Estou aqui e preciso de ti
Corre a brisa suave da manhã em dia de primavera. Há passos inquietos no jardim. Uma voz quente e doce sussurra palavras encantadas de desejos nunca sonhados: “Anda ver o mar”. Sereias de mil cores brincam nas ondas do céu e do mar, dizendo umas às outras: “Se quiseres podes ser Deus”. Fogem-me os pés na ilusão escorregadia da mentira. O dia escurece, o silêncio impõe-se, lá longe uma pequena esperança. Do profundo abismo chamo por ti gritando: “estou aqui e preciso de ti”.
LEITURA I Gn 3, 9-15
Depois de Adão ter comido da árvore, o Senhor Deus chamou-o e disse-lhe: «Onde estás?». Ele respondeu: «Ouvi o rumor dos vossos passos no jardim e, como estava nu, tive medo e escondi-me». Disse Deus: «Quem te deu a conhecer que estavas nu? Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira comer?». Adão respondeu: «A mulher que me destes por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi». O Senhor Deus perguntou à mulher: «Que fizeste?». E a mulher respondeu: «A serpente enganou-me e eu comi». Disse então o Senhor Deus à serpente: «Por teres feito semelhante coisa, maldita sejas entre todos os animais domésticos e todos os animais selvagens. Hás de rastejar e comer do pó da terra todos os dias da tua vida. Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta há de atingir-te na cabeça, e tu a atingirás no calcanhar».
É bom o desejo de sermos como Deus, porque ele nos criou à sua imagem e semelhança, O erro está em querermos tirar o lugar a Deus e pior, pensarmos que Deus é o autor do mal e quer o nosso mal, quando ele nos criou por amor.
Salmo Responsorial Sl 129 (130), 1-2.3-4ab.4c-6.7-8 (R. 7)
O pecado faz o salmista sentir a sua vida sepultada na angústia, mergulhada no abismo profundo, de onde apenas pode sair a sua voz. Entre o fundo abismo e o céu há uma grande distância e o salmista espera que a sua voz seja escutada por Deus, porque só ele o pode salvar.
LEITURA II 2Cor 4, 13 – 5, 1
Irmãos: Diz a Escritura: «Acreditei; por isso falei». Com este mesmo espírito de fé, também nós acreditamos, e por isso falamos, sabendo que Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos há de ressuscitar com Jesus e nos levará convosco para junto d’Ele. Tudo isto é por vossa causa, para que uma graça mais abundante multiplique as ações de graças de um maior número de cristãos, para glória de Deus. Por isso, não desanimamos. Ainda que em nós o homem exterior se vá arruinando, o homem interior vai-se renovando de dia para dia. Porque a ligeira aflição dum momento prepara-nos, para além de toda e qualquer medida, um peso eterno de glória. Não olhamos para as coisas visíveis, olhamos para as invisíveis: as coisas visíveis são passageiras, ao passo que as invisíveis são eternas. Bem sabemos que, se esta tenda, que é a nossa morada terrestre, for desfeita, recebemos nos Céus uma habitação eterna, que é obra de Deus e não é feita pela mão dos homens.
Paulo experimentou muitas adversidades desde o dia em que se encontrou com Jesus no caminho de Damasco. Apesar disso não desanima porque está convencido de que o evangelho que anuncia e no qual crê está assente na certeza da ressurreição e, por isso, aguarda a participação na glória de Deus.
EVANGELHO Mc 3, 20-35
Naquele tempo, Jesus chegou a casa com os seus discípulos. E de novo acorreu tanta gente, que eles nem sequer podiam comer. Ao saberem disto, os parentes de Jesus puseram-se a caminho para O deter, pois se dizia: «Está fora de Si». Os escribas que tinham descido de Jerusalém diziam: «Está possesso de Belzebu», e ainda: «É pelo chefe dos demónios que Ele expulsa os demónios». Mas Jesus chamou-os e começou a falar-lhes em parábolas: «Como pode Satanás expulsar Satanás? Se um reino estiver dividido contra si mesmo, tal reino não pode aguentar-se. E se uma casa estiver dividida contra si mesma, essa casa não pode durar. Portanto, se Satanás se levanta contra si mesmo e se divide, não pode subsistir: está perdido. Ninguém pode entrar em casa de um homem forte e roubar-lhe os bens, sem primeiro o amarrar: só então poderá saquear a casa. Em verdade vos digo: Tudo será perdoado aos filhos dos homens: os pecados e blasfémias que tiverem proferido; mas quem blasfemar contra o Espírito Santo nunca terá perdão: será réu de pecado para sempre». Referia-Se aos que diziam: «Está possesso dum espírito impuro». Entretanto, chegaram sua Mãe e seus irmãos, que, ficando fora, O mandaram chamar. A multidão estava sentada em volta d’Ele, quando Lhe disseram: «Tua Mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura». Mas Jesus respondeu-lhes: «Quem é minha Mãe e meus irmãos?». E, olhando para aqueles que estavam à sua volta, disse: «Eis minha Mãe e meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe».
Não reconhecer que Deus é bom e tudo o que faz é por amor, é um pecado que não tem perdão porque subverte a verdade sobre Deus e o coloca no papel do demónio. Jesus adverte contra esta atitude chamando-nos a reconhecer que ele é mais forte que o demónio e vem para nos libertar do domínio do mal, para pertencermos à sua família como filhos amados do Pai.
Reflexão da Palavra
Para compreendermos o texto da primeira leitura é necessário ter em conta o seu contexto, Gn 3,1-24. A narração coloca o homem e a mulher entre Deus e a serpente. À partida a serpente é um animal criado por Deus e, portanto, submetido ao criador. Aqui, porém, ela representa o inimigo de Deus e do homem. A eleição da serpente para manifestar tudo aquilo que seduz o homem e o afasta de Deus, tem a ver com os ritos pagãos da terra de Canaan, muito ligados à fecundidade e, daí surge também a ideia de que a maçã representa um pecado de caraterística sexual, o que não corresponde à ideia original.
No confronto entre a mulher e a serpente e a posterior sedução do homem em relação ao fruto proibido, oferecido pela mulher, fica a ideia de que a tentação é capaz de vencer a relação de harmonia que existe entre o Deus e o homem. A serpente, a tentação, subverte o mandamento, para convencer o homem e a mulher de que Deus não quer o seu bem mas dominá-lo pela ignorância e que o homem pode, por um gesto mágico, ser como Deus. Basta comer do fruto da árvore e será como Deus. “Deus sabe que no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus” (Gn 3,5).
O trecho que se lê como primeira leitura deste domingo surge, pois, na sequência da infidelidade do homem e da mulher em relação ao mandamento divino “não comas da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás” (Gn 2,17). O resultado final, da mentira da serpente e da sedução do homem e da mulher, desejosos de serem como Deus e decidirem por eles mesmos o que é bem e mal, é a tomada de consciência de que perderam tudo e não ganharam nada. Homem e mulher estão nus. Não só não se tornaram como Deus, como perderam a harmonia que viviam entre eles, com os animais, com a natureza e com Deus. A única coisa que conquistaram com a desobediência foi o medo, medo de se apresentarem diante de Deus, “tive medo e escondi-me”.
De acordo com a cultura judaica, é ao homem que Deus questiona “onde estás?”. O homem não sabe onde está, sabe apenas que está nu, tem medo e não pode apresentar-se diante de Deus, por isso se escondeu. “Terás tu comido dessa árvore?”, a resposta vem como uma descarga da responsabilidade para cima de Deus: foi “a mulher que me destes por companheira”. A atenção de Deus dirige-se, então para a mulher, que orienta o olhar de Deus para a serpente, “a serpente enganou-me”.
A resposta de Deus, é maldição para a serpente, “por teres feito semelhante coisa, maldita sejas”, atribuindo à serpente a origem do mal. O homem e a mulher também vão sentir as consequências da desobediência, mas para eles há uma esperança porque Deus não abandona o homem, obra das suas mãos. Doravante existe uma inimizade entre o mal e o homem, uma luta que poderá parecer desigual, mas da qual o homem sairá vencedor. Naturalmente que, o homem que vai vencer o mal é Jesus.
O salmo 129 apresenta-se como um salmo de súplica individual usado em peregrinações. O salmista experimenta-se, em relação a Deus, como alguém que está no fundo do abismo “do profundo abismo chamo por vós, Senhor”. Deus está lá no alto, distância que o salmista só pode vencer com a voz, “ouve a minha prece”, “a voz da minha súplica”. O salmista confia que é escutado “estejam teus ouvidos atentos”. A distância entre o salmista e o Senhor foi causada pelo pecado, os nossos e os de Israel, “se tiverdes em conta os nossos pecados”, “Ele há de libertar Israel de todas as suas faltas”. Esta distância é contrária à aliança entre Deus e o seu povo. A aliança foi rompida pela infidelidade, mas o Senhor pode restabelecer a aliança mediante o perdão “em Vós está o perdão”. O salmista confia que, vai ser escutado porque é grande a sua confiança e vigilância. Ele espera “mais do que as sentinelas pela aurora”, “confia na sua palavra” e sabe que no Senhor “está a misericórdia e abundante redenção”.
Na carta aos Coríntios Paulo revela o fundamento da sua fé e da sua palavra. Ele fala porque acredita e acredita a partir da ressurreição. O que nós anunciamos é o centro da nossa fé. Jesus ressuscitou e “Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos há de ressuscitar com Jesus”. Aqui está também a razão pela qual “não desanimamos”. Esta certeza vem-nos do mesmo Espírito que está em todos e multiplica em todos as ações de graças. Esta certeza é tão forte em Paulo que ele afirma “se Cristo não ressuscitou é vã a nossa pregação e é vã também a vossa fé” (1Cor 15,14). Ora, a certeza da ressurreição de Cristo é que dá consistência à certeza da nossa própria ressurreição.
Animados por esta fé não há dificuldade alguma que possa desanimar-nos, apesar de serem muitas as dificuldades, tanto dos ministros da palavra como dos membros das primitivas comunidades cristãs. As dificuldades são, a ruína do “homem exterior”, “a ligeira aflição dum momento”, “as coisas visíveis” e “passageiras”, a “tenda” que é “a nossa morada terrestre”. Tudo o que é transitório na nossa vida.
Nenhuma dificuldade nos desanima porque a nossa fé está assente em realidades sólidas, como são, a renovação do “homem interior”, “um peso eterno de glória”, “as coisas invisíveis… que são eternas” e “habitação eterna”. Estas realidades são “obra de Deus”.
O evangelho revela que a pessoa de Jesus se tornou incompreensível tanto para os da sua família como para os escribas de Jerusalém. Os seus familiares atribuem as suas atitudes ao facto de estar fora de si, enquanto que os escribas se atrevem a dizer que ele fez um pacto com o demónio. Jesus não perde tempo com quem lhe chama louco, mas não pode deixar passar em branco a crítica dos escribas porque põem em causa o Espírito Santo que o anima.
Jesus dispõe-se, então, a ensinar para lhes dar a oportunidade de reverem a sua posição. Começa com um argumento lógico. Se num reino ou numa casa as pessoas estão umas contra as outras, são facilmente vencidas pelos adversários. Se o demónio também está dividido, então não vai conseguir manter-se por muito tempo. Por outro lado, Jesus, servindo-se de outra parábola, recorda que um homem forte e bem armado na sua casa, este homem forte é o demónio, só pode ser vencido se for amarrado por um homem mais forte, que é Jesus. No início do evangelho de Marcos, João Batista diz que “depois de mim vai chegar outro que é mais forte do que eu” (Mc 1,7) e que logo a seguir vence as tentações do demónio no deserto. No capítulo 5 vamos encontrar um demónio que “ninguém conseguia prendê-lo, nem mesmo com correntes… ninguém era capaz de o dominar” (Mc 5,3-4) e Jesus expulsou-o porque é mais forte.
De seguida, Jesus adverte que, permanecer com a atitude subversiva face à bondade de Deus, é um pecado que não tem perdão. A calúnia dos escribas sobre Jesus é uma blasfémia contra o Espírito Santo, porque o Espírito de Deus que está em Jesus é amor e eles querem subverter, como fez a serpente com Adão e Eva, fazendo-os crer que Deus não era tão bom como parecia. Este pecado, não tem perdão, mesmo sabendo nós que Deus está sempre disposto a perdoar, ao ponto de perdoar até àqueles que matam o seu filho. Mas não pode perdoar àqueles que não o querem reconhecer como amor e lhe atribuem a origem do mal de que o demónio é símbolo. Só os que são da sua família é que podem conhecer quem é Jesus de verdade e estes são os que fazem a vontade do Pai.
Meditação da Palavra
O homem vive permanentemente uma luta contra o mal, seja ele físico, moral, ou social. E interroga-se sobre a origem do mal e de que modo pode ele ser vencido. O texto da primeira leitura faz parte de uma tentativa de explicação da origem do mal. O homem foi avisado por Deus para não comer do fruto da árvore do conhecimento, mas a serpente consegue convencê-lo de que essa proibição não lhe é favorável. Se ele comer do fruto proibido pode chegar a ser como Deus e a decidir por si mesmo o que é bem e o que é mal sem dar contas a Deus. É a liberdade total.
A conclusão do texto revela que o mal não está em Deus, porque Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, a partir do seu amor e quer que o homem seja como ele, mas não pelo caminho indicado pela serpente. O mal também não está no homem porque, criado à imagem de Deus foi criado bom. O mal está fora do homem e trava com ele uma luta permanente para o afastar de Deus e impedir que obedeça aos mandamentos divinos que representam a vida e a felicidade do homem.
O pecado deixa o homem despido de si mesmo, da sua dignidade e incapaz de se apresentar diante de Deus. Pelo pecado a única conquista é o medo e o vazio, o abismo onde a distância entre o homem e Deus se adensa tornando impossível a aproximação: “onde estás?”, “escondi-me!”.
O salmista traduz muito bem esta situação quando exclama “do profundo abismo chamo por Vós, Senhor” e sabe que se não for Deus a ter a iniciativa de perdoar nunca mais o homem terá oportunidade de se reencontrar com Deus, de se reaproximar de Deus “se tiverdes em conta os nossos pecados,
Senhor, quem poderá salvar-se?”.
Deus deixou uma porta aberta quando prometeu em Génesis que “esta, a mulher, há de atingir-te na cabeça”. Esta promessa cumpre-se em Cristo, é ele a descendência da mulher, inimiga da descendência da serpente, que será mais forte e lhe pisará a cabeça.
É isso que Marcos nos tenta dizer com a cena do evangelho. As atitudes de Jesus, a sua visão sobre a vida, os milagres que faz, sobretudo expulsando demónios, tornaram-no estranho para os familiares e para os fariseus de Jerusalém. Parece não estar em si. Deu-se nele uma transformação de tal modo que nem os familiares o conhecem. Os fariseus, com a sua forma reduzida de pensar não encontram outra explicação senão afirmar que Jesus está feito com o demónio, sem perceberem que esta afirmação os coloca no lugar da serpente que põe em causa a bondade de Deus.
Jesus é aquele pelo qual vem a vitória sobre o mal. Ele é o filho de Maria, a nova Eva, pela qual nos vem a graça da reconciliação com Deus. Jesus é mais forte que o demónio por isso entra no território do seu domínio, o amarra e expulsa daqueles que estão dominados por ele. Jesus é quem domina em nós “o homem exterior” e renova “o homem interior”, nos mantém firmes diante da “aflição dum momento” e nos prepara “um peso eterno de glória”, abre o nosso olhar para lá das “coisas visíveis… e passageiras” para chegarmos às “coisas invisíveis… e eternas”. É ele quem nos prepara “nos Céus uma habitação eterna”, quando esta “tenda,que é a nossa morada terrestre, for desfeita”.
Numa palavra, é ele quem nos garante a vitória na luta contra o mal, pois a última palavra em nós não é do mal, mas de Deus.
Rezar a Palavra
Senhor, tu sabes que a voz da serpente se faz ouvir em mim querendo convencer-me que, sem ti, posso ir mais longe e mais alto do que seguindo a tua voz, os teus passos e nos teus caminhos. Sei que a voz da serpente enlouquece a minha vontade, mas também sei que a tua voz me orienta na verdade, na alegria, na liberdade de filho, no amor que me salva de todos os abismos. Por isso, chamo por ti na esperança de que os teus ouvidos estejam atentos à voz da minha súplica.
Compromisso semanal
Confiante continuo na luta contra o mal que ataca os meus membros mortais, certo de que não luto sozinho, comigo está Cristo que é mais forte do que o mal.