A palavra de Deus surpreende-nos sempre quando nos apresenta o modo de actuar de Deus: a justiça divina tem a sua fonte na bondade de Deus e não nos nossos méritos. E porquê? Porque Deus é Deus e o homem é homem… Os conceitos da justiça e da misericórdia não funcionam da mesma maneira quando o sujeito é Deus ou o homem… “Porque os pensamentos de Deus não são os nossos, nem os seus caminhos são os nossos caminhos. Tanto quanto o céu está acima da terra, assim os caminhos de Deus e os seus pensamentos estão acima dos nossos” (Isaías, 1ª leit).

  1. O problema da recompensa

– O contexto de Evangelho de hoje situa-nos na questão da recompensa pelo que cada um é capaz de fazer de meritório: o jovem rico, que cumpria os mandamentos, mas não estava satisfeito, aproxima-se de Jesus para saber o que é que lhe faltava fazer… Sabemos que não foi capaz de se desprender dos seus bens (Mt 19,16-25)… Logo Pedro pergunta qual será a recompensa de quem deixou tudo para seguir Jesus, como é o caso dos discípulos (Mt 19,26-30)… O texto termina a dizer que “muitos dos primeiros serão os últimos e muitos dos últimos serão os primeiros” (v.30). É este o enquadramento da parábola de hoje e que termina com as mesmas palavras.
– A parábola esclarece bem que a questão da recompensa não se baseia no modelo farisaico de premiar os méritos pessoais, mas é, sobretudo, fruto do amor gratuito de Deus… Não são as nossas obras que constituem o motivo para Deus nos amar… Se fazemos algumas coisas boas, isso é resposta ao amor que Deus tem por nós…
– Deus, na sua bondade incondicional e gratuita, dá a todos um salário justo e conforme às suas necessidades (não tinham os trabalhadores da última hora as mesmas necessidades dos outros? Não estavam eles na praça, como todos os outros, à espera de trabalho?…) A justiça de Deus passa por dar… É dom…

  1. As nossas reações

– E porque é que nós não aceitamos com facilidade este procedimento, e nos revoltamos, como os trabalhadores que foram para a vinha desde muito cedo, trabalhando mais do que os outros, e recebendo “apenas” o mesmo? – Porque pensamos o nosso relacionamento com Deus como um contrato: trabalhamos com muito empenho para nós e não para Deus… Na realidade, não somos bons porque apenas debatemos os direitos e os deveres… “Tu dás-me, então eu dou-te”… Num mundo assim, não há lugar para a bondade… Por isso é que esta sociedade de direito e secularizada, que até se assume como representante do progresso da humanidade, não permite sequer que se fale ou pratique a caridade… Depois, dá no que está a dar: tínhamos tudo garantido e estamos a ficar sem nada… (e já não há lugar para “a gente boa!…”)
– O amor, o perdão ao inimigo, o dar ao necessitado mais do que pede ou daquilo a que tem direito, o reconciliar-se com o irmão antes de apresentar a oferta no altar,… Todas estas coisas levam muita gente a dizer “que não pode ser bem assim!…” E o problema é que continuamos a rezar o Pai-Nosso com a mesma tranquilidade de sempre: “perdoa-nos como nós perdoamos”…
– Quer dizer que há muito caminho a fazer por todos… Ainda não conhecemos este Deus que se põe no nosso caminho, que passa pelo nosso coração, conhece o nosso sofrimento e a nossa debilidade e usa de misericórdia para com todos (não é só com alguns!)…

  1. Deixar que Deus seja Deus

– Quem poderá ter a ousadia de reprovar Deus por Ele ser bom?… Que direito temos nós de questionar o procedimento de Deus se Ele é só bondade? E quem é capaz de seguir os seus passos?…
– Para quem acredita em Jesus como S. Paulo (2ª leit) dispõe-se a tudo: a viver ou a morrer contanto que Jesus seja glorificado. E este desejo de estar com Cristo até o leva a dizer que, “para ele, viver é Cristo e morrer é lucro”. Logo: para compreender alguma coisa da misericórdia divina, é preciso fazer um esforço de acreditar como S. Paulo para quem, viver só tem sentido quando se anuncia o Evangelho; e, vale a pena morrer, para estar para sempre com Cristo.
– Enquanto não admitirmos que a distância que nos separa de Deus é a que vai do nosso egoísmo ao amor total e incondicional, ficaremos sempre chocados com o procedimento de dar aos trabalhadores da última hora o mesmo que recebem os que trabalharam durante todo o dia e suportaram o peso do calor … Experimentamos o mesmo desconcerto com o pai da “parábola do filho pródigo” que faz a festa com o filho que o abandonou e desbaratou os seus bens (Lc 15)… Porque é que nós não apreciamos o facto de estar em casa com Ele e Ele ser bom para com todos?…