“Não lembreis as coisas passadas nem penseis nas coisas antigas… Vou fazer algo de novo que está já a despontar”. Estas palavras do profeta Isaías, proclamadas na primeira leitura, são um convite a reconhecer que há um passado na nossa história, pessoal e comunitária, que tem coisas boas e coisas menos boas; que a atitude de olhar para trás, para o que sempre se fez, mesmo com as intervenções de Deus nesses tempos, pode impedir a abertura para as novas realidades onde Deus continua a actuar, mas de forma diferente. Deus realiza coisas novas, abre um caminho novo. Só Ele é capaz de renovar todas as coisas: do caminho para o Calvário surge a glorificação; dos fracassos, das dores e dos pecados Ele tira nova vida e perdão; por cima da aplicação fria da lei e dos juízos condenatórios, por mais bem fundamentados que sejam, ergue-se a bondade e a misericórdia de Deus…
Há um modo novo de se encontrar com o pecador, de evitar o julgamento que aplica as penas respectivas; aparece o perdão como forma de reabilitar a pessoa, que compromete, ao mesmo tempo, com a exigência de não pecar mais e converter-se… Os juízes e os que se consideravam cumpridores são os que se sentam no banco dos réus: verdadeiramente isto é novo e só se realiza com Cristo como diz S. Paulo (2ª leitura). Comparando tudo o que o apóstolo tinha feito no passado com o conhecimento e a vida que ele descobriu em Cristo, considera tudo o que ficou para trás como lixo, e convida a lançar-se para a frente, a continuar a correr para a meta em vista do que o Senhor lhe reserva, a ele e a todos nós.
1. A lógica da Lei e a misericórdia
– O Evangelho põe em confronto a aplicação da Lei de Moisés, que vem do passado, com uma possibilidade nova de julgar e decidir sobre determinados casos, em concreto, sobre o de uma mulher surpreendida a cometer adultério…
– Os representantes e executores desta legislação são sempre os mesmos: os fariseus e os escribas, que se consideram superiores aos outros, que não são como os publicanos porque cumprem todos os seus deveres, consignados na lei… Também o filho mais velho da parábola do Domingo passado se considerava ao mesmo nível (quando se dirige ao pai diz: “esse teu filho”, sinal de desprezo pelos que não são como eles…)
– A atitude de Jesus perante este caso que lhe é apresentado, e tantos outros da mesma natureza, desmascara as nossas lógicas, a imagem que fazemos de Deus e que, por vezes, nos distancia do próximo porque nos julgamos mais justos do que os outros…
– Vindo do monte das oliveiras, Jesus dirigiu-se ao templo e sentou-se para ensinar… Não é dito qual era o tema do ensino mas, certamente contrastava com o rigorismo dos escribas e dos fariseus tornando-se logo evidente quando deixa o seu assento de mestre para se inclinar a reflectir com humildade… Há uma jurisprudência que pode estar muito bem consolidada mas que não resolve os problemas e deixa de fora, tantas vezes, outros mais culpados… Pode-se perguntar: onde está o homem que levou aquela mulher a cometer adultério?…
– Jesus foi confrontado muitas vezes com julgamentos sobre o seu modo de proceder e o tipo de pessoas com quem Ele convivia. Recorde-se que quando Jesus foi a casa de Simão, um fariseu, e se aproximou dele uma mulher pecadora, logo começa o julgamento, a condenação da mulher e se questiona a atitude de Jesus: “se este homem fosse profeta, saberia quem é e de que espécie é a mulher que lhe está a tocar, porque é uma pecadora” (ver Lc 7,36-50) …
– Quando a atitude é de julgar sistematicamente os outros, o resultado é sempre a rejeição e o desprezo pelos que não têm em conta a lei e pelos que são considerados infractores e culpados…
– Na base do sistema normativo Jesus não coloca os códigos das leis, que legitimam o desprezo pelos outros, o julgamento e a condenação por parte de quem se considera o verdadeiro intérprete e com autoridade para executar as penas; Jesus coloca no centro a misericórdia, que protege a pessoa humana e a sua libertação…
2. O perdão não exclui a responsabilidades
– A mulher do Evangelho de hoje, como as outras com quem Jesus se encontra, não se regozijam com o que fizeram nem tão pouco procuram justificar-se. Por outro lado, o perdão e a misericórdia não conferem aos actos praticados qualquer licitude… A culpa objectiva deve ser sempre denunciada, mas a pessoa que comete o delito deve ser salva.
– A mulher, que não foi condenada, é admoestada com toda a clareza e sem desculpas: “vai e não tornes a pecar”… Os juízes, seguros das suas normas e sabedoria, são confrontados com uma pergunta que os compromete: “quem não tiver pecados, atire a primeira pedra”…
– O convite à conversão é sempre dirigido à pessoa para que aceite o perdão que Deus oferece e opte pelo caminho da felicidade; e às estruturas para que sejam colocadas ao serviço das pessoas… Só assim é que a humanidade se orienta para a Páscoa, para a libertação que Deus oferece a todos…