Que os meus olhos não se percam do teu caminho

Sou livre, dono da minha vida, do meu corpo e do meu destino. Não gosto de cumprir regras nem de fazer nada por obrigação. Prezo a minha liberdade e não admito que me impeçam de fazer aquilo que mais gosto. Tenho as minhas ideias e não permito que me queiram ensinar.

Onde está o teu irmão? Na minha liberdade cada um vive por si e ninguém pode impedir o outro de ser o que ele quiser. Chamar irmão a alguém é impor-lhe uma relação que talvez ele não queira. Ser irmão é uma construção social de que prefiro abdicar.
Quem se perde do rosto de Deus perde o rosto dos irmãos. A minha liberdade pode matar. Sempre que vivo para mim, sem pensar nos outros, alguém morre sem que eu me incomode. As minhas decisões deixam os outros acantonados na rejeição, na indiferença e na solidão. Porque há quem não consiga assegurar a si mesmo o necessário para poder viver e viver com dignidade. Eu não posso simplesmente viver apenas para mim, como se os outros não existissem.

LEITURA I Sir 15, 16-21 (15-20)

Se quiseres, guardarás os mandamentos: ser fiel depende da tua vontade. Deus pôs diante de ti o fogo e a água: estenderás a mão para o que desejares. Diante do homem estão a vida e a morte: o que ele escolher, isso lhe será dado. Porque é grande a sabedoria do Senhor, Ele é forte e poderoso e vê todas as coisas. Seus olhos estão sobre aqueles que O temem, Ele conhece todas as coisas do homem. Não mandou a ninguém fazer o mal, nem deu licença a ninguém de cometer o pecado.

Bem-Sirá, homem culto e conhecedor dos valores do seu povo e da influência da cultura grega entre os israelitas, alerta para o facto de o mal não ser culpa de Deus. Não foi Deus quem fez o mal nem “mandou ninguém fazer o mal”. Cada um é livre e pode escolher entre o bem e o mal, entre a vida e a morte.

Salmo Responsorial Sl118 (119), 1-2.4-5.17-18.33-34
Os versículos que escutamos nesta celebração pertencem ao maior salmo da Bíblia, o salmo 119, e pretende elogiar a lei do Senhor. Abre com a proclamação da felicidade ou bem-aventurança para os que observam a lei do Senhor. Perante esta certeza só podemos pedir: “Ensinai-me, Senhor, o caminho dos vossos decretos”.

LEITURA II 1Cor 2, 6-10

Irmãos: Nós falamos de sabedoria entre os perfeitos, mas de uma sabedoria que não é deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que vão ser destruídos. Falamos da sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que já antes dos séculos Deus tinha destinado para a nossa glória. Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu; porque, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória. Mas, como está escrito, «nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem jamais passou pelo pensamento do homem o que Deus preparou para aqueles que O amam». Mas a nós, Deus o revelou por meio do Espírito Santo, porque o Espírito Santo penetra todas as coisas, até o que há de mais profundo em Deus.

Paulo recorda aos coríntios que a verdadeira sabedoria vem de Deus, está presente na cruz de Jesus e é revelada pelo Espírito Santo. Os sábios deste mundo podem chegar ao conhecimento deste mundo, mas a verdadeira sabedoria só quem possui o Espírito a pode obter, porque vem de Deus e não dos homens. A sabedoria dos homens leva Jesus à morte, a sabedoria de Deus revela o que “jamais passou pelo pensamento do homem”.

EVANGELHO Mt 5, 17-37

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogar, mas completar. Em verdade vos digo: Antes que passem o céu e a terra, não passará da Lei a mais pequena letra ou o mais pequeno sinal, sem que tudo se cumpra. Portanto, se alguém transgredir um só destes mandamentos, por mais pequenos que sejam, e ensinar assim aos homens, será o menor no reino dos Céus. Mas aquele que os praticar e ensinar será grande no reino dos Céus. Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos Céus. Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Não matarás; quem matar será submetido a julgamento’. Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que se irar contra o seu irmão será submetido a julgamento. Quem chamar imbecil a seu irmão será submetido ao Sinédrio, e quem lhe chamar louco será submetido à geena de fogo. Portanto, se fores apresentar a tua oferta ao altar e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão e vem depois apresentar a tua oferta. Reconcilia-te com o teu adversário, enquanto vais com ele a caminho, não seja caso que te entregue ao juiz, o juiz ao guarda, e sejas metido na prisão. Em verdade te digo: Não sairás de lá, enquanto não pagares o último centavo. Ouvistes que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que olhar para uma mulher com maus desejos já cometeu adultério com ela no seu coração. Se o teu olho direito é para ti ocasião de pecado, arranca-o e lança-o para longe de ti, pois é melhor perder-se um só dos teus olhos do que todo o corpo ser lançado na geena. E se a tua mão direita é para ti ocasião de pecado, corta-a e lança-a para longe de ti, porque é melhor que se perca um só dos teus membros, do que todo o corpo ser lançado na geena. Também foi dito: ‘Quem repudiar sua mulher dê-lhe certidão de repúdio’. Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que repudiar sua mulher, salvo em caso de união ilegítima, expõe-na ao adultério. E quem se casar com uma repudiada comete adultério. Ouvistes ainda que foi dito aos antigos: ‘Não faltarás ao que tiveres jurado, mas cumprirás diante do Senhor o que juraste’. Eu, porém, digo-vos que não jureis em caso algum: nem pelo Céu, que é o trono de Deus; nem pela terra, que é o escabelo dos seus pés; nem por Jerusalém, que é a cidade do grande Rei. Também não jures pela tua cabeça, porque não podes fazer branco ou preto um só cabelo. A vossa linguagem deve ser: ‘Sim, sim; não, não’. O que passa disto vem do Maligno».

Mateus continua a apresentação do sermão da Montanha com uma longa explicação de Jesus sobre a lei. Os fariseus tinham uma visão legalista da vida e, por isso, não permitiam qualquer deslize no seu cumprimento. Jesus, que não vem para mudar a lei, coloca as pessoas acima da lei e aponta para o amor como a forma mais elevada de cumprimento da lei.

Reflexão da Palavra

O livro de Bem-Sirá ou Eclesiástico, foi escrito por volta do século II a. C., por um homem chamado Jesus, filho de Eliazar e neto de Sirá. Ben-Sirá é um homem culto, experiente e conhecedor do mundo de então, conhecimento que terá adquirido nas missões diplomáticas em que esteve envolvido. Criou uma escola em Jerusalém onde partilha com os jovens os valores da cultura do seu povo e o seu amor às Escrituras, frente às influências de outras culturas, sobretudo da cultura grega, que ameaçavam os jovens do seu tempo.

No livro bíblico, do qual foi tirada a primeira leitura, ele preocupa-se em defender o judaísmo, mostrando que a verdadeira sabedoria não vem dos gregos, foi revelada por Deus ao seu povo.

A grande questão que ocupa o texto deste domingo é a pergunta sobre a origem do mal. Bem-Sirá explica que o mal não vem de Deus, Deus não criou o mal. É a decisão livre do homem que, podendo cumprir os mandamentos e obter a vida, prefere escolher o pecado que lhe traz a morte.

O maior salmo da Bíblia é construído com estrofes de oito versos, uma para cada letra do alfabeto hebraico, num total de vinte e duas estrofes. Usa de muitas repetições para poder cumprir o seu objetivo. Todo o salmo está subordinado à primeira palavra “felizes”, bem-aventurados, ditosos e ao tema geral que é a lei do Senhor. Felizes são os que escutam a lei do Senhor, a guardam no seu coração e a põem em prática.

A comunidade de Corinto, influenciada pela filosofia grega, corre o risco de apreciar mais a sabedoria dos sábios do areópago, do que a palavra do evangelho. Paulo, que anunciou o evangelho em Corinto a “tremer deveras” e com linguagem simples, como escutámos no domingo passado, vem agora dizer que o evangelho não pode comparar-se à sabedoria dos filósofos, porque não é sabedoria dos homens, mas de Deus. Os homens cultos da cidade podem saber usar a linguagem para convencer, mas a sua sabedoria não chega ao conhecimento de Deus. O evangelho, porém, foi revelado pelo Espírito Santo, “porque o Espírito Santo penetra todas as coisas, até o que há de mais profundo em Deus”.

Pertencem a essa sabedoria divina as palavras de Jesus sobre a lei. Jesus afirma não querer abolir a lei mas levá-la ao seu pleno cumprimento. Ora, este cumprimento da lei não se limita à dimensão visível da sua observância, mas exige uma adesão interior à proposta que se esconde por detrás da lei, que é o bem do próximo e há de procurar-se com amor. Os discípulos de Jesus devem “superar a justiça dos escribas e fariseus”.

Não basta, portanto, com “não matar”, “não cometer adultério”, “não faltar ao juramento”, o cumprimento da lei deve ir mais longe, até ao outro, segundo a proposta de Jesus.

Meditação da Palavra

O sábio e experiente Ben-Sirá, enfrenta com a sua sabedoria sobre a lei do Senhor e o conhecimento da cultura e pensamento gregos, as influências que estão a levar alguns israelitas a viver de acordo com valores que não fazem parte da sua cultura nem da sua fé. A ideia de que o homem é pecador por culpa de Deus, porque foi ele quem fez o mal ou pelo menos o permite, é recusada por Sirá, por ser uma ideia oriunda da filosofia grega e não da tradição bíblica. Deus não só não quer o mal como o odeia e faz tudo para que o homem não se deixa cair no pecado. A origem do mal está no coração do homem que não cumpre os mandamentos do Senhor, apesar de estarem ao seu alcance.

É verdade que Deus vê tudo e sabe tudo o que acontece ao homem, mas isso não impede o homem de praticar o mal no exercício da sua liberdade. Deus não mandou nem deu licença fazer o mal. O homem, porém, pode conhecer os mandamentos de Deus e está ao seu alcance o cumprimento da lei do Senhor.

A felicidade e a infelicidade, a vida e a morte, a bênção e a maldição estão ao alcance do homem na sua decisão livre. Felizes são “os que seguem o caminho perfeito e andam na lei do Senhor. Felizes os que observam as suas ordens e o procuram de todo o coração”, diz o salmo.

Para conhecer melhor o mistério do bem e do mal pode ser necessário pedir “abri, Senhor, os meus olhos para ver as maravilhas da vossa lei”, “ensinai-me, Senhor”, “dai-me entendimento”. Porque a verdadeira sabedoria não vem dos homens, é revelação de Deus.

Paulo alerta os coríntios, também eles influenciados pela filosofia grega, para a possibilidade de procurarem mais a sabedoria dos “príncipes deste mundo que vão ser destruídos” do que a sabedoria de Deus revelada na cruz de Cristo pelo Espírito Santo. Esta sabedoria, “misteriosa e oculta”, que “nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem jamais passou pelo pensamento do homem” foi-nos revelada a nós.

A novidade revelada em Cristo, não vem abolir a lei que Deus deu a Moisés e que orientou o povo no Antigo Testamento. Mateus tem a preocupação de, no seguimento das Bem-aventurança, afirmar que Jesus, apesar de toda a novidade que a sua vida apresenta, não altera a lei, leva a lei ao seu pleno cumprimento.

Na proposta de Jesus, não se trata apenas de “não matar”, mas de dar vida. Aquele que não tem pão, se eu não lhe der pão, morre. Aquele que não tem dignidade, se eu não o valorizar reconhecendo-o como irmão, morre. Aquele que é alvo de injustiça, se eu não lutar por ele, morre. Por isso, as palavras ofensivas, o desprezo do outro e a indiferença, são formas de matar, ainda que isso não pareça importar aos fariseus cumpridores da lei sem amor.

Não se trata apenas de não se vingar e não odiar, trata-se de perdoar e de amar o outro mesmo que ele seja um inimigo. Por isso, ainda que não tenha nada contra o meu irmão, mas sabendo que ele tem alguma coisa contra mim, não estou em condições de me apresentar diante de Deus, sem primeiro me reconciliar.

Não se trata apenas de não cometer adultério, trata-se de ser fiel num amor que supera a simples tentação da traição e chega à realização plena do amor. O adultério, entendido como o faziam os fariseus pode ser o resultado de um momento de fraqueza, Jesus alerta para o que permanece no coração e que não permite o amor pleno e puro do olhar até ao coração. O amor não permite deixar o outro numa situação de fragilidade que o leve a perder-se a si mesmo.

Não basta “não faltar ao juramento”, trata-se de manter uma linguagem coerente com a vida de modo que sim é sempre sim e não é sempre não, sem qualquer confusão entre palavras e atos.

Acima de tudo, as pessoas são mais importantes do que as leis, porque o cumprimento da lei sem amor pode gerar a morte quando deve ser fonte de vida.

Rezar a Palavra

Ensina-me, Senhor, os teus caminhos e inclina o meu coração para seguir os teus passos, porque a sabedoria dos homens é enganadora e as suas leis frias como a morte. Que o meu desejo de cumprir a tua lei não me afaste dos irmãos nem me torne indiferente para com os injustiçados, para que se revele o verdadeiro amor em todas as minhas ações.

Compromisso semanal

A verdadeira lei leva-me a dar de comer ao que tem fome, a lutar pela dignidade dos ofendidos e a reconciliar-me com os irmãos magoados.