Veio em meu auxílio
Trespassaram as minhas mãos e os meus pés,
posso contar todos os meus ossos.
Repartiram entre si as minhas vestes
e deitaram sortes sobre a minha túnica.
LEITURA I Is 50, 4-7
«Não desviei o meu rosto dos que Me ultrajavam,
mas sei que não ficarei desiludido»
Leitura do Livro de Isaías
O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo,
para que eu saiba dizer uma palavra de alento
aos que andam abatidos.
Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos,
para eu escutar, como escutam os discípulos.
O Senhor Deus abriu-me os ouvidos
e eu não resisti nem recuei um passo.
Apresentei as costas àqueles que me batiam
e a face aos que me arrancavam a barba;
não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam.
Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio,
e por isso não fiquei envergonhado;
tornei o meu rosto duro como pedra,
e sei que não ficarei desiludido.
O profeta alimenta-se da Palavra de Deus, escuta e aprende como um discípulo. Por isso, recebe o encargo de transmitir a outros a mesma Palavra que recebeu. Essa missão provoca inimigos que o profeta tem de enfrentar, mas encontra no Senhor auxílio para não desanimar em meio ao sofrimento.
Salmo 21 (22), 8-9.17-18a.19-20.23-24 (R. 2a)
O Salmo 21 parece o retrato da paixão de Cristo: a situação de humilhação do salmista, o ataque dos inimigos, os pés e as mãos trespassados, as vestes repartidas, identificam-no com Jesus. Do mesmo modo, a confiança permanente, sem vacilar, naquele que o pode salvar, bem expressa na oração que sai dos seus lábios – “Mas Vós, Senhor, não Vos afasteis de mim, sois a minha força, apressai-Vos a socorrer-me”. Confiante que será salvo, quer anunciar aos irmãos o poder salvador de Deus e louvá-lo no meio da assembleia.
LEITURA II Flp 2, 6-11
Cristo Jesus, que era de condição divina,
não Se valeu da sua igualdade com Deus,
mas aniquilou-Se a Si próprio.
Assumindo a condição de servo,
tornou-Se semelhante aos homens.
Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais,
obedecendo até à morte e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou
e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes,
para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem
no céu, na terra e nos abismos,
e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai.
As comunidades cristãs dos primeiros tempos cantavam o mistério de Cristo em hinos como este que Paulo apresenta na carta aos filipenses, no qual se percebe o caminho de Cristo como salvador da humanidade. Sendo Deus, ele desce ao mais profundo da humilhação humana e encarna a experiência do homem para se elevar de novo até aos céus, não reclamando a sua igualdade com Deus e sem abdicar da sua divindade.
EVANGELHO Forma longa Lc 22, 14 __ 23, 56
Paixão de nosso Senhor Jesus Cristo
N Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo
segundo são Lucas
Quando chegou a hora,
Jesus sentou-Se à mesa com os seus apóstolos
e disse-lhes:
J «Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa,
antes de padecer;
pois digo-vos que não tornarei a comê-la,
até que se realize plenamente no reino de Deus».
N Então, tomando um cálice, deu graças e disse:
J «Tomai e reparti entre vós,
pois digo-vos que não tornarei a beber do fruto da videira,
até que venha o reino de Deus».
N Depois tomou o pão e, dando graças,
partiu-o e deu-lho, dizendo:
J «Isto é o meu Corpo entregue por vós.
Fazei isto em memória de Mim».
N No fim da ceia, fez o mesmo com o cálice, dizendo:
J «Este cálice é a nova aliança no meu Sangue,
derramado por vós.
Entretanto, está comigo à mesa
a mão daquele que Me vai entregar.
O Filho do homem vai partir, como está determinado.
Mas ai daquele por quem Ele vai ser entregue!».
N Começaram então a perguntar uns aos outros
qual deles iria fazer semelhante coisa.
Levantou-se também entre eles uma questão:
qual deles se devia considerar o maior?
Disse-lhes Jesus:
J «Os reis das nações exercem domínio sobre elas,
e os que têm sobre elas autoridade são chamados benfeitores.
Vós não deveis proceder desse modo.
O maior entre vós seja como o menor,
e aquele que manda seja como quem serve.
Pois quem é o maior: o que está à mesa ou o que serve?
Não é o que está à mesa?
Ora Eu estou no meio de vós como aquele que serve.
Vós estivestes sempre comigo nas minhas provações.
E Eu preparo para vós um reino,
como meu Pai o preparou para Mim:
comereis e bebereis à minha mesa, no meu reino,
e sentar-vos-eis em tronos,
a julgar as doze tribos de Israel.
Simão, Simão, Satanás vos reclamou
para vos agitar na joeira como trigo.
Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça.
E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos».
N Pedro respondeu-Lhe:
R «Senhor, eu estou pronto a ir contigo,
até para a prisão e para a morte».
N Disse-lhe Jesus:
J «Eu te digo, Pedro: Não cantará hoje o galo,
sem que tu, por três vezes, negues conhecer-Me».
N Depois acrescentou:
J «Quando vos enviei sem bolsa nem alforge nem sandálias,
faltou-vos alguma coisa?».
N Eles responderam que não lhes faltara nada.
Disse-lhes Jesus:
J «Mas agora, quem tiver uma bolsa pegue nela,
bem como no alforge;
e quem não tiver espada venda a capa e compre uma.
Porque Eu vos digo
que se deve cumprir em Mim o que está escrito:
‘Foi contado entre os malfeitores’.
Na verdade, o que Me diz respeito está a chegar ao fim».
N Eles disseram:
R «Senhor, estão aqui duas espadas».
N Mas Jesus respondeu:
J «Basta».
N Então saiu
e foi, como de costume, para o monte das Oliveiras,
e os discípulos acompanharam-n’O.
Quando chegou ao local, disse-lhes:
J «Orai, para não entrardes em tentação».
N Depois afastou-Se deles cerca de um tiro de pedra
e, pondo-Se de joelhos, começou a orar, dizendo:
J «Pai, se quiseres, afasta de Mim este cálice.
Todavia, não se faça a minha vontade, mas a tua».
N Então apareceu-Lhe um anjo, vindo do céu, para O confortar.
Entrando em angústia, orava mais instantemente,
e o suor tornou-se-Lhe como grossas gotas de sangue,
que caíam na terra.
Depois de ter orado,
levantou-Se e foi ter com os discípulos,
que encontrou a dormir, por causa da tristeza.
Disse-lhes Jesus:
J «Porque estais a dormir?
Levantai-vos e orai, para não entrardes em tentação».
N Ainda Ele estava a falar,
quando apareceu uma multidão de gente.
O chamado Judas, um dos Doze, vinha à sua frente
e aproximou-se de Jesus, para O beijar.
Disse-lhe Jesus:
J «Judas, é com um beijo que entregas o Filho do homem?».
N Ao verem o que ia suceder,
os que estavam com Jesus perguntaram-Lhe:
R «Senhor, vamos feri-los à espada?».
N E um deles feriu o servo do sumo sacerdote,
cortando-lhe a orelha direita.
Mas Jesus interveio, dizendo:
J «Basta! Deixai-os».
N E, tocando na orelha do homem, curou-o.
Disse então Jesus aos que tinham vindo ao seu encontro,
príncipes dos sacerdotes, oficiais do templo e anciãos:
J «Vós saístes com espadas e varapaus,
como se viésseis ao encontro dum salteador.
Eu estava todos os dias convosco no templo
e não Me deitastes as mãos.
Mas esta é a vossa hora e o poder das trevas.
N Apoderaram-se então de Jesus,
levaram-n’O e introduziram-n’O em casa do sumo sacerdote.
Pedro seguia-os de longe.
Acenderam uma fogueira no meio do pátio,
sentaram-se em volta dela,
e Pedro foi sentar-se no meio deles.
Ao vê-lo sentado ao lume,
uma criada, fitando os olhos nele, disse:
R «Este homem também andava com Jesus».
N Mas Pedro negou:
R «Não O conheço, mulher».
N Pouco depois, disse outro, ao vê-lo:
R «Tu também és um deles».
N Mas Pedro disse:
R «Homem, não sou».
N Passada mais ou menos uma hora,
afirmava outro com insistência:
R «Esse homem, com certeza, também andava com Jesus,
pois até é galileu».
N Pedro respondeu:
R «Homem, não sei o que dizes».
N Nesse instante __ ainda ele falava __ um galo cantou.
O Senhor voltou-Se e fitou os olhos em Pedro.
Então Pedro lembrou-se da palavra do Senhor,
quando lhe disse:
‘Antes de o galo cantar, Me negarás três vezes’.
E, saindo para fora, chorou amargamente.
Entretanto, os homens que guardavam Jesus
troçavam d’Ele e maltratavam-n’O.
Cobrindo-Lhe o rosto, perguntavam-Lhe:
R «Adivinha, profeta: Quem Te bateu?».
N E dirigiam-Lhe muitos outros insultos.
Ao romper do dia,
reuniu-se o conselho dos anciãos do povo,
os príncipes dos sacerdotes e os escribas.
Levaram-n’O ao seu tribunal e disseram-Lhe:
R «Diz-nos se Tu és o Messias».
N Jesus respondeu-lhes:
J «Se Eu vos disser, não acreditareis
e, se fizer alguma pergunta, não respondereis.
Mas o Filho do homem sentar-Se-á doravante
à direita do poder de Deus».
N Disseram todos:
R «Tu és então o Filho de Deus?».
N Jesus respondeu-lhes:
J «Vós mesmos dizeis que Eu sou».
N Então exclamaram:
R «Que necessidade temos ainda de testemunhas?
Nós próprios o ouvimos da sua boca».
N Levantaram-se todos e levaram Jesus a Pilatos.
Começaram a acusá-l’O, dizendo:
R «Encontrámos este homem a sublevar o nosso povo,
a impedir que se pagasse o tributo a César
e dizendo ser o Messias-Rei».
N Pilatos perguntou-Lhe:
R «Tu és o Rei dos Judeus?».
N Jesus respondeu-lhe:
J «Tu o dizes».
N Pilatos disse aos príncipes dos sacerdotes e à multidão:
R «Não encontro nada de culpável neste homem».
N Mas eles insistiam:
R «Amotina o povo, ensinando por toda a Judeia,
desde a Galileia, onde começou, até aqui».
N Ao ouvir isto, Pilatos perguntou se o homem era galileu;
e, ao saber que era da jurisdição de Herodes,
enviou-O a Herodes,
que também estava nesses dias em Jerusalém.
Ao ver Jesus, Herodes ficou muito satisfeito.
Havia bastante tempo que O queria ver,
pelo que ouvia dizer d’Ele,
e esperava que fizesse algum milagre na sua presença.
Fez-Lhe muitas perguntas, mas Ele nada respondeu.
Os príncipes dos sacerdotes e os escribas que lá estavam
acusavam-n’O com insistência.
Herodes, com os seus oficiais, tratou-O com desprezo
e, por troça, mandou-O cobrir com um manto magnífico
e remeteu-O a Pilatos.
Herodes e Pilatos, que eram inimigos,
ficaram amigos nesse dia.
Pilatos convocou os príncipes dos sacerdotes,
os chefes e o povo, e disse-lhes:
R «Trouxestes este homem à minha presença
como agitador do povo.
Interroguei-O diante de vós
e não encontrei n’Ele nenhum dos crimes de que O acusais.
Herodes também não, uma vez que no-l’O mandou de novo.
Como vedes, não praticou nada que mereça a morte.
Vou, portanto, soltá-l’O, depois de O mandar castigar».
N Pilatos tinha obrigação de lhes soltar um preso
por ocasião da festa.
E todos se puseram a gritar:
R «Mata Esse e solta-nos Barrabás».
N Barrabás tinha sido metido na cadeia
por causa de uma insurreição desencadeada na cidade
e por assassínio.
De novo Pilatos lhes dirigiu a palavra,
querendo libertar Jesus.
Mas eles gritavam:
R «Crucifica-O! Crucifica-O!».
N Pilatos falou-lhes pela terceira vez:
R «Mas que mal fez este homem?
Não encontrei n’Ele nenhum motivo de morte.
Por isso vou soltá-l’O, depois de O mandar castigar».
N Mas eles continuavam a gritar,
pedindo que fosse crucificado,
e os seus clamores aumentavam de violência.
Então Pilatos decidiu fazer o que eles pediam:
soltou aquele que fora metido na cadeia
por insurreição e assassínio,
como eles reclamavam,
e entregou-lhes Jesus para o que eles queriam.
Quando O conduziam,
lançaram mão de um certo Simão de Cirene,
que vinha do campo,
e puseram-lhe a cruz às costas,
para a levar atrás de Jesus.
Seguia-O grande multidão de povo
e mulheres que batiam no peito
e se lamentavam, chorando por Ele.
Mas Jesus voltou-Se para elas e disse-lhes:
J «Filhas de Jerusalém, não choreis por Mim;
chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos;
pois dias virão em que se dirá:
‘Felizes as estéreis, os ventres que não geraram
e os peitos que não amamentaram’.
Começarão a dizer aos montes: ‘Caí sobre nós’;
e às colinas: ‘Cobri-nos’.
Porque, se tratam assim a madeira verde,
que acontecerá à seca?».
N Levavam ainda dois malfeitores
para serem executados com Jesus.
Quando chegaram ao lugar chamado Calvário,
crucificaram-n’O a Ele e aos malfeitores,
um à direita e outro à esquerda.
Jesus dizia:
J «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem».
N Depois deitaram sortes,
para repartirem entre si as vestes de Jesus.
O povo permanecia ali a observar.
Por sua vez, os chefes zombavam e diziam:
R «Salvou os outros: salve-Se a Si mesmo,
se é o Messias de Deus, o Eleito».
N Também os soldados troçavam d’Ele;
aproximando-se para Lhe oferecerem vinagre, diziam:
R «Se és o Rei dos Judeus, salva-Te a Ti mesmo».
N Por cima d’Ele havia um letreiro:
«Este é o Rei dos Judeus».
Entretanto, um dos malfeitores que tinham sido crucificados
insultava-O, dizendo:
R «Não és Tu o Messias?
Salva-Te a Ti mesmo e a nós também».
N Mas o outro, tomando a palavra, repreendeu-o:
R «Não temes a Deus,
tu que sofres o mesmo suplício?
Quanto a nós, fez-se justiça,
pois recebemos o castigo das nossas más ações.
Mas Ele nada praticou de condenável».
N E acrescentou:
R «Jesus, lembra-Te de mim,
quando vieres com a tua realeza».
N Jesus respondeu-lhe:
J «Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso».
N Era já quase meio-dia,
quando as trevas cobriram toda a terra,
até às três horas da tarde,
porque o sol se tinha eclipsado.
O véu do templo rasgou-se ao meio.
E Jesus exclamou com voz forte:
J «Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito».
N Dito isto, expirou.
Vendo o que sucedera,
o centurião deu glória a Deus, dizendo:
R «Realmente este homem era justo».
N E toda a multidão que tinha assistido àquele espetáculo,
ao ver o que se passava, regressava batendo no peito.
Todos os conhecidos de Jesus,
bem como as mulheres que O acompanhavam
desde a Galileia,
mantinham-se à distância, observando estas coisas.
Havia um homem chamado José, da cidade de Arimateia,
que era pessoa recta e justa e esperava o reino de Deus.
Era membro do Sinédrio, mas não tinha concordado
com a decisão e o proceder dos outros.
Foi ter com Pilatos e pediu-lhe o corpo de Jesus.
E, depois de o ter descido da cruz,
envolveu-o num lençol
e depositou-o num sepulcro escavado na rocha,
onde ninguém ainda tinha sido sepultado.
Era o dia da Preparação
e começavam a aparecer as luzes do sábado.
Entretanto,
as mulheres que tinham vindo com Jesus da Galileia
acompanharam José e observaram o sepulcro
e a maneira como fora depositado o corpo de Jesus.
No regresso, prepararam aromas e perfumes.
E no sábado guardaram o descanso, conforme o preceito.
Desde a solidão do Jardim das Oliveiras até à solidão da cruz, Jesus manifesta a misericórdia de um Deus que não se cansa de perdoar, deixando silêncios de reflexão, como fez com Herodes, e olhares de compaixão, como fez com Pedro, para que todos encontrem na cruz a porta aberta para o reino dos céus, tal como o bom ladrão.
Reflexão da Palavra
Longe da sua pátria, sem templo, nem vida religiosa, o povo de Israel recebe a Palavra de Deus através de Isaías. O profeta apresenta-se ao povo como modelo. Ele escutou e aprendeu a Palavra de Deus como fazem os verdadeiros discípulos. Alimentou-se da Palavra de modo que pode aceitar, até as situações mais humilhantes, as invetivas dos inimigos, sem retroceder, sem voltar as costas. Desta forma, também os israelitas em cativeiro podem encontrar na Palavra de Deus, a esperança oportuna para aguentar enquanto for necessário e sem desanimar, as dificuldades que vivem em Babilónia, porque contam com o auxílio do Senhor Deus.
O verdadeiro discípulo conta com o auxílio de Deus e mantém-se firme diante dos inimigos porque está atento à Palavra do mestre. As expressões do profeta, “desperta os meus ouvidos”, “abriu-me os ouvidos” estão unidas à ação de Deus. Aquele que fala e ensina, é o mesmo que desperta e abre os ouvidos.
Da escuta atenta nasce a confiança no auxílio daquele em cuja palavra se crê. Por isso o profeta confia no meio das dificuldades e o povo sucumbe desanimado e sem esperança. A missão dos profetas é fazer chegar a Palavra de Deus a todos, para que também o povo escute e aprenda, de modo a confiar na palavra em que acredita a fim de viver com coragem.
As palavras de Isaías que refletem a sua própria história e que devem ser encarnadas por todo o povo enquanto cativo em Babilónia, são oportunas para compreender o relato da Paixão que se escuta neste domingo e para reconhecer em Jesus aquele que confia até às últimas consequências na palavra do Pai.
O Salmo 22 é o grito de um homem em aflição. Todo o salmo faz ressaltar a angústia, não escutada por Deus. Logo no primeiro versículo aparece o grito mais profundo do ser humano, grito que Jesus repete na cruz no momento da morte: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?”.
O salmista sabe que pertence ao Senhor que o protegeu desde o seio materno: “Tu me tiraste do seio materno; puseste-me em segurança ao peito de minha mãe. Pertenço-te desde o ventre materno; desde o seio materno, tu és o meu Deus”. No entanto, o sofrimento causado pelos seus adversários, visível nas afirmações “todos os que me veem escarnecem de mim”, “não tenho sossego”, “sou um verme e não um homem”, faz o salmista cair em desalento ao ponto de gritar “porque me abandonaste?”, “Clamo por ti… e não me respondes”. É verdade que Deus salvou os seus pais, outrora, não os deixando sem resposta, mas, agora, sente-se abandonado e grita “não te afastes de mim… vem depressa socorrer-me”.
Quando parece que tudo está terminado e não há resposta por parte de Deus, eis que o salmista faz soar um grito a convidar todos os que temem o Senhor, “Louvai-o! Glorificai-o… reverenciai-o… Pois Ele não desprezou nem desdenhou a aflição do pobre, nem desviou dele a sua face; mas ouviu-o, quando lhe pediu socorro”.
Esta é a oração de Jesus na cruz, que, ao contrário do que se pode pensar ao ler o evangelho, é uma manifestação de confiança mais do que o desconsolo de se sentir abandonado pelo Pai.
Aquele que aprende a escutar como escuta um discípulo, aprende também a servir. Na carta aos filipenses, Paulo oferece um hino de louvor a Cristo que se fez servo, para que os cristãos daquela comunidade entendam a grandeza de Cristo por cima do escândalo da cruz e se compreendam a si mesmos no mesmo caminho da humildade, pois se Cristo “que era de condição divina”, assumiu “a condição de servo”, o cristão não é mais que o mestre.
Esta página da carta aos Filipenses, que alguns consideram ser um hino cristológico já usado pela comunidade cristã, é aproveitada por Paulo para lembrar a todos a condição de Cristo e a sua atitude perante a vida e perante Deus. O texto explica que aquele em quem acreditamos fez a experiência do abaixamento. Era Deus e fez-se servo, “tornou-se igual aos homens”. Na sua condição humana, não reclamou para si uma consideração superior à dos seus irmãos; pelo contrário, foi até ao limite do abaixamento: “humilhou-se ainda mais, obedecendo até à morte, e morte de cruz”. Podia ter esperado a recompensa dos homens ou ter recebido as honras prometidas pelo Diabo em troca de adoração, mas esperou somente em Deus. A resposta de Deus foi a exaltação à sua condição divina, um nome que está acima de todos os nomes, e a adoração que lhe é devida: “todos se ajoelhem no céu, na terra e nos abismos, e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor”.
A resposta de Deus à humilhação do filho, que vai até ao extremo da aniquilação, que implica o risco de ficar na morte por amor e obediência ao Pai em favor dos homens, não é uma recompensa mas uma manifestação do mesmo amor. O amor que levou Jesus a descer ao mais baixo que se pode ir, é o mesmo que lhe devolve em plenitude, a vida que ele já possuía antes, mas acrescida da humanidade redimida que lhe reconhece o título de Senhor.
Esta é a atitude contrária à dos homens. Desde Adão e percorrendo a história da salvação, encontramos o homem a querer ocupar o lugar de Deus, julgando-se superior ao que realmente é, criatura e não Criador. A história da humanidade bem vincada nas atitudes do povo de Deus, é uma história de reclamações, querendo para si o que julga merecer e rejeitando aquele que o pode elevar a dignidade de filho. Para os homens, a morte não é lugar de salvação mas de aniquilamento, por isso reagem contra essa possibilidade mesmo quando ela significa a maior manifestação do amor e a possibilidade da verdadeira vida.
O evangelho da Paixão narrado por Lucas contém alguns elementos próprios que podem ser salientados porque revelam o sentido da misericórdia tão habitual neste evangelho. Em primeiro lugar percebe-se uma atenção especial de Jesus para com Pedro, num momento tão delicado como é o da última Ceia, no sentido de o fortalecer e encorajar para enfrentar o que está para vir, mesmo que venha o fracasso. Jesus diz a Pedro “Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos”. No mesmo sentido pode ler-se o momento em que, depois da tríplice negação, Jesus se encontra com Pedro e, em vez de o censurar conforta-o com o olhar. Só no evangelho de Lucas encontramos esta referência: “O Senhor voltou-Se e fitou os olhos em Pedro”.
O encontro com Herodes, promovido por Pilatos, é uma exclusividade de Lucas. Trata-se de um encontro cheio de humilhação e desprezo para com Jesus. Lucas refere que Herodes “mandou-O cobrir com um manto magnífico”.
No seguimento da misericórdia manifestada para com todos ao longo deste evangelho, depois de terem condenado Deus, em nome de Deus, e no mesmo Deus o terem expulsado do seu templo e da sua cidade santa, depois de lhe terem dado a morte, Jesus reza: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. Dos homens vem a condenação em nome de Deus e de Deus vem sempre e só o perdão.
Este perdão acontece já na cruz quando um dos que está crucificado com Jesus reconhece que o castigo lhe foi atribuído como justiça, pelo mal praticou e reconhece que Jesus é o Senhor e que não merecia aquele castigo. Esta confissão une-o a Jesus que, gratuitamente lhe concede o paraíso: “Hoje estarás comigo no Paraíso”.
Enquanto do alto da cruz se percebe que Jesus é o Senhor, em baixo continua a tentação iniciada no deserto quando do meio da multidão diversos grupos o questionam: “Se és o Messias… se és o Filho de Deus… se és o rei dos judeus…”.
Meditação da Palavra
A liturgia do domingo de ramos convida ao silêncio. A abundância da Palavra proclamada dispensa mais palavras. No entanto, podem salientar-se algumas expressões mais fortes que sobressaem à medida que a palavra ecoa no meio da assembleia, como por exemplo:
O verdadeiro discípulo alimenta-se da Palavra a ponto de enfrentar a humilhação e a afronta sem vacilar. As suas palavras – “desperta os meus ouvidos”, “abriu-me os ouvidos” – revelam que está em sintonia com o projeto de Deus. O Mestre ensina e capacita para a escuta. Da escuta atenta depende a confiança inabalável naquele em cuja Palavra se crê, permitindo ao discípulo manter-se firme mesmo quando todos sucumbem ao desânimo.
Cristo, “que era de condição divina”, não hesitou em assumir “a condição de servo”, humilhando-se até à morte de cruz. Esta atitude de abaixamento voluntário, contrastante com a ânsia humana de ocupar o lugar de Deus, é o caminho da verdadeira grandeza.
A Paixão segundo Lucas ilumina a misericórdia, ponto central no seu evangelho. Vemos a atenção especial de Jesus para com Pedro, fortalecendo-o antes da sua negação e confortando-o com um olhar após a sua falha. O encontro humilhante com Herodes e, sobretudo, a oração de Jesus na cruz – “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” – revelam um amor incondicional que transcende a condenação humana.
Mesmo no Calvário, a misericórdia divina manifesta-se no diálogo com o bom ladrão, que reconhece a sua culpa e encontra em Jesus a porta do Paraíso, mostrando que o mesmo pode acontecer com todos os que se aproximarem da cruz. Enquanto isso, a tentação persiste nas vozes que desafiam Jesus a provar o seu poder, ecoando as provações do deserto.
Em todo o processo sente-se a força do silêncio diante o mal, dos ataques inimigos, das humilhações e do desprezo dos arrogantes.
Estas são algumas das ideias que a liturgia propõe e que podem enriquecer a meditação comunitária.
Rezar a Palavra
“Hoje mesmo”. Contigo, Senhor, nada fica para amanhã. Hoje roguei por ti, dizes a Pedro, sabendo que “hoje mesmo” ele te negará. Hoje, ainda, fixas nele os teus olhos de misericórdia. E também hoje, antes que o dia termine e desça sobre a terra a escuridão, dizes ao ladrão arrependido “estarás comigo no paraíso”. Admiro a força do teu “hoje”, admiro quantas coisas fazes num só dia e todas tão extraordinariamente grandes. Também quero estar contigo, sentir o teu olhar, deixar-me levar pela tua palavra, sentir-me forte a teu lado, hoje.
Compromisso semanal
Quero falar de Deus aos meus irmãos.