia, Jesus orava sozinho, estando com Ele apenas os discípulos. Então perguntou-lhes: «Quem dizem as multidões que Eu sou?». Eles responderam: «Uns, dizem que és João Batista; outros, que és Elias; e outros, que és um dos antigos profetas que ressuscitou». Disse-lhes Jesus: «E vós, quem dizeis que Eu sou?». Pedro tomou a palavra e respondeu: «És o Messias de Deus». Ele, porém, proibiu-lhes severamente de o dizerem fosse a quem fosse e acrescentou: «O Filho do homem tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas; tem de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia». Depois, dirigindo-Se a todos, disse: «Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-Me. Pois quem quiser salvar a sua vida, há de perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa, salvá-la-á».
Jesus não se identifica com a opinião geral e os seus discípulos não podem seguir os critérios das multidões. Jesus é o Messias da cruz com o qual se hão de identificar os discípulos pegando na cruz todos os dias e encontrando em Jesus a nascente de onde jorra a verdadeira vida.
Reflexão da Palavra
O texto da primeira leitura é tirado da segunda parte do livro de Zacarias, provavelmente de um autor anónimo, inserido aqui já depois da morte do profeta, entre o século IV-III a. C, durante o domínio helénico. Usa o estilo apocalíptico com respeito à libertação de Jerusalém.
É Deus quem fala, e refere-se ao que ele próprio vai fazer, “derramarei um espírito”, num futuro desconhecido, “naquele dia” e as consequências da sua ação “haverá grande pranto em Jerusalém”. Trata-se do dia do Senhor, do “espírito de piedade e de súplica” que será derramado sobre o seu povo aqui representado pela “casa de David e os habitantes de Jerusalém”.
Em consequência da vinda do Espírito, todos verão aquele “a quem trespassaram”. Trata-se de uma figura enigmática que Deus identifica com ele “ao olhar para Mim”. Podemos deduzir que se trata de alguém com quem o próprio Deus se identifica, um profeta, ou todo o povo que, por causa do pecado de alguns, sofre as consequências do domínio estrangeiro. Ao ler esta referência os cristãos reportam-se imediatamente para Jesus, o crucificado a quem os soldados trespassaram com a lança.
O corpo da leitura é, então, ocupado com a descrição da dor e do luto provocado pelo mal realizado, só idêntica à dor e ao pranto que se faz por um filho único: “lamentar-se-ão como se lamenta um filho único, chorarão como se chora o primogénito. Naquele dia, haverá grande pranto em Jerusalém”.
A ação de Deus, porém, não tem como objetivo um luto nacional. Deus procura sempre a conversão do seu povo e não uma vingança. Por isso, depois da tomada de consciência, do choro do luto e das lamentações, vem o tempo da graça inesgotável: “jorrará uma nascente”. A expressão indica abundância inesgotável. Deus, quando perdoa, abre as mãos e deixa que a sua graça chegue em abundância ao coração do seu povo a fim de “lavar o pecado e a impureza”. Também aqui se pode perceber uma referência ao lado aberto de Jesus de onde João vê sair “sangue e água” (Jo 19,34), sinais dos sacramentos da vida nova, Batismo e Eucaristia.
O salmista apresenta-se como um homem devorado pela sede ao ponto de procurar incansavelmente a Deus. A sua sede é profunda e não pode ser saciada com água. É uma sede existencial que faz de todo o seu ser um deserto, um vazio, uma “terra árida, sequiosa, sem água”, de tal modo que só Deus pode preencher, saciar, transformar.
Esta sede é o ponto de partida de um a caminho de fé, porque me diz que a fonte que procuro não está em mim nem nas coisas deste mundo, mas em Deus. O salmista é alguém que já teve uma experiência anterior e, por isso, sabe onde encontrar aquele que o seu coração procura: “quero contemplar-vos no santuário”. Com a sua experiência de vida percebe, agora, que “a vossa graça vale mais que a vida”, do mesmo modo que sabe que no Senhor será “saciado com saborosos manjares” e só nele encontra o seu “refúgio”.
Paulo escreve aos cristãos da Galácia, uma província da Ásia Menor num momento em que aquelas comunidades foram sobressaltadas por uma crise provocada por cristãos agarrados ao judaísmo que exigiam o cumprimento da Lei de Moisés, sobretudo a circuncisão, a todos os que se tornavam cristãos. Paulo não pode concordar com isso, porque ele entende que o tempo da Lei passou, cumpriu a sua missão que era conduzir para Cristo. Agora é o tempo da fé “todos vós sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo”, portanto já não há lugar para esperar seja o que for do cumprimento das obrigações judaicas.
Os cristãos não são filhos de Deus por direito, por pertencerem a um povo, nem por mérito, por cumprirem a Lei, mas gratuitamente, como um dom, que se recebe pela fé que é adesão total, entrega da vida a Jesus Cristo. Este dom é para “todos” e brota do batismo comum, “há um só batismo”,que faz o mesmo em todos e esbate as diferenças religiosas, sociais e biológicas, porque na vida em Cristo isto não importa: “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher”. Cumpre-se aqui o requisito necessário para ser descendente de Abrão.
O texto do evangelho tem o seu centro na expressão de Jesus “O Filho do homem tem de sofrer muito”. Sem esta afirmação a resposta sobre quem é Jesus, é mera filosofia, palavreado inútil, que não tem nada de novo nem de interessante, porque só diz o que se pode dizer de qualquer outro. Esta expressão guarda a novidade sobre Jesus. Ele não é, nem João Batista, nem Elias, nem nenhum dos outros profetas. Ele é aquele de quem eles falavam, como se vê na primeira leitura quando Zacarias fala daquele “a quem trespassaram”, anunciando que, olhando para ele encontrarão a nascente que lava “o pecado e a impureza”.
Neste contexto, a resposta de Pedro, embora correta, porque Jesus é de facto “o Messias de Deus”, não pode ser divulgadaporque a ideia que Pedro tem de Messias não inclui a cruz e, portanto, não corresponde ao projeto de Jesus para a vinda do Reino e ele não vai abdicar. Terão que ser os discípulos a fazer o caminho de Jesus, por isso lhes diz de modo claro: “Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-Me”. Pois o Reino não está ali, onde todos julgam estar. O Reino está onde e quando se perde a vida por causa de Jesus, do mesmo modo que ele perde a vida por nossa causa.
Então, quem é Jesus? É aquele que trespassaram e que na sua morte abriu uma nascente de água viva, que sacia a sede, lava os pecados e cura as feridas.
Meditação da Palavra
Depois de identificar os discípulos com a sua missão, dando-lhes “poder e autoridade sobre todos os demónios e para curarem doenças” e depois de saciar a fome a uma multidão de “cerca de cinco mil homens” com “cinco pães e dois peixes”, Jesus questiona os discípulos sobre o que dizem dele. Começa por perguntar o que dizem as pessoas e depois pergunta claramente: “E vós, quem dizeis que Eu sou?”. Com a dupla pergunta, Jesus indica que não espera que a resposta dos discípulos seja igual à dos outros.
A resposta da multidão revela que, é mais fácil dizer que Jesus é um personagem do passado que regressou ao presente do que ir ao seu encontro para ter dele um conhecimento pessoal. A resposta dos discípulos mostra o esforço de Pedro em identificar Jesus com o Messias prometido, mas também revela que ainda não conhecem suficientemente Jesus, pois embora ele seja o Messias, não vai manifestar-se segundo os critérios esperados.
Perante a resposta, Jesus tem que calar os discípulos para não divulgarem uma ideia errada sobre a sua missão, e indicar o caminho que vai trilhar a partir dali. Efetivamente, Jesus não é nenhum dos profetas do passado, ele é aquele que eles anunciaram e que o profeta Zacarias apresenta como “aquele que trespassaram”. Jesus vem dar cumprimento a estas profecias apresentando-se como o Filho do Homem que “tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas; tem de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia”.
O Messias esperado é um chefe armado que lidera as tropas na reconquista de Jerusalém frente ao poder dominador dos romanos. Jesus é o Messias da cruz. Aquele que assume a derrota dos fracos, dos humilhados, dos despojados de dignidade, dos que não têm cidadania, dos que perderam os direitos e a liberdade. Assumindo o destino destes últimos, aceita a condenação por todos e torna-se o crucificado, trespassado pela lança dos soldados. Apresenta-se como o vencido diante dos tribunais humanos, derrotado frente aos poderes deste mundo, incapaz de mudar o rumo da história e a condição daqueles por quem oferece a sua vida. E indica aos seus discípulos o mesmo caminho como caminho para alcançar a vida, “Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-Me. Pois quem quiser salvar a sua vida, há de perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa, salvá-la-á”.
Cumpre-se em Jesus, sabemos nós de antemão, o que estava escrito pelos profetas. Aquele “a quem trespassaram” venceu a morte, abriu para todos um tempo de conversão, e fez brotar uma nascente purificadora. Do lado de Jesus, ferido pela lança (como nos lembra João), jorram água e sangue. É neste lugar que todos os que, ao olharem para Ele com a profunda dor do arrependimento – uma dor comparável à de quem chora a perda de um filho único –, podem purificar-se de seus pecados e iniquidades.
Esta nascente, o lado aberto de Jesus é o lugar de onde nasce o Batismo e a Eucaristia. Todos os que são purificados nesta nascente são tornados descendentes de Abraão pela fé. Já não são estrangeiros, nem escravos nem existe entre eles qualquer distinção porque todos são reconhecidos com a mesma dignidade e chamados filhos. É desta igualdade que fala Paulo na segunda leitura. Todos nascemos do lado aberto pela lança no corpo de Jesus. Todos vivemos da sua entrega na cruz, todos procuramos a mesma fonte para saciar a sede da alma.
Os que neste domingo participam da Eucaristia são confrontados com a urgência de olhar para o que nos identifica e não para o que nos distingue. Todos nós somos devedores daquele que foi traspassado, lavámos nossas iniquidades nas águas do mesmo Batismo e experimentamos a mesma sede de Deus. Já não há distinções entre nós, pois “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher”. Pelo batismo, nos tornamos “um só em Cristo Jesus” e somos chamados a segui-lo, assumindo a cruz de cada dia na renúncia de nós mesmos. Reunimo-nos a cada domingo no santuário para “ver o poder e a glória” de Deus e reconhecer que “a graça vale mais que a vida”.
Rezar a Palavra
Senhor, ensina-nos a olhar para o que nos une na Eucaristia, em vez de nos prender ao que nos separa. Todos somos devedores de Cristo, lavados pelo Batismo e sedentos da Tua presença. Que as distinções se desfaçam e que sejamos verdadeiramente um em Jesus, assumindo a nossa cruz diária com renúncia e amor. Que a Tua graça, que vale mais que a própria vida, nos motive a buscar o Teu poder e glória a cada domingo no santuário. Amém.
Compromisso semanal
Procuro Jesus, a nascente de água viva que jorra com abundância para saciar a sede de cada homem.