Terminou a noite da tristeza já se abrem as portas da vida

À ida vão a chorar e à volta vêm a cantar. A experiência repete-se em cada homem e em muitos dias ao longo da vida. Nem sempre é dia, muitas vezes a noite adensa-se sobre o olhar e ameaça cobrir também o coração.

Um luto difícil por um amigo, por uma ilusão, por uma esperança. Não há notícia que arranque o coração à dor de ter perdido.

Há, porém, uma presença, uma palavra, uma mão, um olhar, um caminho de passos dados lado a lado. Há uma mesa e um pedaço de pão. Na mesa da reunião aquecem-se os corações, retira-se o véu do luto, enxugam-se as lágrimas e volta a alegria.

LEITURA I Atos 2, 14.22-33

No dia de Pentecostes, Pedro, de pé, com os onze Apóstolos, ergueu a voz e falou ao povo: «Homens da Judeia e vós todos que habitais em Jerusalém, compreendei o que está a acontecer e ouvi as minhas palavras: Jesus de Nazaré foi um homem acreditado por Deus junto de vós com milagres, prodígios e sinais, que Deus realizou no meio de vós, por seu intermédio, como sabeis. Depois de entregue, segundo o desígnio imutável e a previsão de Deus, vós destes-Lhe a morte, cravando-O na cruz pela mão de gente perversa. Mas Deus ressuscitou-O, livrando-O dos laços da morte, porque não era possível que Ele ficasse sob o seu domínio. Diz David a seu respeito: ‘O Senhor está sempre na minha presença, com Ele a meu lado não vacilarei. Por isso o meu coração se alegra e a minha alma exulta e até o meu corpo descansa tranquilo. Vós não abandonareis a minha alma na mansão dos mortos, nem deixareis o vosso Santo sofrer a corrupção. Destes-me a conhecer os caminhos da vida, a alegria plena em vossa presença’. Irmãos, seja-me permitido falar-vos com toda a liberdade: o patriarca David morreu e foi sepultado e o seu túmulo encontra-se ainda hoje entre nós. Mas, como era profeta e sabia que Deus lhe prometera sob juramento que um descendente do seu sangue havia de sentar-se no seu trono, viu e proclamou antecipadamente a ressurreição de Cristo, dizendo que Ele não O abandonou na mansão dos mortos, nem a sua carne conheceu a corrupção. Foi este Jesus que Deus ressuscitou e disso todos nós somos testemunhas. Tendo sido exaltado pelo poder de Deus, recebeu do Pai a promessa do Espírito Santo, que Ele derramou, como vedes e ouvis».

Com o testemunho de David, tirado dos salmos, Pedro esclarece a multidão reunida em frente à casa onde se encontram os discípulos, e a nós hoje, que Jesus, acreditado com palavras e obras, não ficou na morte, como pretendiam as autoridades judaicas, porque Deus o ressuscitou.

Salmo 15 (16), 1-2a.5.7-8.9-10.11

O salmo, já citado por Pedro na primeira leitura, apresenta a experiência de uma vida em Deus. Ele está acima de todas as coisas, está ao nosso lado, tem-nos à sua direita, está diante dos nossos olhos. Vivendo nele permanecemos seguros, a alma, o coração, todo o ser pode viver tranquilo. Até na morte está seguro o homem que confia no Senhor, porque a sua morte está cheia de esperança na vida eterna.

LEITURA II 1 Pedro 1, 17-21

Caríssimos: Se invocais como Pai Aquele que, sem aceção de pessoas, julga cada um segundo as suas obras, vivei com temor, durante o tempo de exílio neste mundo. Lembrai-vos que não foi por coisas corruptíveis, como prata e oiro, que fostes resgatados da vã maneira de viver, herdada dos vossos pais, mas pelo sangue precioso de Cristo, Cordeiro sem defeito e sem mancha, predestinado antes da criação do mundo e manifestado nos últimos tempos por vossa causa. Por Ele acreditais em Deus, que O ressuscitou dos mortos e Lhe deu a glória, para que a vossa fé e a vossa esperança estejam em Deus.

O caminho da vida pode fazer-nos esquecer qual foi o preço da nossa libertação. Pedro recorda que não foi com prata nem ouro, mas com o sangue de Cristo que fomos resgatados. Nele, a nossa fé está cheia de esperança e é capaz de suportar todas as dificuldades por maiores que sejam.

EVANGELHO Lc 24, 13-35

Dois dos discípulos de Jesus iam a caminho duma povoação chamada Emaús, que ficava a duas léguas de Jerusalém. Conversavam entre si sobre tudo o que tinha sucedido. Enquanto falavam e discutiam, Jesus aproximou-Se deles e pôs-Se com eles a caminho. Mas os seus olhos estavam impedidos de O reconhecerem. Ele perguntou-lhes: «Que palavras são essas que trocais entre vós pelo caminho?». Pararam, com ar muito triste, e um deles, chamado Cléofas, respondeu: «Tu és o único habitante de Jerusalém a ignorar o que lá se passou estes dias». E Ele perguntou: «Que foi?». Responderam-Lhe: «O que se refere a Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo; e como os príncipes dos sacerdotes e os nossos chefes O entregaram para ser condenado à morte e crucificado. Nós esperávamos que fosse Ele quem havia de libertar Israel. Mas, afinal, é já o terceiro dia depois que isto aconteceu. É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos sobressaltaram: foram de madrugada ao sepulcro, não encontraram o corpo de Jesus e vieram dizer que lhes tinham aparecido uns Anjos a anunciar que Ele estava vivo. Alguns dos nossos foram ao sepulcro e encontraram tudo como as mulheres tinham dito. Mas a Ele não O viram». Então Jesus disse-lhes: «Homens sem inteligência e lentos de espírito para acreditar em tudo o que os profetas anunciaram! Não tinha o Messias de sofrer tudo isso para entrar na sua glória?». Depois, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicou-lhes em todas as Escrituras o que Lhe dizia respeito. Ao chegarem perto da povoação para onde iam, Jesus fez menção de ir para diante. Mas eles convenceram-n’O a ficar, dizendo: «Ficai connosco, porque o dia está a terminar e vem caindo a noite». Jesus entrou e ficou com eles. E quando Se pôs à mesa, tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e entregou-lho. Nesse momento abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-n’O. Mas Ele desapareceu da sua presença. Disseram então um para o outro: «Não ardia cá dentro o nosso coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?». Partiram imediatamente de regresso a Jerusalém e encontraram reunidos os Onze e os que estavam com eles, que diziam: «Na verdade, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão». E eles contaram o que tinha acontecido no caminho e como O tinham reconhecido ao partir o pão.

A tristeza pela morte de Jesus não deixa os discípulos entender o acontecimento. É a palavra de Deus explicada por Jesus que retira o véu de luto e transforma a tristeza em alegria. Iluminados pela palavra do ressuscitado, os discípulos de Emaús, abrem-se à novidade do mistério da Páscoa e deixam o coração encher-se de ardor. De coração cheio, encontram espaço na sua mesa para Jesus, o desconhecido que os acompanha no caminho, e reconhecem nele o ressuscitado.

Reflexão da Palavra

O texto que serve de primeira leitura na celebração deste III domingo do tempo pascal é tirado do discurso de Pedro na manhã de Pentecostes, relatado por Lucas no livro dos Actos do Apóstolos. Pedro toma a palavra e fala em nome de todos os que receberam o Espírito Santo. No início do discurso Pedro dirige-se aos judeus, ‘homens da Judeia’, depois, nesta segunda parte, dirige-se aos Israelitas ‘homens de Israel’, para finalmente se dirigir a todos, chamando-lhes ‘irmãos’. É precisamente nesta segunda parte que Pedro utiliza uma longa citação do salmo 16, escolhido também para a celebração de hoje, para falar da ressurreição de Jesus, anunciada já por David. É a dissertação sobre o conteúdo deste salmo que constitui a terceira parte do discurso, mostrando que David não falava dele próprio, que está sepultado ali na cidade, mas de outro, de Jesus, cuja ressurreição ele “viu e contemplou antecipadamente”. Os doze, agora cheios do Espírito Santo, são testemunhas desta ressurreição.

Relativamente ao Salmo 15, estamos perante uma oração de confiança em Deus. Por ser como uma manifestação de lealdade, poderá ter sido a oração de um sacerdote no dia da sua consagração ou de um crente fervoroso que viveu uma experiência forte de Deus. Contém, para além desta promessa de lealdade, um conjunto de propósitos: não tomar parte no culto dos ídolos nem pronunciar o seu nome, e, por outro lado, bendizer o Senhor. Afirma, ainda, esperar que o Senhor o livre da morte, lhe mostre o caminho da vida, o sacie de alegria na sua presença e com as delícias eternas. Em tudo isto, o salmista, manifesta uma plena confiança, “jamais vacilarei” e “o meu corpo repousará tranquilo”, porque Deus está sempre na sua presença, o ensina, aconselha e orienta.

O salmo é aplicado a Jesus por parte de Pedro, no discurso da manhã de Pentecostes At 2,25, e em At 13,35. Aquele que confia é por excelência Jesus e seguindo os seus passos, o cristão. Aquele que é livre da corrupção da morte é o próprio Cristo, ele que promete também a vida eterna àqueles que nele creem.

Pedro continua, na sua primeira carta, o tema da esperança iniciado no último domingo. Esta esperança está fundada em Cristo que nos resgatou “da vã maneira de viver herdade dos vossos pais”. O resgate não se realizou com a troca de bens passageiros, mas no sangue de Cristo, como estava “predestinado desde antes da criação do mundo” e é graças ao sangue do “Cordeiro sem mancha” que a nossa fé, em Deus e no mistério pascal de Cristo, se torna garantia de uma “esperança viva” capaz de alterar a nossa conduta diante de Deus e dos homens “durante o tempo de exílio neste mundo”.

 O evangelho é de Lucas, o mesmo autor do livro dos Actos dos Apóstolos. No capítulo 24, o evangelista apresenta quatro episódios da ressurreição: as mulheres encontram o túmulo vazio, a aparição de Jesus ressuscitado aos discípulos de Emaús, a aparição aos apóstolos reunidos em Jerusalém e a ascensão. Os episódios dão-se todos no mesmo dia, o primeiro da semana. O evangelho deste domingo apresenta o episódio de Emaús.

O relato pode dividir-se em quatro partes: uma introdução, o diálogo de Jesus com os discípulos ao longo do caminho; a chegada a casa e o partir do pão que revela Jesus; o regresso dos discípulos a Jerusalém e relato do que sucedera pelo caminho.

Podem salientar-se no texto os seguintes elementos: Os dois discípulos que seguem para Emaús tiveram conhecimento da ressurreição de Jesus, pelas mulheres, mas não acreditaram; a situação deles é de profunda tristeza; fogem de uma situação que não conseguem explicar e, por isso, por mais que falem e pensem sobre o assunto não chegam ao entendimento; Jesus aparece e junta-se a eles; inicia-se um diálogo com Jesus, por iniciativa dele, sem que o possam reconhecer; reconhecer Jesus está dependente da palavra que pode iluminar a cegueira; palavra que podem sair da boca deles ou da boca de Jesus; eles dizem que “é já o terceiro dia depois que isto aconteceu” e Jesus diz “homens sem inteligência e lentos de espírito para acreditar em tudo o que os profetas anunciaram” e explicou-lhes com as escrituras que, tudo o que se passou, não é assim tão estranho; como não é estranho que no final do caminho insistam para que fique com eles, pois, ardia-lhes o coração ao ouvir as palavras do desconhecido; à mesa todas as dúvidas encontram resposta e abrem-se, finalmente, os olhos para reconhecerem no estranho, o mesmo Jesus que lhes tinha partido o pão na última ceia; os olhos não veem enquanto os ouvidos não escutam; os dois regressam a Jerusalém, mas não pelo mesmo caminho, e dão testemunho do que ouviram e viram, de como o reconheceram ao partir do pão.

Meditação da Palavra

Por muito difícil que seja acreditar que Deus morreu na cruz, a verdade é que a ressurreição de Jesus tem o poder de transformar os homens em testemunhas de uma salvação que vem da cruz, do corpo entregue e do sangue derramado.

A liturgia deste terceiro domingo da Páscoa revela o poder que a ressurreição exerce naqueles que ontem ou hoje são discípulos de Jesus.

Lucas conta que a morte de Jesus lançou um manto de tristeza sobre os apóstolos. A tristeza, o desapontamento, a desilusão, foram tão arrasadoras que nenhuma notícia os faz sair da tristeza nem demover de regressar a suas casas.

Exemplo disso, é o episódio relatado no evangelho. Dois discípulos, apesar de terem recebido a notícia do túmulo vazio e da ressurreição de Jesus, não querem acreditar e decidem regressar a Emaús. No pensamento continua Jesus, os acontecimentos vividos com ele desde a Galileia até Jerusalém, a cidade que mata os profetas e que levou a morte o mestre em quem depositavam a total esperança. Falam disso pelo caminho carregados de tristeza, porque não lhes sai do pensamento.

Aparentemente sozinho eles são acompanhados por Jesus que se faz presente como se fosse um estranho. Eles sabem tudo sobre Jesus e Jesus sabe tudo sobre as Escrituras. Partilharam o que sabiam e Jesus explicou-lhes que tudo estava previsto no plano de Deus.

Os acontecimentos não mudaram mas a palavra explicada por Jesus mudou o olhar sobre os acontecimentos e arde-lhes o coração de alegria ao ouvirem, porque os ouvidos despertam a fé para que os olhos possam ver o que não se vê.

Sem o reconhecerem ainda, recebem-no em casa, sentam-no à mesa, apresentam-lhe o pão e ele, Jesus, fez o resto, o que só ele sabe fazer, repartir. Jesus é o pão e o seu nome é repartir. Não há nada de estranho nisto, já o tinha feito quando saciou a fome à multidão e quando se reuniu com os discípulos para celebrar a Páscoa.

Reconheceram-no ao partir do pão. Reconheceram-no no estranho com quem partilharam a tristeza pelo caminho. Reconheceram-no no desconhecido que receberam em casa. Reconheceram-no nas mãos que repartem o pão. Reconheceram-no no pão partido que sacia a fome do mundo. Nada de estranho.

E neste encontro, transformaram-se em testemunhas. Saíram de noite e foram para Jerusalém, por outro caminho. Outro caminho? Sim! Já não é o caminho da noite, mas do dia. Já não é o caminho do medo, mas do desassombro. Já não é o caminho da tristeza, mas da alegria. Já não é o caminho da desilusão, mas da esperança.

O mesmo caminho da manhã de Pentecostes que transformou os medrosos em apóstolos e testemunhas da ressurreição. O mesmo caminho dos cristãos da Ásia Menor, a quem Pedro exorta à esperança naquele que os resgatou com o seu próprio sangue. O mesmo caminho que nos é proposto a nós na encruzilhada deste tempo que nos é dado viver, e onde as incertezas podem transformar-se em garantia de vida eterna.

Rezar a Palavra

A tristeza dos homens sem esperança faz-me sentir o desejo de anunciar que a morte não é o fim, que o túmulo está vazio, que tu, Senhor, estás vivo e presente no caminho de cada homem. Ali onde a desilusão ganhou terreno ou aqui onde se levantam inquietações, onde o cenário do mundo se apresenta cinzento ou mesmo negro ou mais além onde falta horizonte e luz, quero anunciar que tu estás presente e caminhas lado a lado com todos os homens. Nas portas fechadas, na solidão das casas sem visitas, nas mesas onde só há pão, quero anunciar as tuas mãos sempre abertas, o teu olhar sempre atento, a tua palavra sempre disponível.

Compromisso semanal

Torno-me apóstolo da esperança contando, pelo caminho, como Jesus me salvou.