A tentação de ser dono

A vida, tão precária e passageira, é um empréstimo que se hipoteca com as decisões de cada dia. Julgar-se dono é o princípio para acumular dívida sobre dívida, gastando mal tudo o que apenas é emprestado. É também o caminho para a desgraça.
Não fazer frutificar os bens que foram emprestados para gerir é também uma opção de consequências incalculáveis.
Procurar o bem, o que é justo, o que dignifica, o que enriquece, é a decisão que faz a vinha produzir fruto e encontrar alegria em dar ao dono da vida os frutos que lhe pertencem.

LEITURA I Is 5, 1-7

Vou cantar, em nome do meu amigo, um cântico de amor à sua vinha. O meu amigo possuía uma vinha numa fértil colina. Lavrou-a e limpou-a das pedras, plantou-a de cepas escolhidas. No meio dela ergueu uma torre e escavou um lagar. Esperava que viesse a dar uvas, mas ela só produziu agraços. E agora, habitantes de Jerusalém, e vós, homens de Judá, sede juízes entre mim e a minha vinha: Que mais podia fazer à minha vinha que não tivesse feito? Quando eu esperava que viesse a dar uvas, porque é que apenas produziu agraços? Agora vos direi o que vou fazer à minha vinha: vou tirar-lhe a vedação e será devastada; vou demolir-lhe o muro e será espezinhada. Farei dela um terreno deserto: não voltará a ser podada nem cavada, e nela crescerão silvas e espinheiros; e hei de mandar às nuvens que sobre ela não deixem cair chuva. A vinha do Senhor do Universo é a casa de Israel, e os homens de Judá são a plantação escolhida. Ele esperava retidão e só há sangue derramado; esperava justiça e só há gritos de horror.

O cântico da vinha é um poema em que o Senhor denuncia as injustiças que se praticam diariamente em Israel. O Senhor rodeia de cuidados o seu povo para que aprendam a cuidar-se mutuamente no amor e o que acontece é a injustiça. Em vez dos frutos doces do amor o Senhor encontra agraços, frutos azedos do egoísmo.

Salmo responsorial Sl 79 (80), 9.12.13-14.15-16.19-20 (R. Is 5, 7a)

O salmo reconhece a catástrofe que se abateu sobre o povo depois de o Senhor denunciar e castigar as injustiças praticadas. O salmista suplica ao Senhor que volte atrás na sua decisão, “vinde de novo, olhai dos céus e vede”, “fazei-nos viver”, “fazei-nos voltar”, “iluminai o vosso rosto e seremos salvos”.

LEITURA II Flp 4, 6-9

Irmãos: Não vos inquieteis com coisa alguma. Mas, em todas as circunstâncias, apresentai os vossos pedidos diante de Deus, com orações, súplicas e ações de graças. E a paz de Deus, que está acima de toda a inteligência, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus. Quanto ao resto, irmãos, tudo o que é verdadeiro e nobre, tudo o que é justo e puro, tudo o que é amável e de boa reputação, tudo o que é virtude e digno de louvor é o que deveis ter no pensamento. O que aprendestes, recebestes, ouvistes e vistes em mim é o que deveis praticar. E o Deus da paz estará convosco.

Paulo reconhece que há problemas na comunidade de Filipos, no entanto, alerta os cristãos para que não se deixem afetar pelos problemas, mas procurem a paz em Deus e acima de tudo procurem o que há de bom em vez de olharem para o que há de mal entre eles.

EVANGELHO Mt 21, 33-43

Naquele tempo, disse Jesus aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo: «Ouvi outra parábola: Havia um proprietário que plantou uma vinha, cercou-a com uma sebe, cavou nela um lagar e levantou uma torre; depois, arrendou-a a uns vinhateiros e partiu para longe. Quando chegou a época das colheitas, mandou os seus servos aos vinhateiros para receber os frutos. Os vinhateiros, porém, lançando mão dos servos, espancaram um, mataram outro, e a outro apedrejaram-no. Tornou ele a mandar outros servos, em maior número que os primeiros. E eles trataram-nos do mesmo modo. Por fim, mandou-lhes o seu próprio filho, dizendo: ‘Respeitarão o meu filho’. Mas os vinhateiros, ao verem o filho, disseram entre si: ‘Este é o herdeiro; matemo-lo e ficaremos com a sua herança’. E, agarrando-o, lançaram-no fora da vinha e mataram-no. Quando vier o dono da vinha, que fará àqueles vinhateiros?». Eles responderam: «Mandará matar sem piedade esses malvados e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entreguem os frutos a seu tempo». Disse-lhes Jesus: «Nunca lestes na Escritura: ‘A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; tudo isto veio do Senhor e é admirável aos nossos olhos’? Por isso vos digo: Ser-vos-á tirado o reino de Deus e dado a um povo que produza os seus frutos».

Os vinhateiros da parábola são os chefes do povo que estão irritados com Jesus porque expulsou os vendedores do templo e anuncia um reino que não se ajusta aos critérios deles. A única solução que encontram para se tornarem donos do reino é matar Jesus. Com esta parábola e a sua explicação, Jesus denuncia as suas intenções e redige uma sentença a partir das conclusões que eles próprios tiram.

Reflexão da Palavra

No início do capítulo cinco de Isaías encontra-se o texto da primeira leitura, conhecido como o “Cântico da vinha”. É frequente, no Antigo Testamento, a imagem da vinha para falar de relação entre Deus e o seu povo, como pode ver-se no salmo 79 que se canta também neste domingo.

Com este cântico Isaías não pretende apresentar a difícil tarefa do agricultor no cuidado pela vinha, descrição que aparece no primeiro plano do texto. Também não é sua intenção apresentar o fracasso da relação amorosa entre um agricultor e a sua noiva, numa leitura mais idílica. O “Cântico da vinha” pretende levar o leitor até à difícil relação entre Deus e o seu povo. Israel é a vinha do Senhor. O Senhor cuida da sua vinha, proporcionando-lhe todos os cuidados necessários, rodeando-a de toda a proteção, mas a vinha não dá fruto. Israel, apesar de se ver alvo de toda a atenção por parte do Senhor, verdadeiro dono da vinha, não corresponde como deve, dando o fruto desejado e esperado.

O amor do Senhor pela sua vinha, não é um amor platónico, um puro sentimento, mas verdadeira dedicação. O Senhor fez obra, agiu, atuou em favor do seu povo “lavrou-a e limpou-a das pedras, plantou-a de cepas escolhidas. No meio dela ergueu uma torre e escavou um lagar”. Não foram apenas sentimentos bonitos nem palavras enganadoras. Foi um amor verdadeiro, dedicado, provado com obras. À dedicação do Senhor, Israel em vez de pagar com uvas, os frutos doces de um amor verdadeiros, paga com agraços, frutos azedos da indiferença e da rejeição.

Em que consistem os frutos, este amor esperado por Deus da parte do seu povo? Consiste na justiça. Em resposta ao seu amor, Deus espera que o Povo pratique a justiça para com o próximo. Não espera que o amem a ele, mas que amem o próximo ao ponto de praticarem a justiça e a retidão uns com os outros. No entanto, a resposta foi “só há sangue derramado e só há gritos de horror”.

Perante isto, Deus prepara um julgamento, no qual os habitantes de Jerusalém e de Judá, todo o povo, vão servir de juízes entre Deus e o seu povo. O julgamento é simples e condensa-se numa pergunta: “que mais podia fazer à minha vinha que não tivesse feito?”. O silêncio dos juízes, porque são eles o réu que está a ser julgado, são eles o povo que produziu agraços em vez de uvas, atrai a sentença do Senhor sobre eles: “vou tirar-lhe a vedação e será devastada; vou demolir-lhe o muro e será espezinhada. Farei dela um terreno deserto: não voltará a ser podada nem cavada, e nela crescerão silvas e espinheiros”.

Sentindo a desgraça da vinha, o salmista invoca o Senhor, reconhecendo-o como o “Pastor de Israel”, para depois apresentar o povo como uma vinha destruída e escarnecida pelos inimigos. Recorda que a vinha pertence ao Senhor, que foi ele quem a plantou e lhe preparou o terreno, de tal modo que a vinha cresceu a dominou até ao mar. A vinha está destruída, devastada pelos animais selvagens e o salmista pergunta ao Senhor: “porque derrubaste os seus muros?”. No final suplica ao Senhor que volte atrás na sua decisão: “olhai dos céus e vede, visitai esta vinha. Protegei a cepa que a vossa mão direita plantou, o rebento que fortalecestes para Vós”.

A vida em comunidade é muitas vezes ocasião para alguns desentendimentos e discórdias. Paulo recorda aos filipenses que não podem permitir que as dificuldades os perturbem e exorta-os a procurar, na oração, a paz que vem de Cristo. Chamados a viver na alegria, os cristãos não podem permitir que as dificuldades se sobreponham ao amor fraterno, porque o Senhor está próximo, está no coração da comunidade e é ele quem guarda os corações e os pensamentos de cada um.

A preocupação de todos deve ser a busca de tudo “o que é verdadeiro e nobre, tudo o que é justo e puro, tudo o que é amável e de boa reputação, tudo o que é virtude e digno de louvor”, pois foi isso que aprenderam de Paulo e devem praticar.

Depois de responder aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos com a parábola dos dois filhos que foi escutada no último domingo, Jesus conta outra parábola. Os ouvintes são os mesmos, sendo indicada também a presença dos fariseus.

A parábola muito decalcada no Cântico na vinha de Isaías relatado na primeira leitura, serve para Jesus apresentar uma nova perspetiva que implica os chefes do povo e o reino de Deus. A vinha, que Jesus compara ao reino de Deus é arrendada a uns vinhateiros. O dono da vinha fez tudo o que era necessário para garantir que a vinha ia dar frutos e deu. Na parábola de Jesus o problema da vinha não é o fruto mas os vinhateiros. Estes não querem dar ao dono da vinha a parte dos frutos que lhe corresponde e definida no contrato de arrendamento.

O dono da vinha manda, por duas vezes, criados para receber os frutos. Fez o que devia. Os vinhateiros, porém, tratam mal estes criados. Sem se vingar dos vinhateiros, o dono da vinha, arrisca enviar o seu próprio filho. Perante o filho, os vinhateiros revelam as suas mais profundas intenções, não pretendem apenas ficar com os frutos todos da colheita, mas querem apoderar-se da vinha.

No final Jesus faz a atualização da parábola, mas não sem primeiro obrigar os ouvintes a tomar parte no destino a dar aos vinhateiros. Os chefes do povo ditam a sua própria sentença, quando afirmam “mandará matar sem piedade esses malvados”. Jesus lança então a conclusão que não fala de “matar os malvados“, mas apenas de lhes tirar o reino, “por isso vos digo: Ser-vos-á tirado o reino de Deus e dado a um povo que produza os seus frutos”.

Meditação da Palavra

Se a atualização da primeira leitura nos leva a pensar que a vinha somos nós, povo de Deus, a Igreja, o mundo, que não produz os frutos de justiça e de amor que Deus espera de nós como resposta aos cuidados que tem para connosco, no evangelho este povo de Deus, a Igreja, o mundo, produz frutos mas não são para Deus. Há os que se consideram donos deste mundo, donos da Igreja, senhores entre o povo de Deus e merecedores de todos os frutos, sem ter que dar contas a ninguém.

Não produzir frutos é grave, porque significa uma atitude de indiferença para com o amor daquele que cuida da vinha com todo o carinho, cheio de preocupação. A indiferença para com o amor tem como consequência a experiência do abandono, da solidão, de tristeza e pobreza. Uma terra que não é cuidada, uma vida onde não há amor, torna-se um terreno abandonado, baldio, onde se despeja toda a espécie de entulho, “nela crescerão silvas e espinheiros”, “devastou-a o javali da selva
e serviu de pasto aos animais do campo”.

Chamar seu aos bens do Senhor, é apoderar-se de um bem alheio que, para garantir a posse, tem que se lutar com todas as armas provocando a morte em todas as frentes. A vinha tem um proprietário, é do Senhor. Habituamo-nos rapidamente a chamar nosso ao que não nos pertence senão por empréstimo. É a “minha” mãe, o “meu “pai, o “meu” filho, o “meu” marido e a “minha esposa”, a “minha” casa, a “minha” terra e com ainda mais intensidade, a “minha” vida. Donos de tudo não queremos dar contas a ninguém “a vida é minha, faço o que quiser”, “sou livre, não tenho que prestar contas a ninguém”.

A verdade é que é tudo emprestado, passageiro, temporal e precário.

A parábola do evangelho recorda que o Senhor, o dono da vinha, tem uma paciência infinita, não responde com ameaças, nem atua em vingança contra aqueles que não o querem reconhecer como dono e pretendem ficar com os frutos e a vinha.
Mas também recorda que chegará o momento em que tudo será tirado àqueles que não pretendem prestar contas, para ser entregue a outros que entreguem os frutos a seu tempo.

A sentença dos ouvintes de Jesus é a morte daqueles malvados, a decisão do dono da vinha não é a morte, porque espera contra toda a esperança a conversão daqueles vinhateiros, mas não lhes permite usufruir para sempre dos frutos da vinha que não lhes pertence.

A comunidade cristã corre sempre o risco de alguns levarem longe demais a tentação de se julgarem donos. Donos da verdade, donos do destino, donos das decisões, donos da comunidade. Há efetivamente pessoas que, por não discernirem suficientemente a vontade do Espírito querem transformar a comunidade no que ela não é, tornando-se incapaz de produzir os frutos desejados. Mas esse risco não pode levar outros a quererem ser os donos do discernimento, de modo que tomam todas as decisões sem escutar os demais, e ficarem com os louros, os frutos, todos para si próprios.

A verdadeira comunidade cristã, procura o que há de bom em cada um dos seus membros e valoriza-o, permitindo que sirvam todos o bem da comunidade. Valorizando o que é bom, perde força o que é mau, de modo que não se torna motivo para divisões, discórdias e marginalizações.

Expulsar, lançar fora da vinha e matar não é próprio da comunidade de Jesus. O dono da vinha quer frutos e não destruição.
O segredo está em deixar entrar o Senhor na sua vinha, permitir que o seu rosto brilhe sobre todos e seja para todos a salvação.

Rezar a Palavra

Nada é meu, Senhor, nem a vida, nem os bens, nem as minhas capacidades, nada é meu. Não sou dono do meu passado, do presente nem do futuro. Não posso tomar a vida nas mãos e chamar-lhe minha, porque ela é como o dia de ontem que já passou. Ensina-me a dar graças por tudo o que sou, e a sentir alegria de ser todo teu e nada meu e de entregar nas tuas mãos o fruto do meu esforço diário, para sermos todos a vinha que tu amas e pela qual permitiste a morte de teu filho.

Compromisso semanal

Reconheço-me membro da vinha do Senhor através do trabalho que partilho com os meus irmãos na comunidade cristã a que pertenço.