Mistagogia da Palavra
A liturgia deste domingo fala-nos da indissolubilidade do matrimónio. Conforme o ensino de Jesus esta indissolubilidade não surge de uma lei exterior ao mesmo, mas da sua própria natureza. Homem e mulher são feitos um para o outro, em absoluta igualdade, vão unir-se em matrimónio constituem “uma só carne” por disposição divina. Por isso conclui: “Não separe o homem o que Deus uniu”. São Paulo acrescentará depois a referência cristológica e eclesial ao amor dos esposos cristãos, que constitui um sacramento e significa o amor de Cristo à Igreja.
A 1ª leitura é do Livro do Génesis. Adão descobre na mulher um ser semelhante a si. O simbolismo da costela e o primeiro canto de amor tem por objectivo acentuar a igualdade entre os dois seres e o fim para o qual Deus os criou: o amor. É por amor que eles abandonarão a sua casa para formar uma só carne, isto é um só ser e, para com Deus, dar a vida.
A 2ª leitura é da Epístola aos Hebreus. Jesus é grande, sem dúvida, mas é também um de nós. Não fez de conta que era homem. Ele sentiu os nossos afectos e as nossas emoções, passou por todas as nossas experiências, incluindo o sofrimento e a morte. Num guia assim pode-se realmente confiar.
O Evangelho é segundo São Marcos. Alguns fariseus fazem uma pergunta a Jesus sobre a licitude ou ilicitude do divórcio, e Ele responde-lhes afirmando rotundamente a indissolubilidade do casamento. Para isso remete-Se ao projecto original de Deus sobre a união do homem e da mulher. E, com a autoridade da sua palavra, Cristo declara abolida a lei de Moisés, ao tomar patente a primeira intenção de Deus em relação aos sexos, ao matrimónio e à família. Projecto divino que não tolera a ruptura do vínculo matrimonial pelo divórcio, como claramente o Senhor explica aos discípulos em casa. A leitura termina com uma referência de Jesus e as crianças, que Ele recebe, abraça e abençoa, e declara: “Quem não acolher “o reino de Deus como uma criança não entrará nele”.
A Palavra do Evangelho
Evangelho Mc 10, 2-16
Naquele tempo, aproximaram-se de Jesus uns fariseus para O porem à prova e perguntaram-Lhe: «Pode um homem repudiar a sua mulher?». Jesus disse-lhes: «Que vos ordenou Moisés?». Eles responderam: «Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio, para se repudiar a mulher». Jesus disse-lhes: «Foi por causa da dureza do vosso coração que ele vos deixou essa lei. Mas, no princípio da criação, ‘Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne’. Deste modo, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu». Em casa, os discípulos interrogaram-n’O de novo sobre este assunto. Jesus disse-lhes então: «Quem repudiar a sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro, comete adultério». Apresentaram a Jesus umas crianças para que Ele lhes tocasse, mas os discípulos afastavam-nas. Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes: «Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis: dos que são como elas é o reino de Deus. Em verdade vos digo: Quem não acolher o reino de Deus como uma criança, não entrará nele». E, abraçando-as, começou a abençoá-las, impondo as mãos sobre elas.
Caros amigos e amigas, no centro do Evangelho de hoje não está o rigor frio da lei, mas está o amor de Deus como força geradora da vida.
Interpelações da Palavra
A dureza do coração
Talvez a mentalidade escrupulosa e religiosa dos fariseus os tivesse conduzido àquela pergunta. Mas a questão queria encostar Jesus à parede, pondo em conflito a vida e a norma, o homem e o sábado, o lícito e o proibido, a pessoa e a lei.
Jesus não evita a pergunta matreira, mas a sua resposta ultrapassa a muralha da legislação. De facto, Deus nunca se deixa aprisionar nos nossos estéreis limites, mas escancara a liberdade e o sonho. Tal como o profeta Ezequiel, Jesus deseja «arrancar do nosso peito o coração de pedra para repor o coração de carne».
«No princípio da criação»
A resposta de Jesus conduz à manhã das origens, leva ao sopro dos inícios, antes da dureza do coração, na frescura e pureza do dia em que Deus criou o homem e a mulher, no coração do éden e na fonte da beleza.
No princípio, Deus viu que «não é bom que o homem esteja só». O pecado original, o primeiro inimigo da vida, é a solidão. Por isso, Adão e Eva são um para o outro, são salvação que caminha lado a lado, são uma só carne e vida.
No início está o excesso apaixonado de amor de Deus que cria e gera a vida! Está a folia de um sonho, o “Cântico dos cânticos”, a poesia fecunda e indestrutível de que “o amor é para mim e eu sou para o amor”. Deus não suporta a solidão. “Nem sequer Deus pode estar só” (Turoldo). Ele mesmo é em si relação, êxtase, êxodo, comunhão. Deus tem esta paixão de unir. Ele é aquele que une, enquanto o inimigo – o Diabo – é aquele que separa, divide, é o pai da solidão. Se o paraíso é o abraço do encontro e a intimidade da comunhão, o inferno é o sufoco da solidão, o naufrágio do isolamento, o mundo fechado de silêncio, sem alguém que nos chame e faça viver.
«Não separe o homem o que Deus uniu»
Constatamos ainda hoje que existe uma distância entre o sonho de Deus e o nosso coração. Também nós destruímos a utopia divina, contaminamos o perfume da manhã da criação. Sempre que há uma ruptura entre pessoas, entre um casal, entre irmãos, entre famílias e amigos, entre vizinhos e colegas, sempre que há uma separação, Deus sai derrotado! E mesmo assim, apesar da crise e da traição, o sonho belo e genuíno permanece: há uniões que salvaguardam o devaneio de Deus! O convite de Jesus é regressar ao sonho, ao anúncio de que o amor é mais forte do que a morte e a separação, de que o amor verdadeiro supera a ruptura e dura sempre, de que o coração é capaz de um sonho que não desvanece de madrugada à sombra da dureza da lei.
No fim fica o abraço de Jesus às crianças, apertando-as ao coração e abençoando-as. Talvez a revelar que o mais pequeno abraço é sempre uma pequena salvação, próxima e quotidiana. Talvez a mostrar que também nós, feitos de terra e de sol, de húmus e de eternidade, somos feitos de comunhão, para o abraço, capazes de Evangelho!
Rezar a Palavra e contemplar o Mistério
Eu te bendigo, ó Pai, porque no princípio está o amor. Tu és o princípio!
Somos feitos de terra, do sopro dos teus sonhos, e do teu olhar maravilhado,
Quero olhar o mundo e os seres, como um presente nupcial, a abarrotar de encanto…
Eu te bendigo, ó Pai, porque no meu caminho está o amor. Tu és o caminho!
Somos portadores do teu mistério trinitário, sedentos de progressão e de relações.
Quero conjugar as minhas mãos e o meu coração na obra da comunhão, que me dispara para ti.
Eu te bendigo, ó Pai, porque no horizonte está o amor. Tu és a meta e nos seduzes o olhar!
Quero dar os meus braços ao teu abraço que me traz tantos abraços para consumar.
Viver a Palavra
No meio de qualquer crise de divisão, vou encontrar no amor de Deus força para construir a comunhão.