A pandemia está a obrigar-nos a repensar muitas coisas e põe em causa a nossa existência e todo o sistema de relações com os outros, com o trabalho, com a política, com a saúde, e também com a nossa prática religiosa e de relação com Deus. O domingo era celebrado no templo, que chamamos Igreja, o lugar da reunião e da celebração da Eucaristia; mas, agora, para controlar os contágios, ficámos sujeitos a confinamentos que nos impedem o encontro e a participação presencial no lugar destinado ao culto. E é ocasião para perguntar: o edifício onde nos encontrávamos aos domingos, e que agora não frequentamos com a mesma regularidade, é ou não importante? Costuma dizer-se que só valorizamos realmente as coisas quando nos são tiradas ou nos impedem de as usar. Pode ser que se passe assim com a nossa reunião litúrgica dominical na Igreja.

  1. O sinal do templo

– Desde que os homens começaram a construir casas também reservaram um espaço sagrado para o culto e muitas religiões são conhecidas, precisamente, pelos templos que construíram…
– Em Israel, cedo se pensou na construção de um templo nacional em Jerusalém: David quis construí-lo (2 Sm 7,2), mas foi Salomão que concretizou o projecto de David… Antes, o símbolo da presença de Deus, a Arca da Aliança, estava numa tenda e depois passou a residir num edifício de pedras, estável…
– Uma vez construído, o templo transformou-se numa das grandes instituições da religião de Israel… Ao tempo de Jesus era um lugar para onde todos convergiam nas grandes festas de peregrinação (Páscoa, Pentecostes, Tabernáculos…) Por este motivo, converteu-se também em lugar de negócio porque era preciso comprar as vítimas para os sacrifícios e outras ofertas… O ambiente à volta do templo era de comércio e actividades económicas, também porque muita gente vinha de fora da cidade de Jerusalém e passava ali alguns dias…

  1. Gesto profético de denúncia

– Como diz o Evangelho, Jesus subiu a Jerusalém por ocasião de uma destas festas, a maior de todas, a Páscoa, e defrontou-se com este espectáculo comercial… A sua atitude, de pegar num chicote de cordas e começar a bater em tudo derrubando as mesas, causa-nos alguma surpresa porque nos parece que Jesus usou de violência…
– O seu gesto, porém, é de zelo e não de fúria, na linha da denúncia que os profetas do A.T. também fizeram ao culto praticado no templo. Recordamos, sobretudo, o profeta Jeremias que, por duas vezes (Jr 7 e 26) condena os que pensavam que, por terem o templo de Jerusalém e ali se praticar o culto ao Deus de Israel, estavam a salvo de todas as desgraças … Jesus não ataca as pessoas mas a estrutura e o modo como as pessoas entendiam o culto ali praticado… O que condena é o mercantilismo religioso, o negócio em proveito próprio sob a capa de benefícios religiosos… Condena-se, igualmente, o ritualismo vazio, que não compromete as pessoas nas suas responsabilidades sociais, e a ideia de um nacionalismo religioso muito próprio de alguns grupos religiosos ao tempo de Jesus e de outras épocas da história…

  1. O templo e as leis

– A atitude de Jesus pode levar-nos a pensar que não precisamos de lugares de culto, da mesma maneira que também se pode questionar a existência de leis como as que ouvimos enunciar no chamado decálogo, as dez palavras ou os dez mandamentos, já que algumas parecem estar formuladas num tipo de linguagem ultrapassada (1ª leitura).
– Por exemplo: a questão da adoração de outros deuses ou dos ídolos parece supor uma sociedade religiosa que é ameaçada pelo politeísmo que pode pôr em causa o reconhecimento do único Deus. Hoje, pode haver quem pense que o mandamento deveria ser formulado de outra maneira porque as questões religiosas são diferentes…
– Mas, não é esse o caminho e o sentido do mandamento. Hoje também existe o perigo de se deixar dominar por outros deuses e de prestar culto a ídolos, sobretudo ao “bezerro de ouro” que hoje dá pelo nome de “dinheiro, economia e mercado…”
– O Papa Francisco recorda-nos em vários documentos, desde a Evangelii Gaudium até à Fratelli Tutti, que esta idolatria é a causa da nossa situação de crise actual porque, na sua origem, está uma crise antropológica, de negação da primazia do ser humano: “…criámos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (Ex 32,1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem objectivo verdadeiramente humano” (EG 55). O ser humano fica reduzido apenas a uma das suas necessidades: o consumo…
– Jesus reage contra a mentira do culto a Deus que põe o negócio em primeiro lugar, que faz da “casa de Deus”, o templo, um lugar de supremacia do económico, em vez de promover a justiça e a fraternidade entre todos como deve ser a habitação de Deus, seja em que época da história for…

  1. As pessoas acima de tudo

– Nem o templo nem as leis nos podem desviar do que, para Jesus, é essencial: as pessoas… Nós, os cristãos, também temos templos, e eles também são, de algum modo, a nossa marca… Mas o maior sinal e o mais decisivo é cada um de nós… Paulo dirá que o verdadeiro templo somos nós… E hoje também nos diz que Cristo morto e ressuscitado é o centro da nossa fé (2ª leitura)… Na medida em que a nossa conduta for orientada pela Lei de Deus (1ª leitura) seremos transformados em sinal de Deus…
– Se o templo de Jesus é o seu próprio corpo, isto significa que, acima de tudo, está a pessoa… Colocar a pessoa em primeiro lugar não é uma mera questão teórica e a sua aplicação prática exige que olhemos para Cristo crucificado e mudemos a nossa mentalidade consumista, relativizando o poder do dinheiro que se tem afirmado como “deus da economia sem objectivos verdadeiramente humanos” e que se impõe segundo esquemas ditatoriais…
– Precisamos de nos voltar para a “sabedoria da cruz”: “o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (Paulo, 2ª leitura)