Perdidos por amor

O caminho faz-se longo. O monte, lá longe, parece cada vez mais distante. Os companheiros parecem alheados do pó da estrada, dos pés descalços, do sol abrasador, da luz intensa. O silêncio está cheio de barulho. A multidão agitada grita dentro de nós. São os gritos do amanhã soando a dor. É a voz da iniquidade anunciando sentenças de morte.

Quem sou eu para ti?

O sol gira no firmamento, do céu caem estrelas fumegantes, a noite toma conta da luz, as trevas inundam o horizonte, ouve-se uma voz vinda do céu… “Este é o meu filho muito amado… escutai-o”.

LEITURA I Is 50, 5-9ª

O Senhor Deus abriu-me os ouvidos e eu não resisti nem recuei um passo. Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam. Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio e por isso não fiquei envergonhado; tornei o meu rosto duro como pedra e sei que não ficarei desiludido. O meu advogado está perto de mim. Pretende alguém instaurar-me um processo? Compareçamos juntos. Quem é o meu adversário? Que se apresente! O Senhor Deus vem em meu auxílio. Quem ousará condenar-me?

Nas palavras de Isaías, a Igreja, desde a experiência das primeiras comunidades, viu na figura do servo o próprio Jesus e nos sinais de sofrimento a sua paixão. Jesus, a quem os homens condenaram injustamente foi declarado inocente por Deus, seu Pai, que veio em seu auxílio devolvendo-o à vida pela ressurreição.

Salmo 114 (116), 1-2.3-4.5-6.8-9 (R. 9)

Estamos perante um salmo de ação de graças que, na sua primeira parte, apresenta os motivos pelos quais o autor quer agradecer ao Senhor. A vida do autor tem sido uma experiência de amor a Deus apesar dos “laços da morte” e das “angústias do além” que se abateram sobre ele. Ele mesmo diz “Amo o Senhor” e explica porquê. Porque o Senhor “ouviu a voz da minha súplica”, “Ele me atendeu”, “Livrou da morte a minha alma, das lágrimas os meus olhos, da queda os meus pés”.

LEITURA II Tg 2, 14-18

Irmãos: De que serve a alguém dizer que tem fé, se não tem obras? Poderá essa fé obter-lhe a salvação? Se um irmão ou uma irmã não tiverem que vestir e lhes faltar o alimento de cada dia, e um de vós lhes disser: «Ide em paz. Aquecei-vos bem e saciai-vos», sem lhes dar o necessário para o corpo, de que lhes servem as vossas palavras? Assim também a fé sem obras está completamente morta. Mas dirá alguém: «Tu tens a fé e eu tenho as obras». Mostra-me a tua fé sem obras, que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé.

A discussão sobre o que é mais importante, a fé ou as obras, é muito antiga. Tiago, ao afirmar que a fé sem obras é morta não quer dizer que as obras são mais importantes que a fé, mas simplesmente que as obras confirmam a fé, são uma consequência da fé e dão credibilidade à fé.

EVANGELHO Mc 8, 27-35

Naquele tempo, Jesus partiu com os seus discípulos para as povoações de Cesareia de Filipe. No caminho, fez-lhes esta pergunta: «Quem dizem os homens que Eu sou?». Eles responderam: «Uns dizem João Batista; outros, Elias; e outros, um dos profetas». Jesus então perguntou-lhes: «E vós, quem dizeis que Eu sou?». Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias». Ordenou-lhes então severamente que não falassem d’Ele a ninguém. Depois, começou a ensinar-lhes que o Filho do homem tinha de sofrer muito, de ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas; de ser morto e ressuscitar três dias depois. E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas. Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l’O. Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos, repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás, porque não compreendes as coisas de Deus, mas só as dos homens». E, chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes: «Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me. Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho, salvá-la-á».

Aos discípulos, que viram Jesus fazer várias curas, entre elas a do surdo-mudo, do cego e a multiplicação dos pães, Jesus faz uma pergunta: “Quem dizeis vós que eu sou?” Será que os discípulos já perceberam quem é Jesus ou apenas ficam maravilhados com os seus milagres como as multidões?

Reflexão da Palavra

No início do terceiro cântico do Servo, Isaías coloca na boca de um personagem do qual apenas sabemos que no capítulo anterior foi alvo de um chamamento “quando ainda estava no ventre materno, o Senhor chamou-me” (Is 49, 1). Este servo não se diz profeta mas tem uma missão profética “o Senhor ensinou-medesperta os meus ouvidos”, “abriu-me os ouvidos” para ele “dar uma palavra de alento aos desanimados” (Is 50, 4).

Em consequência da sua missão, o servo, é alvo de violência por parte dos que resistem à sua palavra, “batiam… arrancavam a barba…ultrajavam e cuspiam”. Como um verdadeiro profeta, o “servo” mantem-se firme na verdade anunciada e na confiança naquele que o ensinou, “não resisti nem recuei um passo”, “apresentei as costas… e a face”, “não desviei o rosto”. Em resposta a esta atitude de confiança e fidelidade, “o Senhor Deus veio em meu auxílio”. Perante a manifestação de Deus, o servo afirma, “não fiquei envergonhado”, “não ficarei desiludido” e os inimigos não ousam levantar-se contra ele, “Quem é o meu adversário?… Quem ousará condenar-me?”.

Os cristãos viram desde sempre, na figura do Servo sofredor, o próprio Cristo no mistério da sua paixão e morte. A figura do servo é essencial para responder à pergunta que Jesus vai fazer aos discípulos no evangelho.

Hino de ação de graças, o salmo 114 está construído em quatro partes, uma introdução (v. 1-2), indicação da situação existencial do salmista e da libertação operada pelo Senhor (v. 3-9), confissão da confiança no Senhor, apesar da situação de desgraça do salmista (v. 10-11) e a promessa de uma ação de graças (v. 12-19).

O salmista parte de uma confissão de amor “amo o Senhor”, depois descreve a situação de angústia em que se encontrava,ao mesmo tempo que anuncia a salvação que Deus operou na sua vida. Ele caiu nas malhas da morte “apertaram-me os laços da morte, caíram sobre mim as angústias do além, vi-me na aflição e na dor”. Nesta situação o salmista diz “invoquei o Senhor: «Senhor, salvai a minha alma»” e o Senhor “ouviu a voz da minha súplica. Ele me atendeu, no dia em que O invoquei”. Perante este auxílio do Senhor, o salmista questiona-se sobre a melhor maneira de agradecer ao Senhor “como agradecerei ao Senhor todos os seus benefícios para comigo?”, pois reconhece que Deus é “Justo e compassivo”, misericordiosoguarda os simplessalva os que se encontram sem forças, livra da morte, enxuga as lágrimas, não deixa que resvalem os pés. O salmista reconhece, ainda que “a morte dos fiéis” “é preciosa aos olhos do Senhor”. Então, o salmista compromete-se “andarei na presença do Senhor” e “elevarei o cálice da salvação invocando o nome do Senhor”, “cumprirei as minhas promessas”, oferecerei “sacrifícios de louvor.

A velha questão discutida entre católicos e protestantes quando se questionam sobre quem se salva, os que têm fé ou os que praticam boas obras, nascida a partir das afirmações de Paulo na carta aos romanos, não é o tema de Tiago nesta carta. Paulo afirma que “é pela fé que o homem é justificado,independentemente das obras da lei” (Rm 3,28). Com isto, Paulo, quer dizer que é em Cristo que nos salvamos, gratuitamente, e não por termos praticados estas ou aquelas obras. No entanto, Paulo não quer dizer que as obras não são importantes, pelo contrário, devem decorrer do amor que a fé supõe e implica. Ora, é esta a questão de Tiago. Para o autor da carta, como já escutámos no domingo passado, a fé é importante, mas a fé em Cristo não admite determinadas atitudes, como a distinção de pessoas. Neste parágrafo, Tiago acrescenta que não basta ter fé, é necessário que essa fé não seja estéril, inconsequente, mas capaz de produzir obras de verdadeiro amor. A fé, se é verdadeira, desperta na pessoa um compromisso de amor, uma responsabilidade fraterna, uma consequência ao nível social. Por isso, Tiago diz que, “a fé sem obras está completamente morta”, é inconsequente, irresponsável, egoísta e desprovida de compromisso. Tiago não quer, em momento nenhum, afirmar que não é necessária a fé ou que as obras são mais importantes que a fé, nem Paulo quer dizer o contrário. Ambos afirmam que as obras, alimentadas pela fé, ganham uma nova dimensão assim como a fé acompanhada pelas obras torna-se credível.

Marcos situa-nos no caminho para Cesareia de Filipe, uma das fronteiras com o mundo pagão. Jesus dá início à sua subida a Jerusalém, onde sabemos que vai acontecer a sua paixão e morte, ou seja, o final do seu caminho entre os homens. A partir daqui, Jesus orienta os discípulos para o que vai acontecer em Jerusalém. Também os discípulos têm que fazer um caminho, interior, para acolher a verdade de Jesus como Messias, não segundo os critérios humanos mas segundo os critérios divinos.

A pergunta de Jesus aos discípulos faz parte do processo de ensino/aprendizagem que ele vai realizar ao longo do caminho para Jerusalém. Primeiro pergunta no geral “Quem dizem os homens que Eu sou?”, para depois centrar em cada um dos discípulos a mesma questão, porque é neles que Jesus quer solidificar a fé para que não vacilem quando chegar a paixão, “e vós, quem dizeis que Eu sou?”. É a resposta a esta última pergunta que verdadeiramente interessa a Jesus. E Pedro é quem se atreve a responder por todos “Tu és o Messias”. Sendo uma resposta correta na forma, ela contém em si a confusão própria do tempo de Jesus. Nem todos veem o “Messias” da mesma maneira e Jesus não é o Messias que muitos esperam porque o seu projeto de vida é bem diferente, como se pode ver logo a seguir. É por isso que Jesus proíbe os discípulos de dizerem quem ele é. 

Para que os discípulos entendam de uma vez o que significa para ele ser o Messias, Jesus começa a ensinar, “o Filho do homem tem de sofrer muito, de ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas; de ser morto e ressuscitar três dias depois”. Estas afirmações são contrárias à mentalidade geral. O Messias tem poder e não pode ser morto. É por isso que Pedro reage, julgando estar certo,“tomou-O à parte e começou a contestá-l’O”. Jesus ensina e Pedro contesta. Na verdade, os discípulos não estão preparados para aceitar um Messias tão frágil como é apresentado pelas palavras de Jesus. De facto, este é apenas o início de um ensino que vai acompanhar todo o caminho para Jerusalém, do qual, a última lição é mesmo a paixão. Em resposta, Jesus repreende Pedro por ele querer colocar-se à sua frente como se fosse mestre e não atrás dele, lugar dos discípulos que querem ser ensinados. De facto, com a sua mentalidade, Pedro está na posição dos que se opõem a Jesus e não do lado dos que o seguem, “não compreendes as coisas de Deus, mas só as dos homens”.

Finalmente, Jesus abre o ensino a toda a multidão, para apresentar as condições para ser seu discípulo, que são, “renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me” e “perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho”.

Meditação da Palavra

Com uma pergunta Jesus ensina o caminho da verdadeira vida. Na realidade, diante de Jesus é sempre possível tecer muitas considerações, levantar suspeitas, adiantar acusações condenatórias, fazer afirmações espirituais e teológicas muito profundas ou viver experiências místicas elevadas. Mas o caminho da vida é o caminho da cruz que começa na saída da Galileia, atravessando a Cesareia de Filipe, região marcadamente influenciada pelos romanos, até Jerusalém, com destino à paixão.

Seguir Jesus como discípulo exige distanciar-se de tudo o que os outros dizem sobre ele e fazer uma experiência pessoal que leva à afirmação inequívoca de que ele é “o Messias”, conscientes de que a cruz, a paixão e a morte, fazem parte do conteúdo da missão messiânica. É para esta experiência pessoal que nos orienta a pergunta de Jesus. Mais do que querer saber o que pensam os discípulos sobre ele, Jesus quer saber como se situam os discípulos diante dele. Ou seja, a pergunta é esta “quem és tu na relação comigo? Quem és tu quando te confrontas com a minha decisão de subir a Jerusalém e à cruz?

Jesus não tece nenhum comentário à resposta dos discípulos sobre o que as pessoas dizem dele, mas o comentário à resposta de Pedro é muito significativa. Jesus manda que fiquem em silêncio porque sabe que ainda não coincidem as palavras “tu és o Messias” com a sua identidade. Os discípulos hão de ficar em silêncio até que neles se consolide a verdade, de modo que, ao dizerem “Tu és o Messias” entendam que “tu és aquele que dá a vida na cruz e nos chamas a seguir-te, abraçados à nossa cruz de cada dia”.

Apesar de dar uma resposta correta em nome de todos, Pedro não tem dentro de si a disposição para aceitar que Jesus seja um Messias que dá a vida. Não aceitando isto, não aceita Jesus nem o projeto salvífico de Deus para a humanidade. Já sabemos que Jesus não renuncia a fazer a vontade do Pai e não vai voltar atrás na sua decisão de dar a vida. Então, é Pedro quem tem que mudar a sua visão sobre Jesus e a sua missão, e vai fazê-lo da pior maneira, ouvindo uma grande reprimenda de Jesus como resposta ao seu atrevimento de julgar que Jesus não está a tomar a decisão certa, ao querer subir a Jerusalém, “Vai-te, Satanás, porque não compreendes as coisas de Deus, mas só as dos homens”.

De facto, Pedro, adianta-se a Jesus como se fosse ele o mestre e contesta a sua decisão. Ora o mestre é Jesus e os discípulos vão atrás e não à frente do mestre, ou seja, os discípulos escutam o mestre, aprendem dele e não o contrário. É essa a experiência de Jesus, como enfatiza Isaías na primeira leitura, “o Senhor Deus abriu-me os ouvidos”, agora é a vez dos discípulos deixarem Jesus, o mestre, abrir-lhes os ouvidos, a mente e o coração para agirem do mesmo modo “eu não resisti nem recuei um passo” no caminho que conduz à vida. 

Aprender a caminhar até à vida implica um novo conceito, bem diferente do que paira na cabeça de todos os homens. Para Deus ganhar é perder e perder é ganhar. Por isso, os discípulos devem aprender com Jesus que, “quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho, salvá-la-á”.

Para Jesus há uma causa maior que a vida. Ele e o evangelho são uma causa maior pela qual vale a pena dar a vida, isto é, a vida enquanto realidade terrena, ganha sentido se é gasta por uma causa justa. Ora, Jesus e o evangelho são a causa mais justa pela qual a vida deve ser dada, deve perder-se. 

Que significa dar a vida por Jesus e pelo evangelho? Significa perder-se no amor que é o fruto da fé. Aquele que crê em Jesus encontra um caminho novo, o caminho de Jerusalém que leva à cruz. Quem entra neste caminho não mede consequência, simplesmente, perde-se no amor e dá a vida. Isso mesmo diz Tiago na carta que surge como segunda leitura. Ter fé em Jesus e não se perder no amor, ao ponto de dar a vida, é ter uma ideia sobre Jesus mas não fazer a experiência do encontro com ele, nem segui-lo pelo caminho da cruz. Aquele que se encontra com Cristo e entra no caminho da cruz não pergunta pela fé, pergunta pelo amor.

De nada serve dizer que se tem fé se, esta, não conduz àexperiência incondicional do amor. Daí que, falar de Jesus aos outros, mas não cuidar para que todos tenham o mínimo de condições para viver com dignidade, não faz sentido e é sinal de que a fé é vazia e morta. As obras só por si não salvam e pedem a fé, a fé só por si também não salva exige as obras. Quem nos salva é o Senhor mediante o gesto gratuito de Cristo que, na paixão, morte e ressurreição, deu a vida por nós. Por isso, o discípulo é aquele que, vendo o mestre dar a vida por amor, o segue, imitando-o, dando ele também a vida no mesmo amor.  

Rezar a Palavra

Amo o Senhor. 

Hoje, quero dizer como o salmista “Amo o Senhor” e fazer neste amor a experiência de dar a vida como Jesus. Quero dar a vida na Cesareia do mundo, na Galileia dos homens, na Jerusalém da dor, na cruz da humanidade. Quero ser discípulo que se perde por amor e se abraça na cruz de todos os dias. Quero viver no coração dos que não encontram razões para escutar nem para falar. Quero viver no coração dos que não sabem perguntar e não sabem responder. Quero viver perdido no amor seguindo os passos de Jesus.

Compromisso semanal

Diante de Jesus eu sou aquele que pega na cruz todos os dias e, perdido no amor, realizo obras para a dignidade dos irmãos.