No fundo do poço recupero a confiança
Fecharam-me na escura cisterna para não poder falar. Não sabiam que a palavra é luz para os meus olhos e que o meu coração medita dia e noite na tua lei. Fecharam-me para calar a minha voz, sem saber que o som da tua voz ecoa com mais força no silêncio da escuridão. Atolaram-me no fundo da existência, sem saber que descer é já subir até àquele que tem a vida toda na mão. No fundo do poço recupero a confiança.
LEITURA I Jr 20, 10-13
Disse Jeremias: «Eu ouvia as invetivas da multidão: ‘Terror por toda a parte! Denunciai-o, vamos denunciá-lo!’. Todos os meus amigos esperavam que eu desse um passo em falso: ‘Talvez ele se deixe enganar, e assim o poderemos dominar e nos vingaremos dele’. Mas o Senhor está comigo como herói poderoso, e os meus perseguidores cairão vencidos. Ficarão cheios de vergonha pelo seu fracasso, ignomínia eterna que não será esquecida. Senhor do Universo, que sondais o justo e perscrutais os rins e o coração, possa eu ver o castigo que dareis a essa gente, pois a Vós confiei a minha causa. Cantai ao Senhor, louvai o Senhor, que salvou a vida do pobre das mãos dos perversos».
Feliz pela missão que Deus lhe confiou, o profeta Jeremias vive uma experiência radical por causa da rejeição dos seus ouvintes em relação à palavra por ele proclamada. Ameaçado e maltratado por todos, ele experimenta-se frágil e triste mas também corajoso e comprometido com a palavra e com Deus. Na sua fragilidade espera que Deus o salve e perante o silêncio de Deus fica confuso sem deixar de confiar.
Salmo responsorial Sl 68 (69), 8-10.14.17. 33-35
Jeremias podia ter sido o autor deste salmo, porque está ali retratada toda a sua experiência de vida. Desprezado por amigos e perseguido por inimigos vê-se atolado no lodo da funda cisterna onde o fecharam. Gritou por Deus, que parecia indiferente à sua dor, e teve que encontrar confiança na única certeza que lhe restava, a bondade de Deus que atende os pobres.
LEITURA II Rm 5, 12-15
Irmãos: Assim como por um só homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte, assim também a morte atingiu todos os homens, porque todos pecaram. De facto, até à Lei, existia o pecado no mundo. Mas o pecado não é levado em conta, se não houver lei. Entretanto, a morte reinou desde Adão até Moisés, mesmo para aqueles que não tinham pecado por uma transgressão à semelhança de Adão, que é figura d’Aquele que havia de vir. Mas o dom gratuito não é como a falta. Se pelo pecado de um só todos pereceram, com muito mais razão a graça de Deus, dom contido na graça de um só homem, Jesus Cristo, se concedeu com abundância a todos os homens.
Paulo aponta a liberdade do homem como lugar de onde nasce o pecado. Com efeito, Adão, representante de todos os homens, arrasta consigo para a morte toda a humanidade. Em Cristo, porém, é dada ao homem a graça, na abundância necessária, para que tenha de novo a vida.
EVANGELHO Mt 10, 26-33
Naquele tempo, disse Jesus aos seus apóstolos: «Não tenhais medo dos homens, pois nada há encoberto que não venha a descobrir-se, nada há oculto que não venha a conhecer-se. O que vos digo às escuras, dizei-o à luz do dia; e o que escutais ao ouvido proclamai-o sobre os telhados. Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei antes Aquele que pode lançar na geena a alma e o corpo. Não se vendem dois passarinhos por uma moeda? E nem um deles cairá por terra sem consentimento do vosso Pai. Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Portanto, não temais: valeis muito mais do que todos os passarinhos. A todo aquele que se tiver declarado por Mim diante dos homens, também Eu Me declararei por ele diante do meu Pai que está nos Céus. Mas àquele que Me negar diante dos homens, também Eu o negarei diante do meu Pai que está nos Céus».
A confiança no poder da palavra que os discípulos são chamados a anunciar, assim como a confiança de que ninguém lhes pode tirar a vida de Deus, mesmo que matem o corpo, deve vencer todo o medo perante as circunstâncias históricas. Confiar é testemunhar a favor de Jesus diante dos homens. Aquele que assim fizer será reconhecido diante de Deus.
Reflexão da Palavra
O texto da primeira leitura está formado por alguns versículos da última confissão do profeta Jeremias. São ao todo cinco confissões, que exprimem os seus sentimentos mais profundos, vividos em situações complexas e difíceis, de perseguição, que colocam o profeta entre a ameaça dos inimigos e a confiança em Deus, entre a consolação por saber que sofre por causa de Deus e incapacidade humana de aguentar a dor causada por tanta humilhação e sofrimento.
Há nas palavras do profeta uma grande confusão de sentimentos, que vão desde a revolta e a lamentação, porque Deus lhe prometeu proteção e parece indiferente à sua situação, até à total confiança em Deus, porque ele “salva a vida do pobre das mãos dos perversos”.
Nesta última confissão o profeta revela ter sido seduzido por Deus e, por causa disso, é insultado e escarnecido por todos, amigos e inimigos, ao ponto de, no meio do desespero, decidir não voltar a falar em nome de Deus.
Os versículos que compõem a leitura deste domingo vêm confirmar o que se diz atrás e revelam que, no meio da pressão dos inimigos, o profeta ainda mantém a confiança em Deus, como sugerem as afirmações “o Senhor, porém, está comigo”, “os meus perseguidores serão esmagados”, “a ti confiei a minha causa”.
O salmo 69 coloca-nos diante da suplica de um homem que pede auxílio, como pode ver-se logo na abertura “salva-me”, “estou a afundar-me”, “entrei no abismo”. O pedido de socorro brota da situação dramática em que se encontra o autor, por causa da mentira dos seus inimigos e do silêncio dos seus irmãos. A confiança na bondade de Deus impele-o a pedir ajuda.
Sabe que Deus o pode salvar e promete louvá-lo e unir a si, no mesmo louvor, os humildes e os cativos assim como o céu, a terra e os mares.
A experiência do salmista confunde-se de tal modo com a do profeta Jeremias que chegou a pensar-se que seria ele o seu autor. De facto, também o profeta foi um zeloso defensor da casa do Senhor, foi desprezado pelos seus amigos e perseguido por inimigos e esteve atolado no fundo do abismo. Independentemente do seu autor, podemos ler este salmo com os olhos em Jeremias e, porque não, também, em Jesus.
Salvos por Cristo do abismo da morte e do pecado, porque “quando ainda éramos pecadores ele morreu por nós”, adquirimos uma nova vida, a vida do cristão reconciliado. Antes da reconciliação realizada por Cristo na sua morte, éramos de Adão, homens da terra, marcados pelo pecado. Agora pertencemos a Cristo, homem do céu, cabeça de uma nova humanidade. Em Adão estava o pecado e a morte, em Cristo está a abundância da graça, superabundância, mais precisamente.
Ao estabelecer a comparação entre Cristo e Adão, Paulo tem a preocupação de deixar claro que se trata de uma comparação desigual. Porque a graça de Cristo é superior ao mal causado por Adão no seu pecado. Por isso, depois de dizer “a graça de Deus… foi a todos concedida em abundância” no versículo 15, repete “recebem em abundância a graça” (v 17) para terminar dizendo “onde aumentou o pecado, superabundou a graça” e, “assim também a graça reina pela justiça até à vida eterna” (v 20). Há, portanto, uma superioridade da graça em relação ao pecado.
A primeira situação brota da liberdade do homem que, podendo escolher, prefere o pecado. A segunda situação vem de Cristo e é totalmente graça que Deus concede ao homem.
O texto do evangelho apresenta três recomendações, todas iniciadas pela palavra de Jesus “não tenhais medo” ou “não temais” e está construído a partir da relação entre “encoberto/descobrir”, “oculto/conhecer”, “às escuras/luz do dia”, “ao ouvido/sobre os telhados”. Na segunda parte a relação é entre “corpo/alma”, “passarinhos/discípulos” e na última parte surge a relação entre “diante dos homens/diante do Pai celeste”, “declarar/negar”.
O desafio a vencer o medo vem sempre de Deus para animar o seu povo. Aqui é Jesus quem anima os seus discípulos para lhes mostrar que nada pode impedir que se faça o anúncio do reino. É o próprio Deus quem garante o êxito, porque ele é o dono da seara, como se lê no capítulo anterior, mas os discípulos não podem deixar de realizar a sua parte na missão, daí o chamamento à confiança vencendo o medo.
Se não devem temer porque a mensagem tem em si o êxito da missão, também não devem temer por si próprios diante dos que quiserem tirar-lhes a vida, porque a morte não é o fim para aquele que crê em Cristo. Só devem temer aquele, Deus, que é quem tem poder sobre o corpo e a alma.
Por fim, o chamamento à confiança, fundada na bondade de Deus para com as aves do céu. Esta imagem já apareceu no capítulo 6 quando Jesus convida os discípulos a não se preocuparem com o que hão de comer, beber ou vestir, concluindo que “o Pai do Céu bem sabe do que precisais”.
A confiança vem da certeza de que todas as coisas estão nas mãos de Deus, que na sua bondade ele tudo controla, “até os cabelos da vossa cabeça”.
O texto conclui com uma declaração de responsabilidade. Os discípulos podem tomar a atitude de quem dá testemunho, confessando Cristo diante dos homens, ou a atitude de negar Jesus diante dos homens. A atitude que tomarem implica a responsabilidade de assumir as consequências da decisão.
Estas palavras têm como pano de fundo o que Jesus tinha afirmado anteriormente sobre serem levados aos tribunais. Nenhum julgamento dos homens é tão determinante como o julgamento de Deus. Os julgamentos dos homens têm um tempo e o julgamento de Deus é definitivo. Negar Jesus é separar-se dele por uma decisão pessoal e testemunha-la diante dos homens é a sua confirmação. Esta decisão tem como consequências ser negado diante de Deus.
Meditação da Palavra
A perseguição atravessa as leituras deste domingo. Jeremias é perseguido por causa da Palavra de Deus que ele anuncia com entusiasmo. O salmista é perseguido por causa de Deus, como ele próprio reconhece “por vós tenho suportado afrontas”. No evangelho, Jesus, alerta os discípulos para a possibilidade de surgirem impedimentos ao anúncio, perseguições ao mensageiro querendo tirar-lhe a vida e, ainda, a possibilidade de negar Jesus perdendo o corpo e a alma, por causa da falta de confiança em Deus e medo dos homens.
Se os discípulos recebem de Jesus uma missão, que pode vir a ser para eles ocasião de perseguições ao ponto de lhes quererem “matar o corpo”, sabem desde o início que não estão sós. Jesus, o Mestre, está com eles na mesma missão, vai à frente deles nesse caminho e mostra o que arriscam aqueles que assumem falar de Deus, desafiando os interesses dos homens. O destino de Jesus é cada vez mais visível à medida que sobe para Jerusalém e ele não retrocede um passo.
Vencer o medo só é possível se crescer a confiança no Pai que está nos céus, que cuida das aves do céu e, mais ainda, daqueles que valem mais que muitos passarinhos. Deixar-se vencer pelo medo e negar Jesus diante dos homens, pode ser estratégia para salvar o corpo, mas é uma má estratégia, na medida em que a morte do corpo não é a morte definitiva. A morte definitiva é aquela que só Deus pode decretar, ao não reconhecer aqueles que o negaram diante dos homens para salvarem a pele.
Confiar no poder da palavra que se anuncia e naquele de quem brota essa palavra é a única decisão certa para garantir a vida. É esse o testemunho de Jeremias. Tendo que anunciar a palavra num tempo historicamente difícil, em que os homens preferem ouvir palavras enganadoras em lugar da verdade sobre o que está para acontecer, a destruição de Jerusalém, Jeremias vê-se ameaçado por todos os lados como ele próprio diz “Eu ouvia as invetivas da multidão: ‘Terror por toda a parte! Denunciai-o, vamos denunciá-lo!’”, palavras que vemos refletidas no salmo.
Nem sempre é fácil discernir de que lado ficar. Perante o perigo, obscurece-se a verdade e fragiliza-se a confiança e corre-se o risco de perder tudo, negando aquele a quem se anuncia. Esse é o risco que corre Jeremias, ao sentir que, apesar de confiar a sua causa nas mãos de Deus, sente que já não tem forças para continuar a falar de Deus.
É desse risco que Jesus alerta os discípulos quando fala das consequências de uma má decisão. Também eles podem chegar ao ponto de negar a Deus diante dos homens, por medo que matem o corpo.
Paulo recorda que somos Adão e nele padecemos da fragilidade que o pecado nos traz. Como Adão escolhemos mal, no uso da nossa liberdade, e tornamo-nos morte por causa do nosso pecado, mas podemos ser fortes se acolhermos a graça que vem de Cristo que dá vida em abundância.
Rezar a Palavra
Não terei medo. É isto que me apetece dizer-te, como se fosse forte, como se me assistisse toda a coragem do mundo, como se me dominasse a certeza de que nenhum mal me acontecerá. No meu corpo sinto a fraqueza de Adão e no meu coração o poder de Jesus. Inclino-me e compreendo que no pó da terra está o meu passado e olho no céu o meu futuro. A ti confio a minha causa, na esperança de nunca te negar.
Compromisso semanal
Medito nas situações em que me é mais difícil testemunhar diante dos homens a minha confiança em Deus.