Glória de um Deus agricultor
Uma vinha plantada na encosta solarenga desperta a curiosidade dos meus olhos. Ramos sempre verdes, frutos sempre maduros, vinho novo do amor derramado, a escorrer em cascata de humana divindade. Comunhão de esforços da videira e do agricultor, que sustêm cada ramo na vontade de manter firme a confiança no futuro. Incansável missão do vento que agita as folhas com segredos em palavras segredadas que serenam o coração. Alegria que embriaga a mente de quem se deixa conquistar.
LEITURA I At 9, 26-31
Naqueles dias, Saulo chegou a Jerusalém e procurava juntar-se aos discípulos. Mas todos o temiam, por não acreditarem que fosse discípulo. Então, Barnabé tomou-o consigo, levou-o aos Apóstolos e contou-lhes como Saulo, no caminho, tinha visto o Senhor, que lhe tinha falado, e como em Damasco tinha pregado com firmeza em nome de Jesus. A partir desse dia, Saulo ficou com eles em Jerusalém e falava com firmeza no nome do Senhor. Conversava e discutia também com os helenistas, mas estes procuravam dar-lhe a morte. Ao saberem disto, os irmãos levaram-no para Cesareia e fizeram-no seguir para Tarso. Entretanto, a Igreja gozava de paz por toda a Judeia, Galileia e Samaria, edificando-se e vivendo no temor do Senhor e ia crescendo com a assistência do Espírito Santo.
Paulo, após a conversão no caminho de Damasco, dedica-se com toda firmeza a anunciar o nome de Jesus. Chegado a Jerusalém sente a dificuldade da comunidade em reconhece-lo como irmão, por saber que ele perseguiu a Igreja.
Salmo responsorial Sl 21 (22), 26b-27.28.30.31-32 (R. 26a)
O salmista, no meio da sua angústia, antevê a possibilidade de um mundo novo onde todos “os confins da terra” louvarão o Senhor e “diante dele virão prostrar-se todas as famílias das nações”, quando o Senhor atender a súplica do seu povo caído na desgraça e ameaçado por todos os lados.
LEITURA II 1Jo 3, 18-24
Meus filhos, não amemos com palavras e com a língua, mas com obras e em verdade. Deste modo saberemos que somos da verdade e tranquilizaremos o nosso coração diante de Deus; porque, se o nosso coração nos acusar, Deus é maior que o nosso coração e conhece todas as coisas. Caríssimos, se o coração não nos acusa, tenhamos confiança diante de Deus e receberemos d’Ele tudo o que Lhe pedirmos, porque cumprimos os seus mandamentos e fazemos o que Lhe é agradável. É este o seu mandamento: acreditar no nome de seu Filho, Jesus Cristo, e amar-nos uns aos outros, como Ele nos mandou. Quem observa os seus mandamentos permanece em Deus e Deus nele. E sabemos que permanece em nós pelo Espírito que nos concedeu.
Aquele que ama com obras e em verdade não perdem tempo com discussões sobre o amor nem teme as acusações do coração porque sabe que Deus é maior que as nossas imperfeições.
EVANGELHO Jo 15, 1-8
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Eu sou a verdadeira vide e meu Pai é o agricultor. Ele corta todo o ramo que está em Mim e não dá fruto e limpa todo aquele que dá fruto, para que dê ainda mais fruto. Vós já estais limpos, por causa da palavra que vos anunciei. Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós, se não permanecerdes em Mim. Eu sou a videira, vós sois os ramos. Se alguém permanece em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto, porque sem Mim nada podeis fazer. Se alguém não permanece em Mim, será lançado fora, como o ramo, e secará. Esses ramos, apanham-nos, lançam-nos ao fogo e eles ardem. Se permanecerdes em Mim e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes e ser-vos-á concedido. A glória de meu Pai é que deis muito fruto. Então vos tornareis meus discípulos».
A palavra de Jesus purifica os seus discípulos, para que permaneçam ligados a ele que é a verdadeira vide, e poderem dar frutos. Jesus é a garantia da fidelidade à nova Aliança estabelecida no seu sangue, para dar fruto abundante no mundo que não o conhece.
Reflexão da Palavra
Na sequência dos domingos de Páscoa, a leitura do livro dos Atos dos Apóstolos leva-nos até um novo momento da vida da comunidade de Jerusalém. Paulo, um fariseu formado na escola de Gamaliel, tinha saído dali com cartas para perseguir os cristãos quando se encontrou com Jesus no caminho de Damasco. Ali mesmo em Damasco, Paulo, logo após a conversão e depois de se fortalecer, “começou, imediatamente, a proclamar nas sinagogas que Jesus era o Filho de Deus”. Esta experiência abre na vida de Paulo uma sequência de tempos de pregação e tempos de fuga, porque encontra sempre oposição por parte de alguns que o querem matar. Paulo realiza a sua primeira fuga em direção a Jerusalém, ajudado pelos membros da comunidade de Damasco, a quem ele, anteriormente, perseguia.
Em Jerusalém, Paulo, sente a desconfiança da comunidade que não acredita na sua conversão. Para averiguar da sua intenção é-lhe dado como companheiro Barnabé, para que certifique as suas boas intenções. Paulo inicia, então, a pregação do nome de Jesus Filho de Deus, com a mesma firmeza com que anunciara em Damasco.
Ao verificar que a força de Paulo não lhe vem das suas convicções judaicas mas do encontro com Jesus, Barnabé intercede por ele junto dos apóstolos e marca encontro com Pedro e Tiago, preservando-se, assim, o bem da comunidade para o caso de a sua presença ser uma fraude.
Paulo, no entanto, verdadeiro convertido desde a experiência no caminho de Damasco, enche Jerusalém com o anúncio de Jesus, “conversava e discutia também com helenistas”, causando problemas para ele e para a comunidade que tinha conseguido viver em paz na cidade. Com a sua saída para Tarso, segunda fuga, a Igreja das regiões da Judeia, Galileia e Samaria crescem “com a assistência do Espírito Santo”.
O salmo 22, do qual são extraídos os versículos que se cantam nesta celebração é como um voto. Nele reúne-se a súplica no meio do desespero “meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste…” (V.1) e a promessa de uma ação de graças por ter sido escutado “anunciarei o teu nome aos meus irmãos e te louvarei no meio da assembleia” (v.23).
Mais do que uma situação pessoal trata-se de um contexto existencial do povo de Israel. O salmista vive a experiência do exílio de Babilónia após a ruína de Jerusalém às mãos de Nabucodonosor. Perante esta realidade o salmista questiona se Deus, que prometeu habitar no templo em Jerusalém, habita agora no meio do seu povo, “porque me abandonaste?”
A situação é dramática e o salmista retrata-se com expressões como “sou um verme e não um homem”, “desprezado da plebe”, escarnecido por todos, ameaçado por todos os lados. Sente-se aniquilado “fui derramado como água”, “os meus ossos se desconjuntaram”, “o meu coração tornou-se como cera e derreteu-se”, “a minha garganta secou”, “a minha língua pegou-se ao céu da boca”, está reduzido “ao pó da sepultura”, rodeado de cães e malfeitores, mãos e pés trespassados.
Recorda o que Deus é e fez no passado. Ele é “Santo” e “em ti confiaram os nossos pais”, “tu os libertaste”, “foram salvos”, “não foram confundidos”.
Nesta situação dramática, urgente e de verdadeiro perigo, Deus deve agir como outrora e salvar o seu povo, porque “pertenço-te desde o seio materno… tu és o meu Deus”, “és o meu auxílio” e também porque “não há quem me ajude”.
A situação revela uma grande urgência pois o perigo é grande. É urgente porque a sua situação é de verdadeiro perigo. Se for libertado promete uma ação de graças pública, no meio da assembleia. Irá Deus atender o salmista? Atende Deus a súplica do seu povo?
Os versículos desta celebração são tirados da última parte do salmo, que descreve o que vai acontecer quando o Senhor libertar o seu povo daquela desgraça.
A proposta que João apresenta no texto da sua primeira carta, que faz a primeira leitura deste domingo, pretende levar o leitor a compreender que a fé não é uma questão argumentativa, mas uma atitude de vida. Por isso João afirma “não amemos por palavras, nem com a boca, mas com obras”. Não ama quem fala de amor mas quem põe em prática determinadas ações, ou seja, quem vive em atitude de disponibilidade para o outro, descentrado de si e centrado no irmão. Do mesmo modo a fé é fazer o que agrada a Deus e não afirmar que ele existe, e permanecer em Deus é cumprir os mandamentos não é repetir frases feitas sobre ele. Daí o mote que antecede as palavras da leitura “se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?”. Então, a única forma de pertencer a Deus e nele permanecer é agir do mesmo modo que Deus, amando com obras e verdade.
Aquele que assim vive, não tem tempo para se concentrar nas suas imperfeições, nos seus pecados, porque toda a sua atenção está concentrada no outro e no amor que lhe é devido, nos gestos necessários ao seu bem e não em si próprio. Aquele que ama sabe que Deus é maior que os defeitos e pecados que pesam no seu coração. A verdadeira fé no Deus do amor é aquela que convida a amar, do mesmo modo que, a fé que não faz viver o outro não é a fé no Deus vivo. É este o exemplo que nos dá o próprio Jesus.
O conteúdo evangélico insere-se no contexto da última ceia de Jesus com os discípulos. Sabemos que João não apresenta a instituição da Eucaristia como fazem os outros evangelistas, por isso, a alegoria da vinha e dos ramos adquire um sentido especial. Depois de lavar os pés aos discípulos Jesus anuncia a sua partida eminente e promete o Espírito Santo. Logo após, tranquiliza os discípulos com a certeza do seu regresso. Promete por cinco vezes o Espírito Santo, antevê perseguições, recorda que o mundo não o reconhece e anuncia a vitória final.
Estamos uma vez mais diante da expressão “Eu sou” usada por Jesus no evangelho de João. Aqui, porém, aparece na relação com o Pai e com os discípulos. “Eu sou a videira”, “meu Pai é o agricultor” e “vós sois os ramos”. Desta forma, Jesus, fala da unidade e intimidade que existe entre todos. O fruto final depende da ação conjunta. Os ramos têm que estar ligado à videira e limpos, a videira tem que ter vida para poder dar vida e o agricultor corta os ramos secos e colhe os frutos. Se falha a ação de um põe-se em risco o resultado final. Quem conhece o Pai sabe que ele cuida com esmero da sua vinha. Quem conhece o filho sabe que ele é a vida e está sempre disposto a dar a vida. O resultado final só pode falhar se os ramos não estiverem ligados à vide para receberem a vida e os cuidados do agricultor.
A vinha é uma alegoria usada já desde o Antigo Testamento para falar da relação entre Deus e o seu povo. Por diversas vezes Deus manifesta o seu cuidado pela vinha sem receber a correspondência necessária para colher os frutos desejados. O salmo 80, o capítulo 5 de Isaías e os capítulos 15 e 19 de Ezequiel são alguns exemplos da falta de resposta do povo para com o Senhor, impedindo a colheita dos frutos. Jesus faz referência à mesma situação com a parábola da vinha (Mt 21,33-46), praticamente decalcada do texto de Isaías, para alertar os sumos sacerdotes e os fariseus sobre a sua atitude.
A vinha é símbolo da Aliança de Deus com o seu povo. Uma aliança na qual Deus permanece fiel enquanto o povo rompe continuadamente o seu compromisso com Deus. Jesus fala aos discípulos de uma nova aliança na qual, ‘permanecer’ é a atitude fundamental para alcançar o objetivo final “se alguém permanece em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto”. Uma Aliança que produzirá os seus frutos, cumprindo, assim, a profecia de Isaías, “Israel produzirá botões e flores, e encherá o mundo de seus frutos” (Is 27,6), profecia que se cumpre em Jesus “Eu sou a verdadeira vide”.
Meditação da Palavra
Do mesmo modo que, no domingo passado, Jesus se apresentou a si mesmo dizendo “eu sou o Bom Pastor” e com isso queria dizer que cada ovelha tem um valor inestimável, tão alto que vale mais que a sua própria vida, valor que é imposto pelo amor, hoje apresenta-se na comparação com a videira, dizendo “eu sou a verdadeira vide”.
Na tradição bíblica a vinha é usada frequentemente para falar da relação de fidelidade entre Deus e o seu povo. Trata-se de uma aliança que implica as duas partes num compromisso mútuo “eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo”. Se da parte de Deus a garantia da fidelidade é total, o mesmo não se pode dizer por parte do povo. O salmo 80, o ‘cântico da vinha’ do capítulo 5 de Isaías ou as alegorias da ‘videira estéril’ e da ‘videira arrancada’ dos capítulos 15 e 19 de Ezequiel, são um sinal desta infidelidade de Israel, povo de Deus, à Aliança.
Jesus, ao afirmar-se como “a verdadeira vide”, quer anunciar a segurança de uma nova aliança, firmada no compromisso do seu próprio sangue, que é a seiva, a vida, que circula nos ramos e garante frutos abundantes.
Os frutos revelam-se nos ramos, mas a sua origem está na videira que dá vida e no agricultor que cuida e limpa os ramos para que possam dar mais e melhores frutos. Sem a vide e sem o agricultor os ramos não podem dar frutos. Por isso, os ramos têm que estar ligados à vide e deixar-se limpar pela ação do agricultor.
A garantia dos frutos esperados está em permanecer “permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós” diz Jesus. Porque “o ramo não pode dar fruto por si mesmo”. O verdadeiro discípulo tem que estar ligado a Jesus se quer dar fruto “se alguém permanece em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto”. Do mesmo modo o ramo que não está limpo não pode dar muitos e bons frutos. A função de limpar pertence ao Pai, ele “limpa todo aquele que dá fruto, para que dê ainda mais fruto” e “corta todo o ramo que não dá fruto”. É a palavra de Jesus que limpa os ramos, como ele mesmo recorda aos discípulos, “vós já estais limpos, por causa da palavra que vos anunciei”.
Os frutos esperados são os frutos do amor que circula entre o agricultor, a vide e os ramos. O amor do Pai pelo Filho que circula naqueles que acolhem a palavra e permanecem unidos a Jesus. Os frutos do amor não são palavras, nem grandes dissertações sobre o amor, mas as boas obras que revelam a verdade desse amor. Estas obras, só as pode realizar quem está unido a Jesus e recebe dele a palavra que purifica, pois adianta Jesus “sem mim nada podeis fazer”.
Os frutos são a “tranquilidade do coração”, a “confiança diante de Deus”, o cumprimento dos mandamentos, fazer o que agrada a Deus, ter a certeza de que recebemos o que pedimos, acreditar no nome de Jesus, “amar-nos uns aos outros, como Ele nos mandou”.
Trata-se de viver como Jesus, voltado para o bem do outro e não na busca do seu próprio bem. Ele é a vide e não quer os frutos para si, mas para os ramos. Ele dá a vida, o Pai cuida, o Espírito atua pela palavra, mas os frutos são para nós, para nossa alegria e realização.
Na primeira leitura encontramos um bom exemplo de um ramo que vive unido à videira que é Jesus e permite que o Pai, como agricultor, realize o que é necessário para melhorar a sua qualidade e o Espírito atue para que os frutos sejam cada vez melhores. É Paulo, o perseguidor da Igreja que se encontrou com Jesus no caminho de Damasco. O encontro com Jesus através do testemunho de vida cristã que era dado pelos membros das comunidades a quem ele perseguia, obrigou-o a reconsiderar a sua atitude. Uniu-se a Cristo pelo Batismo, deixou-se purificar pela palavra e lançou-se no anúncio do evangelho aos seus irmãos judeus, preocupado com a sua salvação. Esqueceu-se de si, do seu bem-estar, das suas incapacidades, da sua fragilidade e, até, da sua segurança pessoal. Encontrou muitos que aderiram ao evangelho, mas encontrou também muitos que o perseguiram.
Em Jerusalém, a própria comunidade cristã desconfiou das suas boas intenções, mas ele, não anunciava o evangelho para seu próprio proveito e, por isso, não desistiu nem desanimou. Com a mesma firmeza com que antes perseguia os cristãos, agora, anuncia o evangelho a todos, judeus e gregos e arrisca a vida em nome de Jesus.
Cumpre-se nele a palavra de João na segunda leitura, o seu coração, ainda que imperfeito no amor, não o acusa porque está totalmente entregue ao bem dos outros. O seu amor por todos, também pelos que o perseguem, é mais forte do que o perigo que o ameaça e o desejo de levar o nome de Jesus ao coração de todos, dá-lhe a firmeza que necessita para continuar a anunciar as maravilhas que Deus realizou nele e que pode realizar em cada um, em todos os que, como ele, quiserem tornar-se verdadeiros discípulos.
Rezar a Palavra
De ti, Senhor, me vem a vida que pode gerar os frutos do amor. O encontro contigo naquela que é a minha estrada de Damasco, revelou o mistério de um amor maior que nasce da entrega total da vida, em benefício dos outros, de todos, e que gera frutos redobrados na partilha de quanto recebi de ti. A tua generosidade para comigo é fonte onde aprendo a generosidade de pensar sempre nos outros, sem a preocupação de sentir que o coração me pesa com as minhas imperfeições, antes com a confiança de que tu, Senhor, és sempre maior que o meu coração e o importante é que os frutos aconteçam em todos, porque todos somos ramos da mesma videira que és tu e na certeza que o Pai, o grande agricultor, limpará as imperfeições de cada um.
Compromisso semanal
Quero permanecer em ti Senhor.