A força libertadora do teu olhar
Um grão de trigo tem a força de mudar mentalidades e, lançado à terra, depois de morrer, dá nova vida e vida em abundância para todos os que têm fome.
Uma mão ressequida, desprezada por todos e ocultada ao olhar para não causar desdém, tem o poder de transformar uma sinagoga num lugar onde se vive um abraço.
LEITURA I Dt 5, 12-15
Eis o que diz o Senhor: «Guarda o dia de sábado, para o santificares, como te mandou o Senhor, teu Deus. Trabalharás durante seis dias e neles farás todas as tuas obras. O sétimo, porém, é o sábado do Senhor, teu Deus. Não farás nele qualquer trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu escravo, nem a tua escrava, nem o teu boi, nem o teu jumento, nem nenhum dos teus animais, nem o estrangeiro que mora contigo. Assim, o teu escravo e a tua escrava poderão descansar como tu. Recorda-te que foste escravo na terra do Egito e que o Senhor, teu Deus, te fez sair de lá com mão forte e braço estendido. Por isso, o Senhor, teu Deus, te mandou guardar o dia de sábado».
A aliança de Deus com o seu povo assim como os mandamentos dados por Deus a Moisés, não são coisas de um passado longínquo, mas realidades que se renovam continuamente. Deus compromete-se com os homens no presente e isso transforma o futuro em lugar de encontro e libertação.
Salmo 80 (81), 3-4.5-6ab.6c.8a.10-11b (R.2a)
O salmo 80 recorda a todos os que celebram a liturgia dominical que não podem cair na rotina de celebrações sem compromisso com a palavra de Deus e com os seus caminhos. Na liturgia a voz do Senhor não é uma voz do passado, mas palavra atual, dirigida à vida de quantos se encontram reunidos. A presença do Senhor é que nos faz aclamar, aplaudir e cantar.
LEITURA II 2 Cor 4, 6-11
Irmãos: Deus, que disse: «Das trevas brilhará a luz» fez brilhar a luz em nossos corações, para que se conheça em todo o seu esplendor a glória de Deus, que se reflete no rosto de Cristo. Nós trazemos em vasos de barro o tesouro do nosso ministério, para que se reconheça que um poder tão sublime vem de Deus e não de nós. Em tudo somos oprimidos, mas não esmagados; andamos perplexos, mas não desesperados; perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não aniquilados. Levamos sempre e em toda a parte no nosso corpo os sofrimentos da morte de Jesus, a fim de que se manifeste também no nosso corpo a vida de Jesus. Porque, estando ainda vivos, somos constantemente entregues à morte por causa de Jesus, para que se manifeste também na nossa carne mortal a vida de Jesus.
A luz de Cristo brilha naqueles que foram investidos no ministério do anúncio do evangelho, apesar das suas fragilidades. Deus manifesta a sua glória e o seu poder na fraqueza do homem que se dispõe a servir, como Paulo o evangelho.
EVANGELHO – Forma longa Mc 2, 23 – 3, 6
Passava Jesus através das searas, num dia de sábado, e os discípulos, enquanto caminhavam, começaram a apanhar espigas. Disseram-Lhe então os fariseus: «Vê como eles fazem ao sábado o que não é permitido». Respondeu-lhes Jesus: «Nunca lestes o que fez David, quando ele e os seus companheiros tiveram necessidade e sentiram fome? Entrou na casa de Deus, no tempo do sumo sacerdote Abiatar, e comeu dos pães da proposição, que só os sacerdotes podiam comer, e os deu também aos companheiros». E acrescentou: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. Por isso, o Filho do homem é também Senhor do sábado». Jesus entrou de novo na sinagoga, onde estava um homem com uma das mãos atrofiada. Os fariseus observavam Jesus, para verem se Ele ia curá-lo ao sábado e poderem assim acusá-l’O. Jesus disse ao homem que tinha a mão atrofiada: «Levanta-te e vem aqui para o meio». Depois perguntou-lhes: «Será permitido ao sábado fazer bem ou fazer mal, salvar a vida ou tirá-la?». Mas eles ficaram calados. Então, olhando-os com indignação e entristecido com a dureza dos seus corações, disse ao homem: «Estende a mão». Ele estendeu-a e a mão ficou curada. Os fariseus, porém, logo que saíram dali, reuniram-se com os herodianos para deliberarem como haviam de acabar com Ele.
Para Jesus a lei só faz sentido se estiver ao serviço do homem. Uma lei que oprime o homem é uma lei injusta. Até os mandamentos de Deus têm que servir para a libertação do homem, porque a lei foi feita para o homem e não o homem para a lei. Neste sentido o sábado é o dia para fazer o bem e para salvar.
Reflexão da Palavra
Estamos no capítulo cinco de Deuteronómio. Moisés reúne o povo para celebrar a lei, os dez mandamentos, entregues pelo Senhor no Horeb. Trata-se de uma celebração litúrgica com o objetivo de fazer memória, tornar presente e atualizar a aliança que Deus fez com o seu povo lá atrás no espaço e no tempo. De facto, Moisés tem o cuidado de dizer, “o Senhor, nosso Deus, concluiu esta aliança connosco, no Horeb” (Dt 5, 2). E adianta que, embora a reunião no sopé da montanha, se tenha realizado lá atrás no tempo, é “connosco que, estamos aqui todos vivos hoje”, “que o Senhor concluiu esta aliança” (Dt 5,3).
Reunido todo o povo para o memorial da aliança, Moisés recorda-lhes os mandamentos do Senhor que encontramos em Ex 20,2-17. Dos dez mandamentos, a leitura deste domingo destaca apenas o que se refere ao Sábado, o sétimo dia.
O desenvolvimento do texto da primeira leitura é interessante porque apresenta uma preocupação social relativamente ao cumprimento do descanso sabático e não uma intenção teológica como acontece no livro do Êxodo, onde se diz, “recorda-te do dia de sábado, para o santificar… porque em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que está neles, mas descansou no sétimo dia” (Ex 20,8.11).
O sábado é um dia santificado, “é o sábado do Senhor, teu Deus”, foi ele quem ordenou, “como te mandou o Senhor, teu Deus”. Uma ordem que beneficia todas as pessoas e animais “não farás nele qualquer trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu escravo, nem a tua escrava, nem o teu boi, nem o teu jumento, nem nenhum dos teus animais, nem o estrangeiro que mora contigo”. Trata-se de um direito social, “o teu escravo e a tua escrava poderão descansar como tu” e uma justificação histórica, tu também “foste escravo na terra do Egito” e não tratarás os escravos como foste tratado.
A aliança celebrada na primeira leitura, encontra no salmo um sinal de recusa por parte do povo. De facto, o salmista começa por convidar a aclamar, aplaudir, cantar e tocar instrumentos de festa, como um preceito divino para a festa da Lua-nova, mas logo se dá conta de que Deus tem uma denuncia a fazer. Uma voz profética faz ressoar no meio da assembleia o passado, o presente e o futuro da atuação de Deus e da resposta do povo. O Senhor libertou o seu povo da terra do Egito, “aliviei os teus ombros… soltei as tuas mãos… chamaste por mim e respondi-te…” e o povo “não quis ouvir-me”, “seguiram os seus caprichos”. O resultado não foi bom para o povo que vive dominado pelos inimigos. O Senhor, ainda assim, está disposto a mudar a sorte do seu povo se ele assumir outra postura, “se o meu povo me tivesse escutado… tivesse seguido os meus caminhos… num instante, Eu humilharia os seus inimigos”.
Desde a sua conversão que Paulo percebeu a importância do ministério apostólico, ministério do anúncio do Evangelho, do qual ele se considera dedicado servidor. Reconhece que anunciar o evangelho não é um “motivo de glória” (1Cor 9,16 )e, por isso, não merece qualquer recompensa, pois não o faz por sua própria decisão, foi-lhe dado, foi “investido neste ministério… por misericórdia”.
Este ministério é um tesouro que transportam “em vasos de barro”, na fragilidade e debilidade humanas, todos os que foram investidos, “para que se reconheça que um poder tão sublime vem de Deus e não de nós”. O conteúdo do tesouro é Cristo, a verdadeira luz que ilumina os corações. Do mesmo modo que Deus no início fez brilhar a luz “Deus, que disse: «Das trevas brilhará a luz»”, agora, nos tempos que são os últimos, “quem brilhou nos nossos corações” foi a “glória de Deus que se reflete no rosto de Cristo”.
Na fragilidade dos homens manifesta-se o poder de Deus que sustém todas as coisas em si e não em nós. Por isso, e só por isso, Paulo pode afirmar que a nossa vitória está onde se revela a nossa fragilidade “oprimidos, mas não esmagados”, “perplexos, mas não desesperados”, “perseguidos, mas não abandonados”, “abatidos, mas não aniquilados”. Do mesmo modo que trazemos em nós os sinais “da morte de Jesus”, trazemos também os sinais da “vida de Jesus” e podemos dizer “quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,10).
Os primeiros versículos do evangelho mostram como os fariseus transformam a realidade descrita por Marcos, numa situação manifestamente contra a lei do sábado. Quando se diz, “passava Jesus através das searas, num dia de sábado, e os discípulos, enquanto caminhavam, começaram a apanhar espigas”, não se está a referir a nenhum trabalho agrícola, realizado pelos discípulos em dia de Sábado, mas é assim que os fariseus entendem e disso questionam Jesus.
A citação de 1Sm 21,2,10, usada por Jesus, compara a fome de David e seus companheiros com a fome de Jesus e os seus discípulos, ao mesmo tempo que apresenta Jesus como o Messias esperado e anunciado a David. Anúncio este, que é completado mais à frente com a afirmação “o Filho do Homem” com quem Jesus se identifica e revela a sua superioridade em relação ao sábado, graças à sua condição divina, pois a lei do sábado foi dada por Deus na criação (Gn) e no mandamento referido na primeira leitura.
No relato da cura do homem que tem a mão paralisada, dá-se a mesma situação, em que a cura do homem é considerada um tratamento médico e, portanto, um trabalho proibido pela lei do sábado. Jesus, com gestos e palavras, chama a si a autoridade para interpretar a lei e mostra que esta pode ser interpretada a favor do homem e de modo a impedir que se cometam injustiças. Jesus, na sinagoga assume a atitude de quem ensina e não a do discípulo que vem para aprender.
Perante o olhar atento dos fariseus, Jesus coloca o homem no meio da Sinagoga. Vir para o meio significa sair da periferia, da escuridão, do esquecimento, da indiferença e mostrar-se para ser visto por todos. A cena montada por Jesus requer um esclarecimento, que surge em forma de pergunta: “será permitido ao sábado fazer bem ou fazer mal, salvar a vida ou tirá-la?”. A pergunta é dirigida aos fariseus que estão habituados a decidir o que é e o que não é permitido fazer. Eles ficam perplexos e sem resposta porque não estão à espera que se coloque no mesmo nível fazer o bem e salvar a vida. Fazer o bem, para os fariseus, pode esperar mas salvar a vida é urgente. O homem pode vir outro dia para ser curado, não está em perigo de vida. Mas Jesus entende a sua situação como uma prioridade, porque “o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado”.
As palavras de Jesus põem a descoberto a dureza do coração dos fariseus que, assim, ficam desprotegido e sem argumentos. Jesus cura o homem e arrisca-se a ser condenado, o que os fariseus se apressam a decidir “logo que saíram dali, reuniram-se com os herodianos para deliberarem como haviam de acabar com Ele”.
Meditação da Palavra
A lei, seja ela qual for, só tem sentido se favorecer a resolução dos problemas concretos e se ajudar o homem a ser livre e feliz sem fazer distinção nem discriminação de qualquer espécie.
A lei do sábado determina a santificação deste dia, porque é “o sábado do Senhor, teu Deus”, é uma lei que procura favorecer a dignidade do homem que não vive para trabalhar, trabalha para viver, ao mesmo tempo que dá a todos, senhores e escravos, pais e filhos, homens e animais, o mesmo direito ao descanso.
A interpretação dos fariseus acrescenta a esta lei base, requisitos que ela não prevê e que em vez de favorecerem o homem, o oprimem e esmagam, com as proibições e obrigações que em nada têm a ver com a determinação de Deus. Deste modo, a lei, em vez de libertar, aprisiona e em vez de abrir caminho à felicidade traz a tristeza porque mantém pessoas na sombra, na margem, na periferia da vida, sem qualquer interferência ou participação nas decisões comuns e mesmo nas decisões da sua própria vida. É o caso do homem da mão paralisada.
Os fariseus colocam a lei em primeiro lugar e Jesus vem colocar o homem no meio, para que se veja o que devia ser evidente. Aquele homem é uma pessoa de direitos que não sairá da sombra, não tomará decisões importantes na sua vida, não participará nunca nas decisões fundamentais da sociedade, porque está marginalizado, embora esteja dentro da Sinagoga. Assim, o lugar onde ressoa a Palavra de Deus que tem poder para libertar e salvar, torna-se o lugar onde algumas pessoas, por norma os mais desfavorecidos, ficam na sombra, sem vida, sem liberdade, sem direitos, apenas por causa de uma lei que perdeu o seu verdadeiro sentido. Estas palavras ressoam no mundo de hoje, a grande sinagoga onde homens e mulheres, crianças e idosos, estrangeiros e residentes ficam esquecidos na margem da vida.
É por causa de situações como esta que o salmo 80 faz referência à voz de Deus que ressoa num dia de festa para mostrar que as aclamações, os aplausos, os cânticos e a música em honra do Senhor, não fazem sentido se as decisões de cada dia não correspondem à vontade do mesmo Deus e não significam que seguimos pelos seus caminhos.
A festa, assim como o sábado para os judeus ou o domingo para os cristãos, só têm sentido, só são dias consagrados ao Senhor se forem manifestação da ação que Deus opera em cada homem através da aceitação da sua vontade no quotidiano. Caso contrário, a festa não tem sentido porque não é uma festa em honra do Senhor, mas uma realidade puramente humana, pois Deus fica fora da festa como fica fora da vida. Em qualquer momento, no entanto, Deus está disposto a libertar o homem logo que este decida seguir pelos seus caminhos. Tanto o homem da mão ressequida como os fariseus estão necessitados da ação libertadora de Jesus. A diferença entre eles é que o homem escuta Jesus e faz o que este lhe diz e os fariseus permanecem de princípio a fim na “dureza dos seus corações”, o que entristece Jesus ao ponto de os olhar com indignação.
Também nós, os que celebramos o domingo, podemos ser pessoas duras de coração de tal modo que as nossas celebrações se tornam rotinas sem compromisso, onde faltam gestos de libertação e onde a voz de Deus ressoa como denúncia da nossa incapacidade de salvar e dignificar os que se encontram nas sombras da existência. Há situações de injustiça à nossa volta que requerem dos cristãos uma denúncia enérgica. Se não denunciamos as injustiças praticadas contas os mais pobres, os mais idosos, os estrangeiros, não celebraremos dignamente a festa do domingo.
Conscientes de que o dia consagrado ao Senhor é para nós o domingo, prestemos atenção aos gestos e palavras de Jesus para as reproduzirmos na nossa vida diária, na relação com os irmãos e na relação com Deus, tanto na vida familiar como social e comunitária, para que ninguém fique escondido na sombra e impedido de viver e participar na comunhão fraterna. Para que os injustiçados encontrem quem os defenda e as injustiças sejam denunciadas e trazidas para a luz do dia a fim de que todos as vejam.
Rezar a Palavra
Faz brilhar sobre nós, Senhor a luz do teu rosto, para que vendo as tuas obras e escutando a tua voz, realizemos o bem em favor de todos os que estão esquecidos e libertemos com a nossa presença fraterna os que vivem oprimidos por leis iníquas que produzem escravos e não filhos.
Compromisso semanal
Iluminado pelo olhar de Cristo, purifico o meu coração de tudo o que me impede de libertar e salvar os irmãos cativos de leis injustas e desumanas.