ou Domingo da Palavra de Deus
Na periferia Jesus chama pescadores de homens
As palavras às vezes atraiçoam as intenções, as relações, a verdade. Atraiçoam-nos e atraiçoam até as nossas certezas e seguranças.
As palavras têm em si mesmas uma força construtora, capaz de edificar grandes projetos, cidades, países, alianças, mas, por vezes, no meio de tudo o que é grande, poderoso, seguro e certo, uma única palavra pode ser suficiente para desmoronar e reduzir a cinzas o que era indestrutível.
A Palavra de Deus é a origem de todas as coisas. Deus fala e tudo aparece. A sua Palavra é espírito e vida, mais cortante que uma espada de dois gumes, penetra até à medula, atinge as articulações. É como a chuva, não volta para o céu sem produzir efeito. Tem o poder de curar os doentes, levantar os que estão prostrados e ressuscitar os que caíram na armadilha da morte.
LEITURA I Is 8, 23b – 9, 3 (9, 1-4)
Assim como no tempo passado foi humilhada a terra de Zabulão e de Neftali, também no futuro será coberto de glória o caminho do mar, o Além do Jordão, a Galileia dos gentios. O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; para aqueles que habitavam nas sombras da morte uma luz se levantou. Multiplicastes a sua alegria, aumentastes o seu contentamento. Rejubilam na vossa presença, como os que se alegram no tempo da colheita, como exultam os que repartem despojos. Vós quebrastes, como no dia de Madiã, o jugo que pesava sobre o povo, o madeiro que ele tinha sobre os ombros e o bastão do opressor.
As regiões de Zabulão e Neftali estão na fronteira de Israel com o mundo pagão e são ponto de passagem para as caravanas que seguem para o mar e descem ao Egito. Em contacto com os pagãos, as populações misturaram-se com povos estrangeiros e assumiram alguns dos seus costumes. Com isso, deixou de se ouvir a Palavra de Deus, obscureceu-se a fé, gerou-se grande desconfiança nas tribos de Israel em relação àquela região. O profeta anuncia uma luz que devolverá a alegria a este povo.
SALMO RESPONSORIAL Sl 26 (27), 1.4.13-14 (R. 1a)
Perante situações que causam medo, como pode ser a guerra, a rejeição por parte do pai ou da mãe ou uma calúnia, é necessária a confiança. O salmo 27 apela a esta confiança inabalável, que não vence os inimigos, não traz de volta o amor paterno, nem desfaz a calúnia, mas vence o medo que impede de ver a Deus e habitar na sua casa.
LEITURA II 1Cor 1, 10-13.17
Irmãos: Rogo-vos, pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que faleis todos a mesma linguagem e que não haja divisões entre vós, permanecendo bem unidos, no mesmo pensar e no mesmo agir. Eu soube, meus irmãos, pela gente de Cloé, que há divisões entre vós, que há entre vós quem diga: «Eu sou de Paulo», «eu de Apolo», «eu de Pedro», «eu de Cristo». Estará Cristo dividido? Porventura Paulo foi crucificado por vós? Foi em nome de Paulo que recebestes o Batismo? Na verdade, Cristo não me enviou para batizar, mas para anunciar o Evangelho; não, porém, com sabedoria de palavras, a fim de não desvirtuar a cruz de Cristo.
As divisões presentes na comunidade de Corinto levam Paulo a apelar à união. A comunidade é constituída por pessoas de origem judaica e de origem pagã. Uns foram evangelizados por Paulo, outros por Apolo e outros por Pedro. Reunidos na mesma comunidade criaram grupos separados. Paulo chama-os à verdade: todos pertencemos a Cristo e fomos salvos na sua cruz.
EVANGELHO Mt 4, 12-23
Quando Jesus ouviu dizer que João Batista fora preso, retirou-Se para a Galileia. Deixou Nazaré e foi habitar em Cafarnaum, terra à beira-mar, no território de Zabulão e Neftali. Assim se cumpria o que o profeta Isaías anunciara, ao dizer: «Terra de Zabulão e terra de Neftali, caminho do mar, além do Jordão, Galileia dos gentios: o povo que vivia nas trevas viu uma grande luz; para aqueles que habitavam na sombria região da morte, uma luz se levantou». Desde então, Jesus começou a pregar: «Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos Céus». Caminhando ao longo do mar da Galileia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. Disse-lhes Jesus: «Vinde e segui-Me, e farei de vós pescadores de homens». Eles deixaram logo as redes e seguiram-n’O. Um pouco mais adiante, viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João, que estavam no barco, na companhia de seu pai Zebedeu, a consertar as redes. Jesus chamou-os, e eles, deixando o barco e o pai, seguiram-n’O. Depois começou a percorrer toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do reino e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo.
Para se cumprirem as Escrituras, Jesus vai para Cafarnaum, na região de Zabulão e Neftali, terra humilhada, infiel, rejeitada e deprimida, para iniciar aí a sua missão com o anúncio da chegada do Reino dos Céus. Ali escolhe os primeiros discípulos que se comprometem a segui-lo até ao fim, assumindo a mesma missão de anunciar e curar e deixando tudo o que fazia parte das suas vidas até então.
Reflexão da Palavra
As palavras de Isaías, reunidas no texto que serve de primeira leitura, têm como contexto o anúncio do Messias, o nascimento de um menino, o Emanuel, que é dom de Deus, que vem como luz que brilha nas trevas, como escutamos na noite de Natal.
O texto começa por recordar aquele tempo de humilhação suportado pelos descendentes de Zabulão e Neftali, filhos de Jacob, que ocuparam o território a norte de Israel, junto à Assíria, fazendo fronteira com os gentios. O contacto com os assírios e outros povos pagãos que passavam por ali, assim como o facto de terem sido os primeiros israelitas dominados pelos assírios e Babilónios e deportados para o exílio, com as consequências que advinham desse domínio, fez com que as tribos do sul os considerassem, mesmo depois do exílio, um povo infiel.
O profeta anuncia que esta humilhação se vai transformar em alegria redobrada. A sua alegria será como a dos que recolhem os frutos na colheita ou os que, vitoriosos da batalha, recolhem os despojos. Será como uma luz para aqueles que, pela humilhação sofrida, estão nas sombras da morte.
A profecia de Isaías surge no evangelho de Mateus a provar que Jesus é o Messias. Ele, ‘sendo de Nazaré’ deixa a sua casa e vai habitar em Cafarnaum, na Galileia, que Mateus insere no território de Zabulão e Neftali, para se cumprirem as Escrituras. Desta forma, Jesus é apresentado como aquele de quem fala Isaías e que vem como a luz que brilha para os que estão na escuridão, por serem infiéis, e também para os gentios, porque a sua missão é universal. Aquela luz é a Palavra de Jesus que convida à conversão: “Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos Céus”. Quer dizer, chegou o tempo em que é Deus quem governa o seu povo e o salva definitivamente.
O texto evangélico avança com os primeiros passos da missão de Jesus que, estando em Cafarnaum, terra à beira do Lago da Galileia, encontra os pescadores na praia tratando dos barcos e das redes. Aparentemente simples, o relato esconde uma mensagem teológica muito forte.
Primeiro percebe-se que o chamamento dos discípulos está ligado ao anúncio do Reino, ao evangelho. A Palavra de Jesus, sobre a chegada do Reino, é chamamento que implica uma resposta. O chamamento concentra-se na expressão “segue-me” e tem na atitude dos pescadores uma resposta: “deixaram ‘tudo’ e seguiram-no”. Deixaram o barco, as redes, e, no caso do segundo grupo, deixaram também o pai. Aceitar o reino e seguir Jesus implica ir com ele, partilhar com ele a vida e adquirir uma nova família.
O Evangelho convida a seguir Jesus e não a seguir discípulos de Jesus. Paulo, à comunidade de Corinto, chama a atenção porque eles estão a confundir o discípulo com o mestre e, por isso, seguem Paulo, Apolo ou Pedro, em vez de seguirem Jesus que foi quem deu a vida por eles. E este seguimento humano, a partir das características que agradam a cada um, está a provocar divisões na comunidade e a desvirtuar a cruz de Cristo.
Meditação da Palavra
O Evangelho começa por fazer referência à prisão de João Batista, o que indicia o fim trágico da vida e missão de Jesus e o destino daqueles que o seguem como discípulos.
Jesus é apresentado por Mateus como aquela luz que o profeta Isaías tinha anunciado para a região de Zabulão e Neftali, a única luz capaz de transformar a noite em que os habitantes desta região estão mergulhados, em dia de alegria, porque Deus está no meio do seu povo. Esta luz é o Emanuel, Deus connosco, próximo do seu povo.
Dar início ao seu ministério numa região humilhada pelo seu passado, marcada pela desconfiança das autoridades judaicas de Jerusalém e confundida pela mistura de raças e de credos, não é só o cumprimento da profecia de Isaías, é sobretudo manifestação do destino universal de Jesus e da sua missão. A salvação destina-se a todas as nações.
Por outro lado, esta atitude manifesta o interesse de Jesus pelas periferias religiosas, sociais, económicas e políticas. Uma preferência pelos excluídos e ostracizados. A luz brilha tanto mais intensamente quanto mais densas são as trevas da humanidade. Os que julgam estar na luz, dificilmente acolhem a luz. Talvez por isso, Jesus escolhe a ‘região da morte’ para fazer brilhar a sua luz que é chamamento à conversão e ao Reino: “Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos Céus”.
A luz que brilhou na Galileia dos gentios aproxima-se da realidade de cada homem, na simplicidade da sua vida, do seu trabalho, da sua família e abre aí o caminho do Reino, que é vida nova em Cristo. Mateus refere que Jesus escolheu os discípulos entre os pescadores do lago. São homens que já não esperam mais nada além do resultado da pesca de cada madrugada, para depois ocuparem o dia a consertar o barco e as redes, seguindo os passos dos seus antepassados.
A chegada de Jesus projeta uma nova luz sobre as suas vidas e mostra-lhes uma nova forma de se gastarem, “farei de vós pescadores de homens”. Que significa isso? Significa encarnar a vida e missão do próprio mestre, seguindo-o, vivendo com ele e abraçando o mesmo destino, a cruz. Ou seja, comprometer-se com as pessoas, iluminando-as com o anúncio do Reino através de palavras e sinais. Imitando Jesus que, “começou a percorrer toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do reino e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo”.
Jesus ensina aos discípulos que a missão implica ir, por toda a Galileia, ao encontro dos que vivem na escuridão e ensinar, proclamar e curar as suas enfermidades. É isto que os cristãos de Corinto não entenderam. A divisão da comunidade, capaz de destruir o evangelho pregado por Paulo, Apolo e Pedro, não deixa resplandecer a luz de Cristo. A divisão da comunidade fala da desgraça em que caiu Israel quando permitiu a divisão do povo em dois reinos facilmente destruídos pelos assírios. A divisão da comunidade não fala da luz de Cristo, da salvação que ele oferece na sua cruz.
A missão da Igreja não é ficar a olhar para as divisões internas, é levar a luz da Palavra de Jesus a todos os que estão feridos nas periferias do mundo. O Domingo da Palavra de Deus é uma proposta para reconhecer e verificar o poder salvador da Palavra de Deus.
Rezar a Palavra
Que a tua Palavra, Senhor, seja em cada dia o alimento de todos os que chamaste para te seguirem, a começar pelo Santo Padre, o nosso Bispo, o nosso pároco, os orientadores das celebrações dominicais, os ministros da comunhão, os catequistas e todos os que, no seu dia a dia, levam nos lábios a esperança do evangelho. Que em todos se concretize a eficácia dos gestos e das palavras de Jesus.
Compromisso semanal
Vou prestar atenção à Palavra de Deus que está presente na celebração comunitária e na realidade dos que são desprezados, abandonados e ostracizados pela vida, para fazer chegar aí a confiança no Deus que salva.