A construção da paz é uma tarefa que se apresenta sempre difícil. Todos dizemos que queremos a paz, que as guerras podem deitar tudo a perder, que este mundo em que vivemos pode estar à beira de uma guerra mundial e, em todo este contexto, pode chocar-nos hoje o que ouvimos no Evangelho que refere as palavras de Jesus afirmando que “Ele veio trazer o fogo à terra… que não veio estabelecer a paz mas trazer a divisão”.
É preciso saber ler estas palavras de Jesus com as quais Ele caracteriza a sua missão. A fidelidade ao Evangelho exige sempre rupturas e conflitos com os interesses egoístas, com as injustiças do mundo que nos rodeia e com a violência que é criada pelos mais variados interesses. Perante todas estas situações não se pode ficar apático ou indiferente; o silêncio pode ser cúmplice da manutenção das situações injustas que são, elas sim, geradoras permanentes de conflitos.

  1. O fogo de Deus

– Jesus diz que “veio trazer o fogo à terra e que quer que ele se acenda”… Esta linguagem já tinha sido usada por João Baptista quando, ao anunciar a presença do Messias, diz que “Ele baptizará no Espírito Santo e no fogo” (Lc 3,16)…
– No Antigo Testamento o fogo é um elemento que indica purificação, separação, julgamento, castigo… Aplicado à missão de Jesus, o fogo significa a transformação que Ele vem operar, de tal modo que se poderia dizer que “nada ficará como dantes”…
– Por isso o fogo é também uma imagem que se refere à transformação interior, ao coração… O coração pode aquecer, pode arder, como disseram os caminhantes de Emaús quando ouviram as palavras de Jesus ressuscitado (Lc 24.13-35)…
– O Baptismo na água e no fogo orienta-nos para a purificação e transformação interior… Também as águas, como o fogo, são sinal de morte e de vida, de transformação ou conversão…
– O fogo de Jesus é fogo do Espírito Santo: um fogo purificador, vivo e dinâmico… Muitas vezes recordamos que Jesus é manso e humilde de coração, e é verdade, mas isso não nos pode deixar cair na rotina ou na tibieza, deixando andar as coisas sem que nada de novo aconteça…

  1. Assumir as contradições

– Olhar para a acção de Deus na nossa vida como um fogo que não se pode deixar apagar é evitar que as nossas comunidades, as nossas igrejas, deixem de ser “simples estações de serviços religiosos” e sejam sempre mais activas e presentes no mundo, transformando-o como faz o fogo…
– Naturalmente que a fidelidade ao Evangelho, assumida assim com dinamismo, traz consigo a contradição porque nem todos afinam pela mesma melodia… É para esta situação que Jesus aponta quando diz que traz a divisão…
– Esta experiência é relatada na primeira leitura envolvendo o profeta Jeremias: o que ele dizia não agradava ao rei Sedecias nem aos homens do poder que o influenciavam… Por isso foi metido na cisterna onde não havia água mas apenas lodo… Foi necessária a intervenção de Ebed-Melec para que o profeta fosse retirado de lá ainda com vida…
– Episódios como este repetem-se ao longo da história sempre que há a coragem de denunciar o que está mal, de lutar contra as injustiças e promover o bem do povo… Nestes casos, a divisão é inevitável…

  1. A paz de Jesus e a paz do mundo

– Podem impressionar as palavras de Jesus que referem a divisão e não a paz como resultado da sua missão… Afinal não foi o mesmo Jesus que disse no sermão da montanha que eram “bem-aventurados os construtores da paz” (Mt 5,6)? Não é dele a saudação de ressuscitado a desejar a paz aos discípulos?…
– Mas convém também recordar que, no discurso de despedida no Evangelho de S. João, a paz que Ele dá aos seus discípulos não é igual à que o mundo também dá (Jo 14,27). No decorrer da Ceia deixa claro que, no mundo, os discípulos sofrerão tribulações porque este mundo não aceita facilmente a sua mensagem… Mas que tenham confiança porque Ele venceu o mundo (Jo 16,33)…
– De facto, nem tudo aquilo a que chamamos paz é verdadeira paz… Nem todas as situações de ausência de guerra são momentos de paz… A tibieza, a apatia e a indiferença não são sinónimos de paz. A paz autêntica exige inconformismo com a injustiça, com a violência e com as tentativas de impor uma única visão do mundo, tantas vezes, à custa da violação das consciências…
– O fogo de Jesus nunca nos pode deixar indiferentes… A mensagem do amor pode provocar divisões e desafiar a vida social “instalada”… É um fogo que purifica e traz luz e calor, ardor no coração dos que se abrem à mensagem do Evangelho neste mundo frio e indiferente…