Por dentro e não por fora

Vai devagar e vê. Vai vendo devagar, mais precisamente. Assim chegarás à medida certa de todas as coisas, de todas as pessoas, de todos os acontecimentos… Vai vendo devagar como quem bebe da luz que não se apaga, da fonte que não para de correr, do mel que não se esgota nos favos. Vai vendo devagar como quem procura em cada passo os segredos nunca revelados da verdade que se esconde no coração que te guia. Vai vendo devagar, mais fundo, mais dentro do coração.   

LEITURA I           Dt 4, 1-2.6-8

Moisés falou ao povo, dizendo: «Agora escuta, Israel, as leis e os preceitos que vos dou a conhecer e ponde-os em prática, para que vivais e entreis na posse da terra que vos dá o Senhor, Deus de vossos pais. Não acrescentareis nada ao que vos ordeno, nem suprimireis coisa alguma, mas guardareis os mandamentos do Senhor vosso Deus, tal como eu vo-los prescrevo. Observai-os e ponde-os em prática: eles serão a vossa sabedoria e a vossa prudência aos olhos dos povos,  que, ao ouvirem falar de todas estas leis, dirão: ‘Que povo tão sábio e tão prudente é esta grande nação!’. Qual é, na verdade, a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto de nós o Senhor, nosso Deus, sempre que O invocamos? E qual é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como esta lei que hoje vos apresento?».

A lei do Senhor é para escutar, hoje, agora, sem perder tampo, porque vindo de Deus está cheia de sabedoria e possui tudo o que é necessário para entrar na terra prometida. Nada nesta lei pode ser alterado, nem acrescentado nem retirado, porque se trata da lei do Senhor.

Salmo Responsorial     Sl 14 (15), 2-3a.3cd-4ab.5 (R. 1a)

Este hino de peregrinação, que é o salmo 14, questiona sobre a dignidade com que nos apresentamos diante de Deus. Seremos dignos de entrar na sua casa e de nos sentarmos à sua mesa? O salmo diz que é necessário ter um coração puro para nos apresentarmos diante de Deus.

LEITURA II         Tg 1, 17-18.21b-22.27

Caríssimos irmãos: Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto, descem do Pai das luzes, no qual não há variação nem sombra de mudança. Foi Ele que nos gerou pela palavra da verdade, para sermos como primícias das suas criaturas. Acolhei docilmente a palavra em vós plantada, que pode salvar as vossas almas. Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes, pois seria enganar-vos a vós mesmos. A religião pura e sem mancha, aos olhos de Deus, nosso Pai, consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo.

A palavra de Deus é para pôr em prática e não apenas para escutar. A prática da palavra leva ao encontro dos irmãos mais frágeis e em situação mais carenciada. É o amor aos outros que manifesta a grandeza de coração daquele que escuta Deus.

EVANGELHO    Mc 7, 1-8.14-15.21-23

Naquele tempo, reuniu-se à volta de Jesus um grupo de fariseus e alguns escribas  que tinham vindo de Jerusalém. Viram que alguns dos discípulos de Jesus comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar. – Na verdade, os fariseus e os judeus em geral não comem sem ter lavado cuidadosamente as mãos, conforme a tradição dos antigos. Ao voltarem da praça pública, não comem sem antes se terem lavado. E seguem muitos outros costumes  a que se prenderam por tradição, como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre –. Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus: «Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos, e comem sem lavar as mãos?». Jesus respondeu-lhes: «Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim. É vão o culto que Me prestam, e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’. Vós deixais de lado o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens». Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão e começou a dizer-lhe: «Escutai-Me e procurai compreender. Não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro. O que sai do homem é que o torna impuro; porque do interior do homem é que saem as más intenções: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem do interior do homem, e são eles que o tornam impuro».

Na experiência da fé não caminham todos ao mesmo ritmo, mas todos são chamados a viver a relação com Deus a partir da verdade do seu coração. Rejeitar os outros, considerando-os impuros, não é o caminho para o encontro com Deus.

Reflexão da Palavra

O livro do Deuteronómio, antes de apresentar a lei, apresenta dois discursos sobre a lei. O texto da primeira leitura faz parte do primeiro discurso e compreende cinco versículo, não seguidos. O texto está encerrado entre o “agora” e o “hoje”. Moisés dirige-se ao povo e diz “agora escuta” e termina dizendo “esta lei que hoje vos prescrevo”. É o hoje eterno de Deus que atravessa a história dos homens, “o domingo que não tem ocaso”, que é como mil anos e “mil anos diante de ti, são como o dia de ontem, que passou” (Sl 90,4). E o tempo dos homens que para todos é “agora”, é o momento presente, a oportunidade de decisão que se apresenta diante de cada um “para que vivais e entreis na posse da terra que vos dá o Senhor”.

A proposta é a de escutar e pôr em prática “os mandamentos do Senhor vosso Deus, tal como eu vo-los prescrevo”, sem acrescentar nem suprimir nada, porque a lei manifesta o próprio ser de Deus, um Deus próximo que “está perto de nós” e faz daqueles que cumprem a sua lei um povo sábio e prudente, porque se trata de “mandamentos e decretos justos”.

Com estes mandamentos Deus quer a liberdade do povo e não a atitude do escravo que só faz o que lhe é imposto. O Senhor quer homens inteligentes, livres, sábios, prudentes e justos. Homens que encontram na lei um caminho segundo o coração de Deus que é inteligente, livre, sábio, prudente e justo. Mesmo que seja difícil permanecer fiel à lei, todo o esforço vale a pena porque não há outro povo “tão sábio e tão prudente como é esta grande nação” nem outro povo que tenha “a divindade tão perto de si como está perto de nós o Senhor” e também não há outro povo que tenha “mandamentos e decretos tão justos”.

Os salmos, como já fomos percebendo, têm como finalidade enriquecer a liturgia e alimentar a confiança dos peregrinos ao longo do caminho. Muitas vezes eram cantados como acontece nas nossas celebrações. O salmo 14 é um salmo litúrgico, composto em três partes: no início levanta uma pergunta, depois dá a resposta e no final tira uma conclusão. A pergunta não aparece no texto litúrgico deste domingo, mas ela é importante para compreendermos o contexto. Estão em causa as condições necessárias àquele que quer entrar na casa do Senhor, no seu templo, para estar de consciência tranquila e em paz com Deus. O peregrino ou o crente que em cada sábado sobe ao templo para rezar, questiona-se “quem poderá, Senhor, habitar no teu santuário?”, que é como quem pergunta “sou eu digno de entrar neste lugar sagrado?”.

A pergunta tem sentido na medida em que se trata da casa do Senhor e eu sou hóspede na sua casa e não me posso apresentar de qualquer maneira. Recordemos a parábola do grande banquete que nos narra Mateus no evangelho. O rei ao entrar “viu um homem que não trazia o traje nupcial- E disse-lhe: ‘Amigo, como entraste aqui sem traje nupcial?” (Mt 22, 11-12).

Que condições são necessárias para entrar e habitar na casa do Senhor? O salmista responde com uma série de requisitos do coração, “uma vida sem mancha”, “pratica a justiça”, “diz a verdade que tem no coração”, “não levanta calúnias”, “não faz mal ao próximo”, “não prejudica ninguém”, “despreza o que é desprezível”, “estima o que teme o Senhor”, “não falta ao juramento”, “não empresta dinheiro com usura” e “não se deixa subornar”. A conclusão é simples: “Quem assim proceder jamais será abalado”.

Iniciamos neste domingo a leitura da carta de Tiago que se prolongará por mais três domingos. Tiago, o autor da carta, como ele próprio se apresenta “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo”, segundo os especialistas não se trata de nenhum dos dois apóstolos de Jesus, nem de Tiago conhecido como o irmão do Senhor, será, portanto, um outro Tiago, cristão de origem judaica, que escreve para “as doze tribos da dispersão”, cristãos dispersos por causa das perseguições.

Tiago começa por recordar que tudo o que é perfeito desce do céu e vem de Deus, “toda a boa dádiva e todo o dom perfeito”. O dom mais excelente que Deus nos concedeu foi o seu próprio filho “a palavra da verdade” na qual fomos gerados. Ainda ressoam nos nossos ouvidos as palavras de Jesus no capítulo 6 de João que escutámos nos últimos domingos: “eu sou o pão vivo que desceu do céu”, como aliás Jesus diz várias vezes no evangelho de João “desci do céu não para fazer a minha vontade”, “vós sois cá de baixo; eu sou lá de cima”. Este descer é dádiva do “Pai das luzes” para “sermos como primícias das suas criaturas”.

A palavra “em vós plantada”, que é o próprio Jesus, evangelho do Pai, tem o poder de salvar aqueles que a acolhem docilmente. Por isso Tiago chama a atenção dos destinatários da sua carta para que não se enganem a si mesmo ouvindo a palavra sem a pôr em prática, “sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes”. E pôr em prática a palavra é “visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo”.

Depois de termos ouvido Moisés a dizer ao povo “não acrescentareis nada ao que vos ordeno, nem suprimireis coisa alguma”, deparamo-nos no evangelho com os fariseus e os escribas preocupados com “a tradição dos antigos” e com “muitos outros costumes a que se prenderam por tradição”. São exigências que não estão na lei, mas lhe são acrescentadas com o intuito de a pôr em prática escrupulosamente. A crítica de Jesus é acutilante. Depois de lhes chamar “hipócritas” ainda diz “vós deixais de lado o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens”. Parece que a posição destes grupos é irreconciliável com a posição de Jesus, daí a dificuldade de alguns deles se tornarem seus discípulos. Se pensarmos que as comunidades cristãs eram compostas por judeus de várias proveniências, imaginamos as lutas internas entre os que pretendiam o cumprimento escrupuloso da lei judaica e os que, judeus ou não, queriam seguir um caminho novo iniciado por Jesus.

Tudo começa porque “alguns dos discípulos” comiam pão, sem antes terem cumprido o ritual da lavagem das mãos para se purificarem do contacto com pagãos, estrangeiros e outros considerados impuros, com quem se cruzaram na praça pública.

Jesus desmascara, assim, a distinção feita pelos fariseus entre pureza e impureza, aplicada a pessoas e coisas, distinção que eles fazem tendo em conta as práticas exteriores. Jesus insiste no fundamento da verdadeira pureza que é a intenção do coração. Cada homem pode viver a partir do exterior, do que é visível aos olhos de todos, ou do interior, do coração, que só Deus vê na profundidade. Deus prefere o coração que vive a partir da sua palavra e de onde brota a verdade, a justiça e o bem, como vimos nas duas leituras e no salmo.

A pureza e impureza decretada pelos fariseus e transmitida por tradição, tinha como objetivo salvaguardar os ditos “puros” da impureza dos leprosos, dos pecadores, dos pagãos e dos estrangeiros, grupos de pessoas marginalizadas em Israel, para evitar o contágio e as influências de outras culturas e costumes.

Jesus decreta que as coisas (objetos, pessoas, alimentos) são puras ou impuras a partir de dentro do homem, do seu coração, da sede dos seus julgamentos. As coisas não são boas porque cumprem os requisitos da tradição nem porque se apresentam como novidade, são boas ou más a partir do coração humano.

Ao contrário do homem, Deus não tem medo da impureza porque tudo foi criado por ele. Ele é um Deus próximo do homem, ele próprio se faz homem em Jesus. O problema da impureza não está no que entra no homem porque vai para o estomago, mas no que sai, porque sai do coração e das más intenções aí enraizadas.

Meditação da Palavra

O homem desde sempre colocou diante de si questões fundamentais que correspondem a uma inquietação interior, muito profunda, sobre o seu relacionamento com Deus. Quem é Deus? quem é o homem? Onde está Deus e o que pretende do homem? Quem é o homem diante de Deus e como lhe pode agradar? Por detrás da palavra que nos vem através das leituras bíblicas deste XXII domingo do tempo comum, estão algumas destas questões e tentativas de resposta.

O salmista, assumindo a condição de peregrino que sobe a Jerusalém e de crente que sente o impulso interior para entrar no templo do Senhor, questiona-se diante de Deus “quem poderá, Senhor, habitar no teu santuário? Quem poderá residir na tua montanha santa?”. Trata-se de uma pergunta sobre a dignidade necessária ao homem para se aproximar de Deus, para aceitar o seu convite a entrar na sua morada e sentar-se à sua mesa. Serei eu digno de entrar na tua casa, Senhor? O meu coração reúne as condições necessárias para ser digno de tão admirável anfitrião? Desta dignidade fala Jesus na parábola do grande banquete, quando o rei, ao entrar, se depara com um homem sem a veste própria para participar em tão solene banquete. Exige-se, como entendemos, uma veste interior e não exterior, uma dignidade que só Deus consegue ver e não permite que outros se considerem em posição de julgar pelo que exteriormente analisam.

A lei do Senhor, os seus mandamentos e preceitos, de que fala a primeira leitura, “as leis e os preceitos que vos dou a conhecer” são normas orientadoras para os homens se irem tornando cada dia mais dignos de se apresentarem diante de Deus, sentirem que pertencem a alguém que está próximo e não distante, em cuja casa é possível habitar. Ninguém, em verdade, é digno, mas o convite de Deus é feito a todos. Ele quer que todos se tornem dignos mediante a adesão de coração à sua lei, sábia, prudente e justa, capaz de orientar a relação com Deus e com os outros na perspetiva do amor.

Por isso, não é uma palavra para escutar, apenas, mas para pôr em prática. Porque a verdadeira relação com Deus passa pelo amor aos irmãos. Não se trata de práticas rituais, supersticiosas ou de purificação exterior, como acontece no evangelho com os fariseus e os doutores da lei, mas a prática do amor ao outro, ajudando-o a superar as suas dificuldades, integrando-o na vida social e fazendo-o participar em todas as decisões de pleno direito.

Esta é a verdadeira religião, relação integradora de Deus e do homem no concreto da vida, pessoal, social e religiosa. Por isso Tiago alerta os cristãos para serem “cumpridores da palavra e não apenas ouvintes” porque a “verdadeira religião consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo”. Caso contrário a religião não serve de nada, torna-se mandamento morto, incapaz de salvar, que em vez de dignificar retira toda a dignidade à palavra e à ação realizada. Tiago insiste “acolhei docilmente a palavra em vós plantada, que pode salvar as vossas almas”.

Disto se esquecem os fariseus e doutores da lei que, ao verem “alguns discípulos de Jesus” a comerem sem terem lavado as mãos, fazem soar a trombeta do escândaloe aproveitam a ocasião para repreenderem Jesus, “porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos, e comem sem lavar as mãos”. Querem eles dizer que, agindo desta forma, não são dignos de entrar no templo do Senhor, não são dignos hóspedes do altíssimo, julgando-se eles os garantes da fidelidade diante dos homens.

Jesus não perde a oportunidade para nos recordar, como também recorda Tiago, que todas as coisas são boas porque vieram de Deus “toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto, descem do Pai das luzes, no qual não há variação nem sombra de mudança”. Ora, Jesus é também aquele que desceu do céu. Ele é o maior dom de Deus aos homens. Sendo de condição divina não viu qualquer obstáculo em fazer-se igual a nós assumindo a natureza humana. Portanto, os humanos não são impuros nem por causa da raça, nem da língua, nem da cultura ou da religião. E as coisas criadas não são impuras nem podem tornar impuro o homem, porque foram criadas por Deus que “viu que era tudo muito bom” (Gn 1). Por isso, “Não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro”.

De onde vem a impureza? Do coração do homem que é capaz de desprezar os outros, “do interior do homem é que saem as más intenções. A impureza do homem começa no seu coração “todos estes vícios saem do interior do homem e são eles que o tornam impuro”. A única forma de vencer a raiz do mal é aprender a ver como Deus vê, através do exemplo vivo e concreto que temos diante de nós que é o próprio Jesus, que não despreza ninguém.

Rezar a Palavra

Senhor, ensina-me a ver com o coração o mistério de todas as coisas, de todas as pessoas, nas mais diversas circunstâncias. Que eu saiba ver devagar para ver como tu vês. Que a tua lei afine os meus olhos para discernir a bondade que se encontra em todas as coisas. Que eu saiba escutar a tua voz e perceba a tua presença no coração de cada homem. Ensina-me a ver com o coração para poder entrar no teu santuário, purificado de todos os maus juízos, de todas as más intenções, de todas as más inclinações. Ensina-me a ver como tu vês.

Compromisso semanal

Vigio sobre o meu coração para que não se instale nele a raiz da hipocrisia.