Olhar para ti

De braços abertos em cruz, misturado no azul do céu, com o mar a beijar-me os pés e, sinto o abraço arrebatador do vento. Fecho os olhos e deixa-se levar, rendendo-me à sensação livre de ser um só com o infinito. Os raios de sol dançam no meu rosto, iluminando cada traço. E por dentro, o coração, como um vulcão em erupção, arde de um amor que me dá a certeza inabalável do momento.

Olhar para Ti é quanto basta, porque és a luz que me impele a arriscar tudo o que posso perder, porque em Ti ganho tudo o que o meu coração, na sua mais louca esperança, poderia desejar.

LEITURA I Num 21, 4b-9

Naqueles dias,
o povo de Israel impacientou-se
e falou contra Deus e contra Moisés:
«Porque nos fizeste sair do Egito,
para morrermos neste deserto?
Aqui não há pão nem água
e já nos causa fastio este alimento miserável».
Então o Senhor mandou contra o povo serpentes venenosas
que mordiam nas pessoas
e morreu muita gente de Israel.
O povo dirigiu-se a Moisés, dizendo:
«Pecámos, ao falar contra o Senhor e contra ti.
Intercede junto do Senhor,
para que afaste de nós as serpentes».
E Moisés intercedeu pelo povo.
Então o Senhor disse a Moisés:
«Faz uma serpente de bronze e coloca-a sobre um poste.
Todo aquele que for mordido e olhar para ela
ficará curado».
Moisés fez uma serpente de bronze e fixou-a num poste.
Quando alguém, era mordido por uma serpente,
olhava para a serpente de bronze e ficava curado.

No deserto, a impaciência do povo de Israel atingiu o limite quando acusou Deus de o ter tirado do Egito para o deixar morrer à fome no deserto. Deus, porém, caminha no meio do seu povo partilhando com ele alegrias  e tristezas e, manifestando sempre a sua capacidade de perdoar.

Salmo 77 (78), 1-2.34-35.36-37.38 (R. cf. 7c)

O salmo 77 através do relato das maravilhas realizadas por Deus no passado, convida à fidelidade. A história do povo eleito está repleta de infidelidades e desconfianças do povo para com Deus. Apesar disso, Deus nunca renunciou à sua misericórdia perdoando sempre o pecado do seu povo.

LEITURA II Flp 2, 6-11

Cristo Jesus, que era de condição divina,
não Se valeu da sua igualdade com Deus,
mas aniquilou-Se a Si próprio.
Assumindo a condição de servo,
tornou-Se semelhante aos homens.
Aparecendo como homem,
humilhou-Se ainda mais,
obedecendo até à morte
e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou
e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes,
para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem
no céu, na terra e nos abismos,
e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai.

Através de um hino que se rezava na liturgia das primeiras comunidades, Paulo, na carta aos Filipenses, revela o mistério de Cristo como a humilhação da qual brota a salvação do homem porque a sua obediência  na morte encontra no amor de Deus o poder da exaltação gloriosa.

EVANGELHO Jo 3, 13-17

Naquele tempo, disse Jesus a Nicodemos:
«Ninguém subiu ao céu
senão Aquele que desceu do céu: o Filho do homem.
Assim como Moisés elevou a serpente no deserto,
também o Filho do homem será elevado,
para que todo aquele que acredita
tenha n’Ele a vida eterna.
Deus amou tanto o mundo
que entregou o seu Filho unigénito,
para que todo o homem que acredita n’Ele
não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo
para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele».

Jesus revela a Nicodemos que a cruz de Jesus é o lugar da manifestação do amor de Deus que quer que todo o homem se salve. Ele que desceu do céu indica-nos a cruz como caminho para subir ao céu.

Reflexão da Palavra                                                                                                                

A saída do Egito foi tudo menos um processo fácil. O povo que durante quatrocentos anos viveu em escravatura, está a aprender a viver em liberdade. Os escravos têm vida difícil, suportando o peso do trabalho de sol a sol, mas os seus donos dão-lhes o alimento de que necessitam para continuarem a trabalhar. Em liberdade, este povo, experimenta desafios que não está acostumado. É preciso procurar água e muitas vezes passam sede. É necessário procurar alimento e muitas vezes passam fome. Têm necessidade de descanso mas não podem parar porque é preciso vencer o deserto para chegar à terra prometida. Ao longo do caminho são diversos os perigos e medos, desconfianças e desânimos que é preciso enfrentar.

Por diversas vezes, em situações difíceis, o modo de reagir do povo surge em forma de revolta contra Deus e contra Moisés. As cebolas que no Egito provocavam enjoo, são recordadas como um grande banquete. “Porque nos fizeste sair do Egito?” Questionam. No meio do desânimo é fácil cair na tentação da desconfiança foi “para morrermos no deserto”.

Com esta desconfiança põem em causa da pior maneira a bondade de Deus, o seu amor pelo povo, a mais genuína intenção do seu coração. É imperdoável esta acusação. Quando surgem as serpentes, este povo que ainda não compreende quem Deus é, recebe-as como um castigo de Deus pelo seu pecado, “pecámos, ao falar contra o Senhor e contra ti”. Moisés atende o seu pedido e intercede junto de Deus. Só Deus pode curar o povo depois de mordido pelas serpentes.

O remédio surge em forma de serpente de bronze que Moisés levanta no meio do acampamento, pois, como disse o Senhor, “todo aquele que for mordido e olhar para ela ficará curado”. A cura não vem da serpente, mas do Senhor, como mais tarde virá dizer o livro da Sabedoria 16,7, “quem se voltava para ele era curado, não pelo que via (a serpente), mas por ti, salvador de todos”.

Ao longo de cinco secções, o salmo 77 apresenta uma reflexão com base na história da salvação. O povo de Deus, pela sua infidelidade, desconfiança e falta de fé atraiu para si diversas provações. Apesar dos maravilhosos prodígios que o Senhor fez em seu favor, o povo afastou-se com o seu pecado daquele que o pode salvar. “Apesar de tudo isto, persistiram no pecado, não acreditaram nas suas maravilhas”. E Deus sempre encontrava um meio de manifestar ao povo a sua misericórdia e o trazer de novo, “muitas vezes conteve a sua ira, e não deixou que o seu furor se avivasse. Lembrou-se de que eles eram humanos”.

Os factos contidos no salmo foram transmitidos pelos antigos “o que ouvimos e aprendemos e os nossos antepassados nos transmitiram”, servem de reflexão às novas gerações para que permaneçam fiéis ao Senhor. O salmo mantém viva a ação de Deus em favor do seu povo bem como a sua misericórdia diante do pecado, para animar os que receberam esta herança a viver na fidelidade.

O texto da carta de Paulo aos Filipenses é um conhecido hino cristológico usado na liturgia das primeiras comunidades. Nele encontramos um concentrado do mistério de Cristo: a sua divindade e preexistência, a encarnação, a humilhação da cruz e a exaltação.

Antes da encarnação Jesus já existia e era Deus, “era de condição divina”. Na encarnação não reivindicou a sua condição divina, nem usufruiu de nenhum privilégio a seu favor, “não Se valeu da sua igualdade com Deus”. Pelo contrário, levou até ao extremo a sua condição humana esvaziando-se de todos os privilégios divinos e fazendo-se servo. E como servo, viveu a obediência ao ponto de descer ao mais profundo que o homem pode descer, a humilhação pela morte na cruz como condenação.

Em conclusão deste despojamento total “Deus O exaltou”. Não se trata de uma retribuição como recompensa pelo que fez ou merecimento pela sua entrega, mas como caminho natural de todo aquele que se humilha, “quem se humilha será exaltado”. Assumindo a condição humana Cristo entra no plano de salvação de Deus para toda a humanidade e, por isso, não fica na morte, mas é chamado à vida pela força do amor de Deus que não recompensa, ama simplesmente, e o seu amor é fonte gratuita de vida.

É tudo o contrário de Adão que, sendo homem desconfiou da bondade de Deus quando este o preveniu quanto ao fruto da árvore proibida e entendeu ser Deus de si mesmo desrespeitando a ordem com a desobediência. Jesus, sendo Deus, não reclamou para si esta condição e assumiu a condição humana por inteiro. Adão exaltou-se desobedecendo e foi humilhado, como Israel no deserto. Jesus humilhou-se obedecendo até à morte na cruz. Por isso ele é exaltado, como Senhor, cujo nome “está acima de todos os nomes” e diante dele “todos se ajoelham no céu, na terra e nos abismos”.

O evangelho de João culima a reflexão da Festa da Exaltação da Santa Cruz, com um olhar novo sobre o suplício que a cruz representa enquanto lugar onde se cumpre a condenação dos criminosos.

O texto faz parte do diálogo de Jesus com Nicodemos. Jesus fala de si mesmo como “o Filho do Homem, o único que desceu do céu e pode subir ao céu. Depois, Jesus estabelece uma comparação entre o acontecimento do deserto em que “Moisés elevou a serpente” e o que vai acontecer com ele “o Filho do homem será elevado”.

Curiosamente, a serpente do deserto, como vimos na reflexão da primeira leitura, não é apresentada como um símbolo mágico, mas como um instrumento que conduz à fé em Deus, o único que pode curar. Do mesmo modo, Jesus é elevado “para que todo aquele que acredita tenha n’Ele a vida eterna”, a cura espiritual.

No deserto a serpente é sinal da misericórdia de Deus para com o seu povo que tinha pecado revoltando-se e pondo em causa a intenção de Deus ao libertá-lo do Egito. Aqui, Jesus é elevado, é entregue, porque “Deus amou tanto o mundo” e não quer a morte do homem, mas que ele se salve e viva “para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna”. Ao contrário da desconfiança de Adão e do povo no deserto, as intenções de Deus são boas.

Meditação da Palavra

Quando Nicodemos foi ter com Jesus de noite, ele não imaginava que ia experimentar a maior luz que algum homem pode experimentar. No meio da sua insensatez foi iluminado pela luz que vem da morte e ressurreição de Jesus, num anúncio antecipado que ele não compreendeu senão quando o viu, no Calvário, entre o céu e a terra, entre a humilhação e a exaltação, no ponto certo que atrai o olhar de todos os homens, onde a fé se torna esperança e onde toda a língua proclama sem palavras que o crucificado é Senhor e diante de quem todos se ajoelham no céu e na terra.

Ao celebrar a Festa da Exaltação da Santa Cruz, a Igreja propõe um olhar para o mistério de Cristo, exposto de modo singular no hino cristológico da carta de Paulo aos Filipenses. Aquele que desceu do céu, o único que pode subir ao céu, é o mesmo que existe desde sempre, o mesmo que antes de ser homem já era Deus “era de condição divina”, mas como homem não reclamou como fez Adão, desconfiado da bondade de Deus ao preveni-lo da possibilidade da morte se comesse o fruto da árvore do jardim. Nem como o povo saído do Egito, cansado da aridez do deserto, sedento e faminto de esperança. Ele, que “era de condição divina” em nenhum momento pensou em aproveitar-se dessa condição para usufruir de uma vida humana privilegiada, livre das limitações e longe do flagelo da morte que tão dramaticamente atinge a humanidade.

Pelo contrário, para manifestar o amor de Deus pelos homens, “Deus amou tanto o mundo”, “aniquilou-se a si próprio”, assumiu “a condição de servo”, “humilhou-Se …, obedecendo até à morte e morte de cruz”, “para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna”.

Tornou-se, assim, o verdadeiro sinal pelo qual todo o homem se encontra com Deus e nele encontra a salvação. Foi abolido o sinal de Moisés que servia de intermediário para alcançar de Deus a cura contra o veneno das serpentes. Pela morte na cruz, Jesus é apresentado pelo Pai como o “nome que está acima de todos os nomes” diante do qual “todos se ajoelham no céu na terra e nos abismos” e no qual se encontra o antidoto contra o aguilhão da morte. Onde está ó morte a tua vitória.

A vitória já não pertence à morte, mas àquele que desceu na obediência “até à morte de cruz” e no amor incondicional de Deus venceu a morte foi exaltado na ressurreição retomando o seu lugar no céu.

Este é o verdadeiro anúncio que deve passar de geração em geração, de modo que todos conheçam as maravilhas realizadas por Deus na morte de ressurreição de Cristo e, reconhecendo o mistério pelo qual somos salvos, permaneçam fiéis ao amor de Deus que “não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele”.

Os que participam na celebração da Eucaristia aprendem, através da palavra proclamada, a olhar para a cruz como sinal do amor de Deus e a firmar a fé no mistério de Cristo como mistério de vida eterna. Aprendem a viver do amor que salva o mundo. Um amor que liberta e não oprime, que salva e não esmaga, que enriquece e não domina.

Rezar a Palavra

Levanto os meus olhos para ti que te elevas acima da terra e revelas a cruz como caminho para o céu. Aprendo contigo a humilhação, o aniquilamento da minha vontade, a morte de cruz, como lugar da verdadeira glorificação. Ensina-me o despojamento e a confiança para que livre de todas as amarras do tempo presente, acredite que Deus quer que, por ti, eu viva eternamente.

Compromisso semanal

Assumo a cruz como compromisso de vida.