Mistagogia da Palavra

Ao ouvir o Evangelho deste domingo, podemos correr um perigo: pensar que o aviso de Cristo sobre os perigos da riqueza é para os ricos de facto, e não para quantos querem ser discípulos e herdar a salvação de Deus, entrando no seu reino.
Trata-se de um ensinamento universal, pois todos temos “alma de rico”: mesmo os pobres que estão apegados ao que pouco possuem. O apego aos bens endurece o coração, dificulta as relações com os outros, esfria a fraternidade humana, fecha-nos à partilha com os necessitados, entorpece a solução do problema da fome e da pobreza no mundo, despersonaliza o indivíduo ao torná-lo escravo e não senhor do seu dinheiro – seja muito ou pouco – e, finalmente a nível cristão torna impossível o seguimento de Cristo. A pobreza que Jesus propõe, com a graça de Deus liberta-nos da sedução da riqueza e dá-nos uma disponibilidade total perante Deus e uma abertura generosa aos irmãos.
A lª leitura é do Livro da Sabedoria. É uma reflexão sobre a escolha feita por Salomão, que soube pedir a sabedoria de Deus e não qualquer outro dom. Quem tem esta sabedoria aprende a dar às coisas o valor que têm, faz escolhas em conformidade com o projecto de Deus e não perde nada, ganha tudo, encontra a verdadeira felicidade.
A 2ª leitura é da Epístola aos Hebreus. Antes de mais a palavra de Deus é viva e eficaz. Quando sai da boca do Senhor produz sempre o efeito desejado, porque tem em si a vida e a força de Deus. Penetra no mais íntimo de quem a escuta e é juiz de todas as nossas acções. A palavra que nos deixa indiferentes e tranquilos, que não mexe com os nossos hábitos, ou não é palavra de Deus ou não a deixamos penetrar no nosso íntimo.
O Evangelho é segundo São Marcos. Para seguir o Mestre, é preciso ter a coragem de desapegar-se dos bens que se têm. Na primeira parte, vai ter com Jesus um homem, que já cumpre os mandamentos, mas que quer mais. Jesus propõe-lhe que venda os seus bens, dê o produto aos pobres e depois siga-O. Não se trata dum convite a desprezar ou a destruir ou a amaldiçoar os bens deste mundo, mas sim dum convite a usá-los correctamente, pondo-os ao serviço do projecto de Deus e ao serviço dos necessitados. O homem não tem coragem para aceitar a proposta e retira-se triste. A segunda parte refere-se às considerações que Jesus tece sobre o perigo das riquezas. É esse o obstáculo mais grave que impede alguém de se tornar cristão. Finalmente Jesus enumera o prémio que terão os que O seguirem com desprendimento total.

A Palavra do Evangelho

Diante da Palavra
Vem Espírito Santo, liberta o meu coração das amarras de ambições, da ganância e avidez desordenadas. 

Evangelho    Mc 10, 17-30
Naquele tempo, ia Jesus pôr-Se a caminho, quando um homem se aproximou correndo, ajoelhou diante d’Ele e perguntou-Lhe: «Bom Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?». Jesus respondeu: «Porque Me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus. Tu sabes os mandamentos: ‘Não mates; não cometas adultério; não roubes; não levantes falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe’». O homem disse a Jesus: «Mestre, tudo isso tenho eu cumprido desde a juventude». Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu: «Falta-te uma coisa: vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me». Ouvindo estas palavras, anuviou-se-lhe o semblante e retirou-se pesaroso, porque era muito rico. Então Jesus, olhando à sua volta, disse aos discípulos: «Como será difícil para os que têm riquezas entrar no reino de Deus!». Os discípulos ficaram admirados com estas palavras. Mas Jesus afirmou-lhes de novo: «Meus filhos, como é difícil entrar no reino de Deus! É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus». Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros: «Quem pode então salvar-se?». Fitando neles os olhos, Jesus respondeu: «Aos homens é impossível, mas não a Deus, porque a Deus tudo é possível». Pedro começou a dizer-Lhe: «Vê como nós deixámos tudo para Te seguir». Jesus respondeu: «Em verdade vos digo: Todo aquele que tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras, por minha causa e por causa do Evangelho, receberá cem vezes mais, já neste mundo, em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, juntamente com perseguições, e, no mundo futuro, a vida eterna».

Caros amigos e amigas, a vida eterna é um dom, uma oferta que nunca a melhor das nossas boas obras poderá conquistar. Deus, que nos ama com um amor quase impossível, é que multiplica a beleza semeada em nós.

Interpelações da Palavra

Que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?

Aquele homem, rico e justo, cumpria os mandamentos até ao mínimo pormenor mas, mesmo assim, não se sentia satisfeito. No cofre-forte da sua vida falta a pérola mais preciosa: a felicidade. Num grito de desabafo, encorajado pelo jovem Mestre que passa no seu caminho, pede-lhe o que deve acrescentar à sua longa bagagem de méritos para ganhar a vida eterna. Procurava algo mais para fazer, alguma taxa a pagar, um carimbo a acrescentar às boas acções.

Vai, vende, dá aos pobres e terás um tesouro no Céu.
Depois, vem e segue-Me

Jesus propõe-lhe então a folia do seguimento, numa vida partilhada como irmãos. Em vez de carregá-lo com mais um fardo, pede-lhe para deixar e dar. A sabedoria divina não indica coisas a fazer, mas alguém a quem seguir. O outro que caminha nos mesmos passos é sempre o maior tesouro. Jesus não apregoa a pobreza, mas convida à partilha.
Diante da resposta, o jovem rico tem medo, o seu rosto escurece-se como a noite, e ele fica sepultado na tristeza. Não acreditou no olhar de amor de Jesus, não se encheu da audácia de voar e ser livre. Doravante continuará honesto mas triste, cumprirá os mandamentos da lei mas não terá o dom da alegria, escolheu o ter em vez de ser, acreditou no tesouro das coisas e não no tesouro das pessoas, quis ser ele a gerir o mérito das suas boas acções, em vez de se entregar à misericórdia de Deus. Como há tantos cristãos rectos, mas infelizes, até subjugados pelo peso das leis… Não compreendem que a felicidade não depende dos bens, não depende até de um acumular méritos, mas dos rostos que se encontram, de abraços que se dão, de pobres que se salvam, do acolhimento humilde da gratuidade de Deus.

Aos homens é impossível, mas não a Deus

Será escandalosa a proposta de Jesus? É claro que fazer passar camelos no buraco de uma agulha, mudar montanhas e pô-las a saltar como carneiros, reconstruir o templo em 3 dias… não é coisa que a ciência resolva ou o homem consiga. No entanto, Deus tem esta paixão pelo impossível, como se a eternidade pudesse caber nos gestos mais simples e pequenos. As propostas divinas metem sempre medo porque, ainda que muito ricos, somos demasiado pequenos para a eternidade. E esquecemos que a proposta é totalmente gratuita, dada infinitamente a todos nós, mendigos de fragmentos de luz. Ainda hoje, Ele convida a sermos companheiros de viagem, partilhando o sonho da entrega total pelo outro, tal como Jesus que «de rico que era se fez pobre para nos enriquecer com a sua pobreza».
Seguir Jesus não é impossível, não é um caminho de miséria, contrariada de sacrifícios, mas é um percurso que multiplica a vida, faz florescer irmãos, alarga o coração. Jesus não propõe a pobreza, mas a comunhão multiplicada até ao infinito. Assim, caros amigos e amigas, cresce o Evangelho!

Rezar a Palavra e contemplar o Mistério

Senhor, há uma leveza na tua mensagem que me impele a libertar-me para te acolher,
Há um fascínio na simplicidade, há um desejo de me deixar possuir mais que possuir,
Há uma grandeza na minha pequenez, quando te reconheço como meu Deus!
Há uma multiplicação da minha vida, quando consinto em a partilhar.
Quero seguir-te, Senhor, quero encontrar em Ti a riqueza assegurada da vida,
Quero encontrar nos irmãos a terra onde verdadeiramente germina o dom que me entregas.

Viver a Palavra
Vou considerar quais as seguranças e motivações que gerem a minha vida.