Quando um escravo se torna filho

Nas noites escuras da infância aparecem figuras desenhadas no teto do quarto antes de chegar o sono. Todas essas figuras são verdadeiras e personagens de grandes histórias. Nessas histórias tudo é possível. Cada personagem é protagonista de coisas maravilhosas que na vida real parecem impossíveis. Nessas histórias eu encarno mil personagens, todos reais, todos possíveis, todos verdadeiros e todos vencedores. Com Deus também se podem construir mil histórias, todas reais, todas verdadeiras e eu posso estar sempre em cena com ele.

LEITURA I Dt 4, 32-34.39-40

Moisés falou ao povo, dizendo: «Interroga os tempos antigos que te precederam, desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra. Dum extremo ao outro dos céus, sucedeu alguma vez coisa tão prodigiosa? Ouviu-se porventura palavra semelhante? Que povo escutou como tu a voz de Deus a falar do meio do fogo e continuou a viver? Qual foi o deus que formou para si uma nação no seio de outra nação, por meio de provas, sinais, prodígios e combates, com mão forte e braço estendido, juntamente com tremendas maravilhas, como fez por vós o Senhor, vosso Deus, no Egito, diante dos vossos olhos? Considera hoje e medita em teu coração que o Senhor é o único Deus, no alto dos céus e cá em baixo na terra, e não há outro. Cumprirás as suas leis e os seus mandamentos, que hoje te prescrevo, para seres feliz, tu e os teus filhos depois de ti, e tenhas longa vida na terra que o Senhor teu Deus te vai dar para sempre».

Moisés convida o povo a refletir sobre a verdade de Deus na sua história. O Deus de Israel não é como os outros, ele escuta a angústia do seu povo e desce para o libertar do Egito, escolhe Israel para seu povo e trava batalhas para o salvar dos inimigos, oferece-lhe uma terra onde pode viver em paz. Ele é o Deus único.


Salmo responsorial Sl 32 (33), 4-5.6.9.18.19.20.22 (R. 12b)
O salmista convida a confiar no Senhor porque ele, com a sua palavra, criou todas as coisas, está atento e liberta da morte aqueles que o temem e esperam na sua bondade e fez de nós a sua herança.

LEITURA II Rm 8, 14-17

Irmãos: Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão para recair no temor, mas o Espírito de adoção filial, pelo qual exclamamos: «Abá, Pai». O próprio Espírito dá testemunho, em união com o nosso espírito, de que somos filhos de Deus. Se somos filhos, também somos herdeiros, herdeiros de Deus e herdeiros com Cristo; se sofrermos com Ele, também com Ele seremos glorificados.

Paulo recorda que todos os que se deixam conduzir pelo Espírito são filhos de Deus, herdeiros do reino e companheiros de Cristo tanto no sofrimento como na glória.

EVANGELHO Mt 28, 16-20

Naquele tempo, os Onze discípulos partiram para a Galileia, em direção ao monte que Jesus lhes indicara. Quando O viram, adoraram-n’O; mas alguns ainda duvidaram. Jesus aproximou-Se e disse-lhes: «Todo o poder Me foi dado no Céu e na terra. Ide e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei. Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos».

Mateus revela o mistério da Santíssima Trindade ao narrar o encontro dos discípulos com Jesus ressuscitado. No mesmo encontro, Jesus envia-os em missão até aos confins do mundo e até ao fim dos tempos.

Reflexão da Palavra

Moisés fala ao povo, como se lê em Dt 1,1.3, “estas são as palavras que Moisés dirigiu a todo o Israel… Moisés disse aos filhos de Israel tudo o que o Senhor ordenara para eles”. As palavras do texto litúrgico da primeira leitura fazem parte do primeiro discurso de Moisés que recorda tudo o que o Senhor fez em favor do seu povo. Moisés recorda que Deus é o Senhor de toda a terra, nenhum ídolo se compara ao Senhor, ele escolheu Israel para seu povo, ofereceu-lhe uma terra desalojando povos.

O texto afirma que só o Senhor é Deus, só ele criou o homem, fez ouvir a sua voz e mostrou-se nos seus milagres e prodígios, combateu em favor do seu povo e não esmagou Israel com a sua presença, apesar de ter feito tudo isto “diante dos teus olhos”. Qualquer outro povo teria perecido diante da visão de Deus “sabes, porventura, de algum povo que tenha ouvido a voz de Deus falando do meio do fogo, como tu ouviste, e tenha continuado a viver?”. Entretanto, diz Moisés “tu viste e ficaste a conhecer que Ele, o Senhor, é Deus e que não há outro além dele” (Dt 4,35).

Perante tudo o que Deus fez, Moisés apresenta o conteúdo essencial da fé de Israel “reconhece e medita no teu coração que só o Senhor é Deus, tanto no alto do céu como em baixo, na terra, e que não há outro”. O conhecimento de Deus e os mandamentos são para viver, cumprir e para transmitir de geração em geração, pois está em causa a felicidade do povo do Senhor, “para seres feliz, tu e os teus filhos” e a permanência na terra prometida, “para que prolongues a tua existência sobre a terra”. Mas Deus é também o Deus de todos os povos e Israel não pode esquecer isto, porque é povo do Senhor ao serviço dos outros povos.

O texto não fala de Deus no seu ser trinitário, nem se encontra em nenhum texto do Antigo Testamento referência à Santíssima Trindade, pois a revelação de Deus como Trindade está reservada a Jesus. A revelação do Antigo Testamento tem como objetivo tirar o povo do politeísmo e levá-lo a reconhecer que só o Senhor é Deus e todos os outros são ídolos, “deuses de madeira e de pedra, que não veem, não ouvem, não comem, nem têm olfato” (Dt 4, 28; Sl 115,3-7). Apresentar Deus como um só em três pessoas, seria para Israel, habituado ao politeísmo, uma grande dificuldade. Por isso, o Senhor começa por se apresentar como o Deus único e só posteriormente, em Jesus, no Novo Testamento, revela o seu mistério de comunhão trinitária.

No salmo 32, o salmista começa por convidar os “justos” e os “retos de coração” a louvar o Senhor e a cantar “um cântico novo” com “a cítarae com “a harpa de dez cordas”, porque o Senhor “criou os céuscom a sua “palavra” e o “sopro da sua boca”, “Ele disse… Ele ordenou” e “tudo foi feito… tudo foi criado”, por isso, “a terra está cheia da sua bondade”, do seu amor.

De onde está sentado, o Senhor “observa todos os habitantes da terra” e frustra os planos dos homens, mas o seu plano e os seus desígnios, que passam pelo povo “que ele escolheu”, “permanecem para sempre”. No coração do homem está o desejo do amor de Deus, “venha sobre nós, Senhor, o teu amor” que é garantia de felicidade “feliz a nação cujo Deus é o Senhor”, porque não são os planos dos homens, nem o exército, nem a força do guerreiro, nem o cavalo, que salva o rei. A salvação está no Senhor. Ele vela, liberta da morte e “mantém vivos” “os seus fiéis”, “os que esperam na sua bondade”. Apenas os que “esperam”? Não! Mas apenas estes sabem o que o Senhor faz por eles.

Na conclusão o salmista faz uma profissão de fé em nome de todos “em vós esperamos, Senhor”.

O capítulo 8 da carta aos romanos recolhe a reflexão de Paulo sobra a vida segundo a carne e a vida segundo o Espírito. Ele chega mesmo a dizer “os que vivem sob o domínio da carne são incapazes de agradar a Deus” (Rm 8,8), e falando da comunidade de Roma, afirma “vós não estais sob o domínio da carne, mas do Espírito, pressupondo que o Espírito de Deus está em vós” (Rm 8,9).

O pequeno texto da segunda leitura desta liturgia tem como pano de fundo a organização social onde, na casa da família, há escravos e filhos. Uns e outros obedecem ao chefe da casa, o Pai, com a diferença de que os escravos obedecem por medo do castigo e os filhos por confiança.

Quem são os escravos? Aqueles que receberam “um espírito de escravidão para recair no temor”. Quem são os filhos? “Aqueles que “são conduzidos pelo Espírito de Deus”, Espírito que “dá testemunho, em união com o nosso espírito, de que somos filhos de Deus”, o Espírito que em nós Clama “Abbá, ó Pai”. O cristão é chamado a viver segundo o Espírito que o torna filho, herdeiro e lhe abre o caminho para participar da glória com Jesus.

Mateus apresenta a ressurreição de Jesus de modo resumido. As mulheres vão ao sepulcro, dá-se um tremor de terra, aparece um anjo que anuncia a ressurreição. As mulheres são enviadas a anunciar aos discípulos “Ide dizer aos seus discípulos” (Mt 28 7) e recebem indicações para um encontro com o ressuscitado na Galileia. As mulheres correm e no caminho encontram-se com Jesus ressuscitado que repete a mesma indicação “Ide anunciar aos meus irmãos que partam para a Galileia. Lá me verão” (Mt 28,10).

O texto desta celebração situa-nos na Galileia, lugar do encontro com Jesus ressuscitado, em clima de ressurreição e num momento de transmissão de poder e de envio.

Os elementos interessantes do texto são estes: os discípulos cumpriram com as indicações transmitidas pelas mulheres e foram para a Galileia ao encontro de Jesus. O encontro realiza-se no cimo de um monte, embora nem Jesus nem o anjo tenham dado esta indicação. Este encontro recorda outros como o sermão da montanha ou a transfiguração de Jesus, realizados também no cimo de um monte. Interessante é o facto de na transfiguração Jesus ter mandado que não falassem a ninguém do que ali acontecera e aqui os enviar a anunciar a todos.

Ao verem Jesus, os discípulos “adoraram-no” e “duvidaram”, indicando que o caminho da fé nem sempre é claro e a dúvida está sempre presente. Pode-se estar muito animado e comprometido na fé e ao mesmo tempo experimentar a dúvida e a falta de fé.

Apesar da fragilidade manifestada pelos discípulos, Jesus confia-lhes a sua missão “todo o poder Me foi dado no Céu e na terra. Ide e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei”. Mesmo duvidando, a sua missão compreende ensinar a todos o que aprenderam de Jesus.

A missão dos apóstolos é universal, destina-se a “todas as nações” e não tem limites de duração, é “até ao fim dos tempos”, é realizada no poder de Jesus e com a garantia da sua presença. O anúncio tem dois tempos, o ensino e o batismo. Tanto um como o outro têm no centro o mistério de Deus trinitário, Pai, Filho e Espírito Santo, conteúdo que os discípulos ainda não digeriram suficientemente e os deixa ainda perplexos.

Meditação da Palavra

A liturgia deste dia da Santíssima Trindade propõe uma revisão de toda a história da salvação que é simultaneamente a história da revelação de Deus aos homens. A história realiza-se na sequência de dias e anos e a revelação acompanha o homem no seu peregrinar sobre a terra. O mistério do homem tem a sua raiz no mistério de Deus. Se Deus conhece o homem porque o criou com as suas mãos, mas sobretudo com o seu amor, o homem não tem capacidade de conhecer Deus, mas deseja o encontro com ele no íntimo de si mesmo. O homem precisa que Deus se revele para o poder conhecer. Na sua intuição o homem sabe que pode chegar a fazer o encontro com Deus.

A revelação de Deus acompanha o homem na sua busca. Deus não substitui o homem mas ajuda-o a ir mais longe, a não se cansar de procurar e a dar asas ao seu desejo de o conhecer. Nesta busca o homem nem sempre acerta, mas Deus vai acertando o passo com ele para que o encontro se concretize.

É assim com Adão, com Abraão, com Moisés, para apresentar três momentos fundamentais na história da revelação. Adão sabe que Deus é Deus e ele não é Deus, mas confunde o seu desejo de conhecer e de entrar na comunhão com Deus, com o desejo de ser Deus de si mesmo. Subverte a intenção de Deus e dos seus mandamentos “Não, não morrereis; 5porque Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal” (Gn 3,4). E, em vez de liberdade e autonomia descobriu-se escravo de si mesmo e cheio de medo diante de Deus ao ponto de dizer “ouvi a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me” (Gn 3,10).

Abraão é chamado a fazer a experiência da fé no Deus único, no meio de povos que procuram um deus à sua medida, capaz de satisfazer todos os seus desejos, com quem se relacionam a medo, procurando apaziguar o seu mau humor com ofertas e sacrifícios. 

Num mundo de deuses, como pode sobreviver o Deus único? O percurso da fé para o Deus único torna-se um caminho difícil no qual o povo vive o fascínio dos deuses e Deus insiste em revelar-se como o princípio e o fim único de toda a existência.

Moisés, regressa ao Deus único, o Deus de seus pais Abraão, Isaac e Jacob, depois de um tempo de exílio no Egito, uma terra a fervilhar de deuses. É no deserto, de regresso a casa, que Moisés senta o povo para uma reflexão. E começa com o desafio “interroga os tempos antigos”, “considera hoje e medita em teu coração”, para que o povo se liberte de um passado recente em que era escravo e não filho para reconhecer que “o Senhor é o único Deus, no alto dos céus e cá em baixo na terra, e não há outro”. Que o medo impede de ver a distância entre o Deus de Israel e os deuses dos outros povos, “qual foi o deus que formou para si uma nação no seio de outra nação, por meio de provas, sinais, prodígios e combates, com mão forte e braço estendido, juntamente com tremendas maravilhas, como fez por vós o Senhor vosso Deus”.

Israel levou séculos, entre infidelidades e seduções, para se deixar convencer que Deus é um só e foi ele quem o tirou do Egito, da terra da escravidão.

Só em Jesus Deus se havia de revelar plenamente, como o Deus Uno e Trino. O Deus criador, salvador e consolador do homem. O Deus próximo que vem ao encontro e se dá a conhecer como é, comunhão de pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo. E que nós, os crentes, no batismo mergulhamos na comunhão com ele, e nos tornamos participantes do seu ser como filhos.

No final do evangelho de Mateus, ali onde o gesto de adoração se mistura com a dificuldade em acreditar, Jesus revela que no batismo todo o homem tem a possibilidade de mergulhar na intimidade de Deus e participar na comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E Paulo vem recordar nas palavras dirigidas à comunidade de Roma, que graças ao Espírito Santo, dom de Deus recebido no Batismo, somos filhos e não escravos. A nossa relação com Deus está fundada na confiança de filhos e por isso obedecemos com alegria, porque reconhecemos que Deus, o Pai, tudo o que nos pede é para sermos felizes e podermos habitar nele para sempre, como ele permanece em nós “até ao fim dos tempos”.

Rezar a Palavra

Ensina-me a dizer creio no meio das minhas dúvidas e a afirmar o teu amor por cima dos meus medos. Mostra-me que os teus mandamentos são palavra que liberta e não pesos que impões sobre mim para mostrares o teu poder. Ensina-me a acreditar e a confiar no teu amor revelado por Jesus e faz-me participante da comunhão que existe em ti.

Compromisso semanal

Digo “creio” e digo Pai, Filho e Espírito Santo e experimento-me amado.