Mistagogia da Palavra
Estamos no penúltimo domingo do ano litúrgico. Hoje surge o tema escatológico, que, de acordo com a tradição bíblica, é tratado em linguagem apocalíptica. Escatologia é uma palavra de origem grega que significa “estudo das realidades últimas.” Mas a escatologia cristã não se reduz nem coincide totalmente com as últimas realidades em termos cronológicos, mas tem duas dimensões: presente e futura. Isto é, o futuro já começou porque o início da última hora dá-se no momento presente, desde que, com a primeira vinda, Jesus inaugurou o reino de Deus. É a dimensão actual. E, contudo, no fim dos tempos, com a segunda vinda de Cristo, terá lugar a consumação gloriosa do que já começou agora. É a dimensão futura e última.
O género apocalíptico é um género literário bíblico com linguagem própria. Nestas descrições não se deve dar valor literal a cada pormenor ou fenómeno cósmico. As imagens catastróficas, próprias deste género são linguagem simbólica ao serviço de uma ideia base: O mundo não é eterno, terá um fim, como a humanidade, a quem se oferece a salvação de Deus, por meio de Cristo, que voltará no fim dos tempos, em glória e poder.
A lª leitura é da Profecia de Daniel. Texto escrito no sec. II antes de Cristo, durante a terrível perseguição de Antíoco IV ao povo judeu. O profeta anuncia a salvação do povo e que a última palavra de Deus é a vida e não a morte: será a ressurreição dos que dormem no pó e a retribuição individual segundo os méritos próprios. O trecho ensina-nos que nenhuma canseira será vã. Nenhuma lágrima, nenhum sofrimento, nenhum sacrifício se perderá.
A 2ª leitura é da Epístola aos Hebreus. Com um só sacrifício, oferecido em expiação pelos pecados, Cristo obteve o próprio triunfo e a perfeição dos cristãos que são santificados, isto é consagrados a Deus por aquele mesmo sacrifício. Obteve isto de uma vez para sempre. Este único sacrifício faz com que Cristo alcance a vitória sobre os inimigos até ao fim dos séculos.
O Evangelho é segundo São Marcos. É o anúncio da segunda vinda de Cristo com poder e majestade. Secção cheia de imagens e citações do Antigo Testamento, cujos termos não se devem entender literalmente. O que se realça é a profunda comoção que essa vinda do Filho do Homem, título messiânico referido a Jesus, causará no homem, na história e na criação. A parábola da figueira recomenda discernimento e espera vigilante. A figueira cujas folhas brotam não é sinal de terror, mas de salvação trazida pelo Senhor. Ele reunirá no seu reino os eleitos, vindos dos quatro pontos cardeais.
A Palavra do Evangelho
Diante da Palavra
Vem Espírito Santo, insufla em mim uma confiança amorosa, filial, no Deus Trindade, de que és o sumo amante.
Evangelho Mc 13, 24-32
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Naqueles dias, depois de uma grande aflição, o sol escurecerá e a lua não dará a sua claridade; as estrelas cairão do céu e as forças que há nos céus serão abaladas. Então, hão-de ver o Filho do homem vir sobre as nuvens, com grande poder e glória. Ele mandará os Anjos, para reunir os seus eleitos dos quatro pontos cardeais, da extremidade da terra à extremidade do céu. Aprendei a parábola da figueira: quando os seus ramos ficam tenros e brotam as folhas, sabeis que o Verão está próximo. Assim também, quando virdes acontecer estas coisas, sabei que o Filho do homem está perto, está mesmo à porta. Em verdade vos digo: Não passará esta geração sem que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão. Quanto a esse dia e a essa hora, ninguém os conhece: nem os Anjos do Céu, nem o Filho; só o Pai».
Caros amigos e amigas, o Evangelho de hoje parece pejado de ameaças e de medos e, no entanto, o Senhor do Sol e das Estrelas anuncia-se como a única fonte de Luz, onde buscar a vida. Aquele que n’Ele confia não teme!
Interpelações da Palavra
Uma grande aflição
Os temas apocalípticos têm sido algo de muito especulado ao longo dos tempos. Tal como hoje, estes temas fortes foram caros à “comunicação social” daquele tempo. Sobre ele foram sendo construídos detalhes exuberantes, prognósticos assombrosos, e marcadas datas que tantas vezes servem apenas para amedrontar e atingir fins perversos. E no entanto, nesta descrição nada nos pode fazer temer, nem tremer, pelo contrário!
Marcos vai buscar à tradição do Antigo Testamento um aparecimento de Deus emoldurado por sinais nas forças cósmicas e este colorido de movimentações angélicas quer dar-nos a precepção sobre o poder do Filho do Homem, para cuja identidade ele vai conduzindo os leitores. Marcos diz-nos claramente que a nossa adesão a Ele, faz-nos seus eleitos e os seus eleitos nada têm que temer porque são convocados por Ele
O velho mundo tem de cair
Na verdade é preciso que o mundo antigo caia. Afastemos especulações estéreis sobre um incerto ‘quando’. O mundo novo que Deus quer fazer connosco é mesmo HOJE! Inundado de esperança e de confiança porque Deus é novo, e do sepulcro aberto de Cristo sai uma vida tão potente capaz de suster este mundo novo. Jesus quer dizer-nos que não nos acomodemos às luzes temporárias e intermitentes deste mundo, ao estrelato que definha e morre, às caducas forças do céu. Portanto, amigos e amigas, ergamos a fronte e deixemos marejar os olhos com a Luz da sua Palavra, só ela tem a cor da novidade e a chave que nos fará livres. Saboreemos o requinte da sua mesa, o alimento da sua presença, façamo-nos com Ele Eucaristia, deixemo-nos (re)fazer, ser novos com(o) Ele. Este mundo novo é um presente e um desafio
Não permitamos que os golpes da violência o adoeçam; não consintamos que as rugas da tristeza o afeiem, não o poluamos com palavras venenosas, afastemos dele os agoiros do pessimismo, e a radioactividade das mágoas estagnadas. Não o deixemos envelhecer, não envelheçamos com ele. Descerremos o gradeamento do olhar às coisas novas que Deus faz, ao milagre deslumbrante de cada dia e à preciosidade dos seus detalhes. Adornemos este mundo novo com as flores dos nossos gestos de bondade, perfumemos a atmosfera com a fragrância cara do amor.
O Filho do homem está perto
Talvez a parte mais bela do texto fique atafulhada com os escombros das estrelas caídas, a cegueira do sol e o vazio do firmamento e, no entanto, as estrelas serão as passadeiras dos eleitos e o horizonte será a alegria do rosto que todo o olhar anseia contemplar. O que nos dá força é esta frase verdadeiramente repleta de conforto e de esperança que pode alvoroçar a nossa alegria e a nossa coragem: “Ele está perto, está mesmo à porta” ou seja, Ele está connosco! Basta abrir a porta para O recebermos e deixarmos que a sua Vida nos dê a vida. E porque Deus não nos abandona, então em vez de continuarmos a especular sinais, tornemo-nos nós próprios sinais para os nossos contemporâneos que continuam a colocar as suas esperanças nas estrelas fugazes e nas forças caducas deste mundo, tornemo-nos sinais e força de fermento da Palavra que não passará tornemo-nos evidências credíveis do Evangelho!
Rezar a Palavra e contemplar o Mistério
Senhor do tempo e da cor de cada instante,
Há dias de grande aflição no meu tempo e noites de escuridão neste espaço,
Mas só Tu és a serenidade que rompe com o medo e a dúvida,
Só Tu és a luz que afasta a solidão e o desespero.
Na aflição, no escuro, no ofusco e na fragilidade que Eu te veja chegar, Senhor,
Que eu Te sinta perto, numa abraço que me acarinha e me faz ser.
Viver a Palavra
Vou escolher este tempo como único para que aconteça luz em cada gesto.