Mistagogia da Palavra
Na travessia da vida, por vezes vêm os desânimos, os desalentos e até o cansaço da fé. É nesses momentos que escurecem, ou pior ainda, coagulam o amor e a ternura, as razões de acreditar e esperar, o optimismo e a alegria de viver, a convivência e a solidariedade e tantos outros valores que pareciam inalteráveis e que julgávamos inteiramente seguros. Contudo, se formos cristãos autênticos, seremos capazes de realizar com êxito a travessia do deserto sem desfalecer. Mas como? Quando parece que está tudo perdido, fica a secreta energia de um alimento que pode revigorar-nos se escutarmos a Deus e acreditarmos em Jesus Cristo, palavra do Pai e pão da vida. Ambas as realidades, a fé e o pão eucarístico, dão a vida eterna, isto é, presente e futura.
A 1ª leitura é do Primeiro Livro dos Reis. O profeta Elias, desanimado, perseguido e procurado para lhe darem a morte, quer encontrar a Deus. Para isso dirige-se ao monte Horeb, onde Deus falou a Moisés. Tem, porém de enfrentar as dificuldades duma viagem longa e arriscada através do deserto. Consegue superar essas dificuldades com a força dum pão que lhe foi enviado do Céu.
A 2ª leitura é da Epístola do apóstolo São Paulo aos Efésios. Antigamente, os escravos eram marcados a fogo com um ferrete (um selo) indelével na pele. Servia para indicar a todos que eles pertenciam para sempre a um determinado patrão. O Apóstolo serve-se desta imagem para explicar a condição do cristão. No baptismo, diz ele, o cristão recebe na sua própria carne uma marca, feita não com o fogo, mas impressa pelo Espírito Santo; portanto, pertence definitivamente a Deus. As consequências morais que daí derivam são expressas primeiro de forma negativa: há vícios que têm de ser erradicados, depois de forma positiva: há uma série de virtudes que devem praticar-se.
O Evangelho é segundo São João. É a primeira parte do discurso de Jesus sobre o pão da vida. O texto contém duas secções: 1ª, a origem de Jesus e da fé n’Ele; a 2ª, Jesus é o pão vivo que dá a vida a quem O come. Precisamos da energia que nos dá o pão vivo descido do Céu, que é Cristo, pão da vida eterna para todo o que n’Ele crê.
A Palavra do Evangelho
Evangelho Jo 6, 41-51
Naquele tempo, os judeus murmuravam de Jesus, por Ele ter dito: «Eu sou o pão que desceu do Céu». E diziam: «Não é Ele Jesus, o filho de José? Não conhecemos o seu pai e a sua mãe? Como é que Ele diz agora: ‘Eu desci do Céu’?». Jesus respondeu-lhes: «Não murmureis entre vós. Ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que Me enviou, não o trouxer; e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia. Está escrito no livro dos Profetas: ‘Serão todos instruídos por Deus’. Todo aquele que ouve o Pai e recebe o seu ensino vem a Mim. Não porque alguém tenha visto o Pai; só Aquele que vem de junto de Deus viu o Pai. Em verdade, em verdade vos digo: Quem acredita tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida. No deserto, os vossos pais comeram o maná e morreram. Mas este pão é o que desce do Céu, para que não morra quem dele comer. Eu sou o pão vivo que desceu do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne, que Eu darei pela vida do mundo».
Caros amigos e amigas, tantas são as nossas preocupações para prolongar a vida, a vida biológica! Mas que discurso é este que garante uma vida imortal? Não é demagogia barata: é um desafio de confiança em Deus.
Interpelações da Palavra
Murmuravam de Jesus
Não estranhamos se as palavras de Jesus sacudiram a admiração dos ouvintes que tinham sido saciados da fome corporal! Jesus quer aproveitar a oportunidade para os convidar a darem mais um passo na interpretação da vida. A vida de uma pessoa está muito para lá da biológica e essa vida precisa de se alimentar. Poderiam ter dado este passo, mas não: murmuraram. O murmúrio é subtil forma de colar um rótulo de descrédito a uma mensagem. Este é uma reedição daquele que, na caminhada do deserto, Israel já tinha imposto a Deus e a Moisés. Este murmúrio é um antepassado dos nossos murmúrios íntimos, sempre que não levamos a peito as inquietações que ainda hoje a Palavra de Deus nos proporciona. Achamos que já conhecemos tudo sobre Jesus, que já sabemos todas as “leis” da prática cristã… blindamos a capacidade de ser provocados, secamos o enxerto da comunicação deste Deus sempre surpreendente. Confiamos mais nas nossas contas, feitas com régua e esquadro, mas os resultados ficarão fracassados se tirarmos da equação uma medição essencial: a medida do amor de Deus, que não tem medida.
O nosso Deus é um Deus que desce
O Deus que no Êxodo se apresentara atento e solícito: “vi, ouvi e desci” é o Deus misericordioso que Jesus vem anunciar. Mais: a que Jesus vem dar rosto. Jesus é o Pão, é a mensagem, é a Vida daquela vida cuja indigência às vezes calamos e mascaramos com exterioridades anestesiantes. Em Deus não há distâncias. Também está no infinito sideral, mas está na partícula mais ínfima que nos compõe, é um Deus que deixa a essência das suas mãos no nosso ser, que deixa o seu sopro no nosso respirar. É um Deus que toma a nossa carne, que arma a sua tenda entre nós, que se humilha, que morre por amor! Antes de O comungarmos, é Deus que nos comunga! Mas a descida de Deus nem sempre é acolhida! Talvez temamos o risco de nos deixar encontrar e tocar por um Deus humilde e desarmante, talvez não nos apeteça assumir o seu modo despojado de amar! E, no entanto, como tudo seria diferente se O deixássemos comunicar connosco! Amigos e amigas, não desperdicemos a sua presença! A oração é o ponto de contacto, precisamos dela para deixar Deus resolver aquela fome mais acutilante que nos avassala o ser: amar e ser amados.
Um alimento para não morrer
A morte não acontece apenas pelo envelhecimento das nossas células, a flacidez dos tecidos, o mau funcionamento dos órgãos a morte é este rondar contínuo do pecado, o esboroar da nossa relação com a Vida que nos gerou. E há fomes ilegítimas que não vêm senão desta sede da morte. Porque é uma ilusão pensar que a vida é um acumulado de saúde. A vida não vem de dentro de nós. A vida vem-nos de Deus e da capacidade de semearmos a nossa, no coração dos outros. Morremos quando deixamos de ser fiéis ao amor. Jesus, sendo o Pão da Vida, não é um elixir mágico que nos rejuvenesce as células, mas a poção preciosa que nunca deixa que a morte tenha uma palavra definitiva. Aquele que nos criou é esse que verdadeiramente nos alimenta. O que tinha de melhor Deus deu-nos, Jesus é a pérola da Vida, o clímax do amor de Deus, verdadeiro pão, concreto alimento na Eucaristia e na Palavra. Amigos e amigas, é este o alimento para não morrer, verdadeiro banquete que nos serve o Evangelho!
Rezar a Palavra e contemplar o Mistério
Senhor, Pão Vivo que dá vida, dom de Deus que se aproxima e se dá sem medida,
São pequenas as palavras para Te louvar por tão grande dom.
Desces ao encontro da minha fome e sede, dor e solidão, do meu cansaço e desânimo,
Para seres vida, alegria e paz, porque és amor em dádiva constante.
Esse Pão que me dá vida para além do tempo e do espaço, que me ressuscita e me levanta,
Eu creio que vem do Céu, presente de Deus; eu creio que me alimenta eternamente
Dá-me desse Pão, alimenta a minha esperança, para que também eu me saiba d(o)ar!
Viver a Palavra
Vou encontrar fomes concretas em mim que o Pão do Céu possa saciar.