O ser humano é um peregrino nato. Nascemos para procurar e estabelecer relações de amor e fraternidade com todos os seres que estão neste mundo, onde nós fomos colocados por Deus. Se nalgum momento desistirmos deste objectivo, comprometemos a nossa existência porque ela tem também uma componente de relação com Deus. Em termos bíblicos, diz-se que nós somos chamados a fazer este percurso estando inseridos na Aliança: Deus ama-nos e quer continuamente restaurar esta história de amor porque, se sairmos dela, não subsistiremos. Muitas vezes Deus recompôs esta relação e, ao longo da Quaresma, temos recordado esses momentos da história da salvação: a aliança com Noé (1º Domingo da Quaresma), com Abraão, quando foi poupado o sacrifício do filho (2º Domingo), com Moisés e todo o povo (decálogo no 3º Domingo). Mas, esta aliança, na parte que implicava o povo com a sua fidelidade e o cumprimento das normas, foi quebrada porque o povo foi infiel, como ouvimos no domingo passado (1ª leitura do livro das Crónicas). Esta história, tantas vezes de infidelidades, mostra-nos que a condenação não é a última palavra de Deus: Ele veio para salvar e não para condenar (Evangelho do Domingo passado). Já o profeta Jeremias falava de uma aliança nova, que não se fundamenta num código legislativo que prevê sanções para quem não cumpre, mas no amor de Deus que é impresso no coração de cada homem (1ª leitura de hoje)
Esta Nova Aliança há-de ser selada pela vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, “o grão de trigo que morre para dar muito fruto”; n’Ele, a fidelidade divina e a humana conjugaram-se de maneira perfeita, de modo que deixa de haver lugar para a ruptura provocada pela desobediência humana pois, na morte de Jesus, fomos todos salvos.
1. A fidelidade de Jesus: entregar-se para que outros tenham vida
– Todos carregamos algumas cruzes na nossa vida: algumas sobrevêm inesperadamente: a pandemia, problemas de saúde, morte de familiares, problemas económicos…; outras são produto da sociedade em que vivemos: desemprego, injustiças, corrupção,…; às vezes até dentro da Igreja: escândalos; maus exemplos,…
– O Evangelho refere que há sempre gente que quer conhecer melhor Jesus, certamente porque Ele aponta caminhos para os problemas que a vida coloca. Foi o que aconteceu com aquele grupo de gregos que tinha ido a Jerusalém por ocasião da Festa: mostrou desejo de ver Jesus… Como Nicodemos (domingo passado) também querem ver a luz… Desta vez, não de noite, às escondidas, mas em plena luz do dia vão ter com Filipe para que este lhes proporcione um encontro…
– A resposta imediata de Jesus é: “Chegou a hora de o Filho do Homem ser glorificado”… A seguir ilustra esta resposta com a parábola do grão de trigo que tem de morrer para produzir fruto e, com esta imagem, aponta claramente para a morte e a ressurreição, para o seu mistério pascal: “quando eu for levantado da terra atrairei todos a mim”…
– Jesus aprendeu, na sua humanidade, a fidelidade a Deus… Num mundo sujeito ao pecado construiu a sua fidelidade na confiança e na obediência (ver as expressões do Evangelho: “Agora a minha alma está perturbada. E que hei-de dizer? Pai, salva-me desta hora? Mas, por causa disto é que eu cheguei a esta hora”)…
– O resultado foi saber morrer para dar vida… “Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto”…
– E Jesus convida-nos a entrar numa experiência de Deus como a sua, a incorporar-nos n’Ele, nesta arte de “perder para ganhar”…
2. Descentrar-se para ser humano
– Como Jesus, cada um de nós e toda a Igreja é convidada a descentrar-se, a viver para os outros… Mas isto só é possível a partir da experiência do conhecimento de Jesus.
– Jesus carregou com uma cruz pesada: “dirigiu preces e súplicas com grandes clamores e lágrimas para ser salvo da morte” (2ª leitura) e o Evangelho diz como Jesus se dirigiu ao Pai para o salvar daquela hora (recorde-se a agonia do Getsemani: “afasta de mim este cálice”…)
– Mas Jesus aceitou a vontade do Pai e não quis impor-se: “chegou a hora” do serviço, da entrega para a ressurreição… Sim, porque é como o grão de trigo: morre para ressuscitar e dar vida… É levantado da terra para atrair todos a Ele… O Evangelista acrescenta: “Falava deste modo, para indicar de que morte ia morrer”, isto é, crucificado.
3. Lutar aceitando a cruz
– Fazemos muitas tentativas para ultrapassar os nossos problemas: procuramos os melhores médicos, especialistas, os melhores centros… Unimos esforços para evitar contágios, superar a crise, lutar contra as estruturas injustas, salvar a natureza, optar pela vida contra tantas formas de morte… E acontece que, apesar de todas estas tentativas, a realidade da cruz subsiste… Porquê? Porque a solução dos problemas, ao contrário do que chegámos a supor, não está facilmente ao nosso alcance…
– Vamos aprendendo a aceitar, com humildade, as nossas limitações… Não podemos deixar de lutar, mas há que reconhecer os limites da realidade em que vivemos…
4. Saber morrer para viver
– Quer queiramos quer não, vamo-nos dando conta de que é preciso perder para viver… Mas, para perceber o alcance desta afirmação, é preciso ter fé, é preciso “saber perder para ganhar a vida” colocando-nos nas mãos do Pai como Jesus…
– Por causa da cruz de Cristo as nossas cruzes não são a última palavra mas convertem-se em caminhos de ressurreição…
– O mistério Pascal de que tanto falamos é exactamente isto: entregar-se dando a vida para alcançar a vida eterna… Porque não há ressurreição sem ter havido morte… E é preciso saber morrer, na obediência ao Pai, para ser glorificado…