No Evangelho, quando Jesus se encontra com os doentes, quer estes se dirijam a Ele, quer sejam trazidos por outros, logo Jesus se aproxima e toca a pessoa doente. Uma das grandes dificuldades causada pela pandemia foi impedir que as pessoas se tocassem. Assim, a própria forma das pessoas se saudarem sofreu alterações e o toque físico, tão significativo na nossa cultura e na nossa celebração dos sacramentos, deixou de se poder realizar. A imposição das mãos, as unções, os cumprimentos e tantos outros gestos tiveram que ser adaptados e, com isto, também diminuiu a carga simbólica e a força dos sinais na Liturgia.
Jesus cura o surdo-mudo impondo as mãos sobre ele, metendo os dedos nos ouvidos e tocando a língua com saliva ao mesmo tempo que implora a abertura dos ouvidos e o desprendimento da língua. Parece um gesto mágico mas, corresponde ao cumprimento daquela promessa de Isaías: abrir-se-ão os olhos dos cegos e os ouvidos dos surdos, o coxo saltará e a língua do mudo cantará de alegria.

  1. Somos todos “surdos-mudos”

– No nosso relacionamento social é frequente contactarmos com pessoas que dizem que não se recordam de ter ouvido ou visto, ou que, se foi dito, não prestaram atenção e esqueceram…
– Muita gente também não se dá conta do que se vai passando à sua volta nem, por vezes, na sua própria casa, na família, no bairro ou na cidade, no país ou no mundo… Dá a impressão que há mais surdos-mudos do que aqueles que pensávamos…
– Se nos fixarmos nas comunidades cristãs, também há muita gente que escuta pouco o Evangelho, os textos da Bíblia e, quando se trata de os explicar, ainda revela menos capacidade e atenção…
– Vivemos num mundo de contrastes: temos mais edifícios e mais casas mas, menos habitação para as famílias (veja-se o que é dito em campanhas eleitorais autárquicas!); mais dinheiro para gastar e cada vez menos nos bolsos; muitas coisas, e desfrutamos cada vez menos delas; mais formação e menos educação e conhecimento crítico; mais assistência médica e menos bem-estar; mais meios de comunicação e menos conhecimento pessoal… Comunicamos com quem está longe e não conhecemos quem está perto…
– As pessoas estão cada vez mais sós… Temos uma necessidade compulsiva de estar conectados porque temos medo da pausa, do silêncio, precisamos de encher o nosso tempo com qualquer coisa, permanecendo sós… Há quem diga que vivemos no meio de “uma multidão solitária”…

  1. “Effathá”, Abre-te!

– Tudo isto nos leva a perceber porque é que o Evangelho de hoje dá importância aos pormenores da cura do surdo-mudo, daquele que vive fechado no seu mundo e precisa de se libertar, de se relacionar e descobrir os outros… Há muitos surdos e mudos entre nós… Até queremos falar e dialogar, mas estamos pouco dispostos a escutar abrindo-nos aos outros… Só nos escutamos a nós mesmos…
– O surdo do Evangelho que fala com dificuldade é um belo paradigma, uma representação silenciosa e eloquente do homem de hoje: vive rodeado de muita gente, mas está fechado no seu mundo e é incapaz de superar o isolamento…
– É por isso que a palavra de Jesus é esta: “Abre-te”… Quer dizer: ouve, comunica, fala com os outros, vence as barreiras que te separam dos outros…

  1. Tudo o que faz é admirável

– A cultura do nosso tempo não favorece a escuta e, se não se escuta, não há encontro com Deus… As pessoas vivem cada vez mais centradas nelas próprias… Deus é posto de lado porque já nem sequer temos a capacidade de nos maravilhar com nada… Achamos tudo tão natural que já nem damos espaço ao encanto e ao desassombro… O individualismo fecha-nos ao diálogo com o outro e com tudo o que nos rodeia…
– Aquela gente do Evangelho “ficou maravilhada porque Jesus faz tudo bem feito”…
– À nossa volta, as frequências estão de tal forma saturadas e sobrepostas que já não há espaço para a comunicação de Deus… E, curiosamente, Deus até fala mais no silêncio do que no barulho…
– Não parece que sejam as modernas tecnologias a facilitar o nosso encontro com Deus!… Ele fala mais no silêncio e na forma como nos relacionamos com os outros… Até dizemos e repetimos tantas vezes “onde há caridade aí está Deus”…
– Ninguém poderá dizer que tem fé se não descobrir o que Deus faz na sua vida e o que pode e deve fazer com os outros; só esta descoberta é que pode gerar uma comunicação autêntica e verdadeira porque o reconhecimento da obra de Deus conduz necessariamente ao encontro com os outros…