Uma felicidade que chora

 
“Quero é viver…” Este é o grito que surge das entranhas de uma sociedade que impõe a todos os padrões de uma ditadura da felicidade. Chegou a hora de gritar: Não quero ser feliz! Quero viver, ainda que isso implique chorar. Quero os pés a pisar o chão, sentir o vento frio no rosto, experimentar a brisa suave à sombra de uma árvore e saciar-me na água colhida da fonte com as mãos abertas para o céu.
Não quero a felicidadezinha do bem-estar, quero sentir a dor dos que padecem, colher as lágrimas dos que choram, lutar pela paz e pela justiça, deitar-me com os injustiçados nas arcadas das grandes cidades e saltar as vedações da vergonha que encerram milhares de homens, deportados para o meio do nada. Quero repartir o pão dos pobres e apertar entre as mãos os corações puros, mansos e humildes.
Não quero a felicidade de viveiro, quero o risco de viver em campo aberto!

LEITURA I Sf 2, 3; 3, 12-13

Procurai o Senhor, vós todos os humildes da terra, que obedeceis aos seus mandamentos. Procurai a justiça, procurai a humildade; talvez encontreis proteção no dia da ira do Senhor. Só deixarei ficar no meio de ti um povo pobre e humilde, que buscará refúgio no nome do Senhor. O resto de Israel não voltará a cometer injustiças, não tornará a dizer mentiras, nem mais se encontrará na sua boca uma língua enganadora. Por isso, terão pastagem e repouso, sem ninguém que os perturbe.

Sofonias fala no reino de Judá, em Jerusalém, durante o reinado de Josias, século VII a.C., e anuncia o “dia do Senhor”. Será um “dia terrível” para todas as nações e também para os chefes de Judá que se deixaram contaminar pela idolatria e desprezam os pobres e humildes. Será, porém, um dia de salvação universal para os humildes da terra e para o resto de Israel que permanece fiel ao Senhor.

SALMO RESPONSORIAL Sl 145 (146), 7.8-9a.9bc-10
O Salmo 145 é um hino que convida a olhar para o Senhor como o verdadeiro Rei. Não há rei humano que se compare ao Senhor, porque voltam ao pó da terra e aí terminam os seus projetos. Bem-aventurado é aquele que põe a confiança no Senhor, criador de todas as coisas, porque ele cuida dos que são deserdados, física, social, económica, familiar e moralmente. Estes encontram nele o Deus/Rei que lhes convém, porque cuida eternamente.

LEITURA II 1Cor 1, 26-31

Irmãos: Vede quem sois vós, os que Deus chamou: não há muitos sábios, naturalmente falando, nem muitos influentes, nem muitos bem-nascidos. Mas Deus escolheu o que é louco aos olhos do mundo, para confundir os sábios; escolheu o que é fraco, para confundir o forte; escolheu o que é vil e desprezível, o que nada vale aos olhos do mundo, para reduzir a nada aquilo que vale, a fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus. É por Ele que vós estais em Cristo Jesus, o qual Se tornou para nós sabedoria de Deus, justiça, santidade e redenção. Deste modo, conforme está escrito, «quem se gloria deve gloriar-se no Senhor».

Paulo revela que é Deus quem pode salvar e salva na cruz de Jesus. Prova disso é que entre os chamados à fé, que formam a comunidade de Corinto, não há bem-nascidos, nem sábios, nem importantes, mas a todos Deus chamou a viver em Cristo. Escolhendo o que é fraco aos olhos dos homens, Deus confunde os poderosos.

EVANGELHO Mt 5, 1-12a

Naquele tempo, ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-Se. Rodearam-n’O os discípulos, e Ele começou a ensiná-los, dizendo: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus. Bem-aventurados os humildes, porque possuirão a terra. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos Céus. Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa».

O texto de Mateus descreve as Bem-aventuranças proclamadas por Jesus no cimo do monte. Sentado, como Moisés no monte Sinai, ele apresenta uma nova lei, que subverte a nossa lógica e revela a origem da felicidade. Trata-se de um caminho para quem quer arriscar tudo na busca da felicidade permanente e não de uma felicidadezinha passageira.

Reflexão da Palavra

Estamos diante de textos que revelam o mais profundo do coração de Deus, da sua essência e identidade. Levam-nos mais longe do que somos capazes por nós mesmos. E fazem-no numa lógica que põe em causa a nossa forma de pensar.

Sofonias, habituado a conviver com a aristocracia do seu tempo, é mesmo apresentado no primeiro versículo com ligações a gente importante, está por dentro do xadrez político e económico da época. Reconhece o orgulho das nações poderosas que querem dominar sobre as mais fracas e dos chefes de Israel, que humilham e exploram os pobres, assim como a sua obstinação no pecado da idolatria, recusando submeter-se ao Deus verdadeiro. Contemplando a realidade Sofonias torna-se arauto da palavra de Deus contra os orgulhosos e a favor dos pobres e humildes.

Os três capítulos desta profecia dividem-se em três secções. O primeiro versículo da leitura deste domingo é tirado da primeira secção, ao passo que os outros dois estão na terceira. Depois de anunciar o juízo do Senhor sobre o orgulho dos poderosos, com expressões como “destruirei”, “exterminarei”, anuncia o “dia do Senhor”. Esse dia será terrível para as nações orgulhosas e também para os chefes de Israel. Será uma sentença universal, para que Israel, ao ver o extermínio das nações, aprenda a lição e se converta, enquanto há tempo. Se não se converter será também exterminado.

No entanto, ficará um resto formado pelos humildes da terra, os que cumprem a lei do Senhor, os que procuram a justiça, porque esses encontrarão “abrigo no dia da cólera do Senhor”. Este resto “um povo pobre e humilde” são os que “procuram refúgio no nome do Senhor” e nunca mais cometerão a iniquidade.

Para este resto de Israel, Deus é o Rei em quem vale a pena confiar. Os reis da terra não são de fiar, como diz o Salmo 146 “não punhais a vossa confiança nos poderosos”, mas ponde a vossa felicidade no Deus de Jacob, porque ele é o criador, o Deus fiel, salvador, libertador, um Deus que levanta, ampara e ama os que estão prostrados.

Este é o Deus revelado também por Jesus no texto das Bem-aventuranças. O longo sermão da montanha apresentado por Mateus em três capítulos, começa com o texto das nove proclamações da felicidade. Aqui, Jesus revela que Deus está ao lado dos que vivem circunstâncias difíceis, que implicam luta, esforço, entrega, lágrimas e incompreensões.

Como Moisés no monte Sinai, Jesus, sentado no cimo do monte, entrega aos discípulos a nova lei em nove anúncios de felicidade e um convite à alegria. Moisés, no deserto, tem diante de si um povo pobre que passa fome e sede, e Jesus tem diante de si os discípulos de todos os tempos e oferece-lhes um caminho para a felicidade.

Um caminho ao alcance dos pequenos, dos pobres e simples, como os membros da comunidade de Corinto. Ali, não há ricos, nem gente importante, nem gente culta. Há apenas homens simples que vivem do seu trabalho, alguns até escravos, que foram escolhidos por Cristo. Através destes últimos é que Deus vai confundir os sábios e os poderosos.

Meditação da Palavra

A riqueza do encontro com a vida, com os outros, com o mundo e com Deus foi trocada pela imposição de um padrão de felicidade ao qual nos temos que ajustar, se não queremos ficar à margem e acabar considerando-nos os mais infelizes dos mortais. Desde meados do século passado que os centros de psicologia na América se interessaram pela felicidade, tirando conclusões que exportaram depois para a política, a economia, a educação… a obrigação de ser feliz tornou-se uma ideia que rapidamente se espalhou pelo mundo. Hoje, todos querem ser felizes e todos prometem uma felicidade que está ligada à satisfação pessoal, ao prazer, e tem no consumo o seu máximo expoente. Ter, passou a ser sinal de felicidade e, não ter, sinal de infelicidade. Entretanto, podemos apaziguar a nossa insatisfação criando ídolos entre aqueles que têm tudo e são tornados famosos.

A ditadura da felicidade produz uma grande massa de infelizes. Os “orgulhosos”, os que conseguem ter cada vez mais, exploram e servem-se dos humilhados, através de uma economia selvagem que tem origem na indiferença e no poder sobre os que não conseguem atingir esse objetivo. São os orgulhosos de que fala o profeta Sofonias. A estes o Senhor anuncia a chegada do “dia terrível” em que “exterminará” e “destruirá”, “porque não procuram o Senhor”, procuram-se a si próprios.

O orgulho dos poderosos deixa para trás aqueles que o Senhor ama e protege, os oprimidos, os que têm fome, os cativos, os cegos, os abatidos, os justos, os órfãos e as viúvas.

A felicidade não vem por decreto nem é garantia de um ministério da felicidade. A felicidade é um produto da sociedade moderna que vende bem, porque vende tudo o que é inventado desde que leve o selo de garantia: “compra isto e serás feliz”.

Sofonias revela a escolha subversiva de Deus. Ele prefere os pobres aos orgulhosos. Para ele, proteger os pobres tem sentido, é fonte de vida e lugar da realização plena. É isso que afirma também S. Paulo na carta aos Coríntios quando diz: “Deus escolheu o que é louco aos olhos do mundo para confundir os sábios; escolheu o que é fraco, para confundir o forte; escolheu o que é vil e desprezível, o que nada vale aos olhos do mundo, para reduzir a nada aquilo que vale, a fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus”. Isto revela a vã glória do mundo, quando aponta como caminho da felicidade a aparência dos ricos e dos que alcançam sucesso. De facto, os pobres olham para os ricos como um sinal de felicidade e esperam que um dia isso possa acontecer com eles. No entanto, não é a carteira cheia de dinheiro e a vida cheia de sucesso que faz uma pessoa feliz, mas aquilo que enche o coração de alegria.

No Evangelho, Jesus, propõe um caminho de felicidade contrário ao da sociedade consumista. Ele vem declarar felizes os que parecem não o ser, aqueles que se julgam a si mesmo infelizes, pelo odioso das causas que abraçaram como sentido para as suas vidas.

De facto, a pobreza, as lágrimas, a misericórdia, a mansidão, a pureza de coração, a luta pela paz e pela justiça, a proteção dos injustiçados e dos perseguidos, não apresenta sinais de felicidade. Apesar disso, Jesus não abdica da sua escolha. Não são os sábios, os bem-nascidos, os detentores do poder ou os que sobressaem aos olhos dos homens que Deus escolhe. Ele prefere os que são pobres, humildes e simples, que vivem do seu trabalho e experimentam no dia a dia, como suas, a dor, o sofrimento e as lutas dos que sofrem. Assim devem ser os cristãos de Corinto, assim, devem ser os discípulos de Jesus.

Os discípulos de Jesus devem ser primeiros a entender que viver é muito mais do que ser feliz. Porque viver é gastar a vida pela causa dos que não têm vida, para que a tenham. Viver não é guardar para si, guardar-se a si mesmo, com medo de se perder. Viver é gastar-se pelos outros e, os que assim fazem, são aqueles que Jesus considera felizes. Gastar-se pelos outros e por causas que promovem a dignidade dos infelizes não atrai nenhum benefício social, pelo contrário, atrai o mistério da cruz. E é precisamente aí que Jesus vê a fonte da alegria. Quando tudo isto vos acontecer, “alegrai-vos”. Quando perderdes aos olhos dos homens, “alegrai-vos” porque ganhais aos olhos de Deus.

Rezar a Palavra

Quero ser, Senhor, daqueles que não precisam de se impor, para garantir os seus direitos numa sociedade que impõe um padrão único de felicidade. Quero assumir como minhas as dores e as lágrimas dos que suportam as dificuldades de cada dia e carregar em mim a confiança que pode levantar do chão os que andam prostrados. Quero ser sinal de esperança para os que já não acreditam ser possível a alegria.

Compromisso semanal

Esta semana vou olhar à minha volta e descobrir nos pobres, simples e humildes, uma fonte de renovação da minha própria forma de pensar a vida.