A sede, a rocha e a água
Escavo cisternas no meio do deserto em busca de água. Escavo fundo em mim poços de lodo e água estagnada. Corro pelo deserto de balde na mão em busca de um poço, uma fonte, um regato de água para saciar-me, devorado pela sede que é mais forte a cada passo.
Encontro um poço, um homem sentado num poço, uma rocha e uma vara. É meio dia, a luz intensa o calor abrasador. “Se conhecesses o dom de Deus e quem é Aquele que te diz: ‘Dá-Me de beber’, tu é que Lhe pedirias e Ele te daria água viva”; “donde Te vem a água viva?”; “aquele que beber da água que Eu lhe der nunca mais terá sede”; “Senhor, dá-me dessa água”.
LEITURA I Ex 17, 3-7
Naqueles dias, o povo israelita, atormentado pela sede, começou a altercar com Moisés, dizendo: «Porque nos tiraste do Egito? Para nos deixares morrer à sede, a nós, aos nossos filhos e aos nossos rebanhos?». Então Moisés clamou ao Senhor, dizendo: «Que hei de fazer a este povo? Pouco falta para me apedrejarem». O Senhor respondeu a Moisés: «Passa para a frente do povo e leva contigo alguns anciãos de Israel. Toma na mão a vara com que fustigaste o Rio e põe-te a caminho. Eu estarei diante de ti, sobre o rochedo, no monte Horeb. Baterás no rochedo e dele sairá água; então o povo poderá beber». Moisés assim fez à vista dos anciãos de Israel. E chamou àquele lugar Massa e Meriba, por causa da altercação dos filhos de Israel e por terem tentado o Senhor, ao dizerem: «O Senhor está ou não no meio de nós?».
Os que passaram o Mar Vermelho a pé enxuto e viram as águas amargas de Mara tornarem-se doces, têm dificuldade em acreditar que o Senhor lhes pode saciar a sede, uma vez mais, no meio do deserto. A vara de Moisés que abriu as águas do Mar Vermelho, também pode fazer sair água da rocha do Horeb, porque nele está o poder de Deus.
Salmo responsorial Sl 94 (95), 1-2.6-7.8-9 (R. cf. 8)
Ao entoar o salmo 94 somos convidados a ir à presença do Senhor, com alegria, para o aclamar, louvar e adorar, porque ele é o nosso Deus. Somos despertados para o exercício da escuta, para não acontecer como em Meribá e Massá, quando o povo desafiou o Senhor e o pôs à prova, preferindo reclamar em vez de abrir o coração para escutar.
LEITURA II Rm 5, 1-2.5-8
Irmãos: Tendo sido justificados pela fé, estamos em paz com Deus, por Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual temos acesso, na fé, a esta graça em que permanecemos e nos gloriamos, apoiados na esperança da glória de Deus. Ora, a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. Quando ainda éramos fracos, Cristo morreu pelos ímpios no tempo determinado. Dificilmente alguém morre por um justo; por um homem bom, talvez alguém tivesse a coragem de morrer. Mas Deus prova assim o seu amor para connosco: Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores.
Fomos justificados na morte de Cristo, porque ele morreu por nós apesar de sermos pecadores. E nele, pela fé, encontrámos a paz e a esperança, que brotam do amor de Deus derramado em nossos corações pelo Espírito Santo.
EVANGELHO Forma longa Jo 4, 5-42
Naquele tempo, chegou Jesus a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, junto da propriedade que Jacob tinha dado a seu filho José, onde estava o poço de Jacob. Jesus, cansado da caminhada, sentou-Se à beira do poço. Era por volta do meio-dia. Veio uma mulher da Samaria para tirar água. Disse-lhe Jesus: «Dá-Me de beber». Os discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos. Respondeu-Lhe a samaritana: «Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber, sendo eu samaritana?». De facto, os judeus não se dão com os samaritanos. Disse-lhe Jesus: «Se conhecesses o dom de Deus e quem é Aquele que te diz: ‘Dá-Me de beber’, tu é que Lhe pedirias e Ele te daria água viva». Respondeu-Lhe a mulher: «Senhor, Tu nem sequer tens um balde, e o poço é fundo: donde Te vem a água viva? Serás Tu maior do que o nosso pai Jacob, que nos deu este poço, do qual ele mesmo bebeu, com os seus filhos e os seus rebanhos?». Disse-Lhe Jesus: «Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede. Mas aquele que beber da água que Eu lhe der nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der tornar-se-á nele uma nascente que jorra para a vida eterna». «Senhor, – suplicou a mulher – dá-me dessa água, para que eu não sinta mais sede e não tenha de vir aqui buscá-la». Disse-lhe Jesus: «Vai chamar o teu marido e volta aqui». Respondeu-lhe a mulher: «Não tenho marido». Jesus replicou: «Disseste bem que não tens marido, pois tiveste cinco, e aquele que tens agora não é teu marido. Neste ponto falaste verdade». Disse-lhe a mulher: «Senhor, vejo que és profeta. Os nossos antepassados adoraram neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar». Disse-lhe Jesus: «Mulher, acredita em Mim: Vai chegar a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos Judeus. Mas vai chegar a hora – e já chegou – em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são esses os adoradores que o Pai deseja. Deus é espírito, e os seus adoradores devem adorá-l’O em espírito e verdade». Disse-Lhe a mulher: «Eu sei que há de vir o Messias, isto é, Aquele que chamam Cristo. Quando vier, há de anunciar-nos todas as coisas». Respondeu-lhe Jesus: «Sou Eu, que estou a falar contigo». Nisto, chegaram os discípulos e ficaram admirados por Ele estar a falar com aquela mulher, mas nenhum deles Lhe perguntou: «Que pretendes?», ou então: «Porque falas com ela?». A mulher deixou a bilha, correu à cidade e falou a todos: «Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será Ele o Messias?». Eles saíram da cidade e vieram ter com Jesus. Entretanto, os discípulos insistiam com Ele, dizendo: «Mestre, come». Mas Ele respondeu-lhes: «Eu tenho um alimento para comer que vós não conheceis». Os discípulos perguntavam uns aos outros: «Porventura alguém Lhe trouxe de comer?». Disse-lhes Jesus: «O meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou e realizar a sua obra. Não dizeis vós que dentro de quatro meses chegará o tempo da colheita? Pois bem, Eu digo-vos: Erguei os olhos e vede os campos, que já estão loiros para a ceifa. Já o ceifeiro recebe o salário e recolhe o fruto para a vida eterna e, deste modo, se alegra o semeador juntamente com o ceifeiro. Nisto se verifica o ditado: ‘Um é o que semeia e outro o que ceifa’. Eu mandei-vos ceifar o que não trabalhastes. Outros trabalharam e vós aproveitais-vos do seu trabalho». Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram em Jesus, por causa da palavra da mulher, que testemunhava: «Ele disse-me tudo o que eu fiz». Por isso os samaritanos, quando vieram ao encontro de Jesus, pediram-Lhe que ficasse com eles. E ficou lá dois dias. Ao ouvi-l’O, muitos acreditaram e diziam à mulher: «Já não é por causa das tuas palavras que acreditamos. Nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é realmente o Salvador do mundo».
A Samaritana foi ao poço a uma hora em que esperava não se cruzar com ninguém. Naquele dia encontrou Jesus sentado à sua espera. Podia não ter acontecido nada, mas ela permitiu o diálogo com Jesus e isso deu-lhe a oportunidade de conhecer o dom de Deus e de se libertar de uma religião que impede os homens de se encontrarem uns com os outros em Deus. Dessa experiência nasce um movimento que coloca Jesus no centro da vida de todos os habitantes de Sicar.
Reflexão da Palavra
O texto de Êxodo 17,3-7, que é apresentado como primeira leitura deste terceiro domingo da quaresma, leva-nos até Refidim onde o povo, libertado por Moisés do Egito, está acampado. O episódio relata o drama da sede experimentada pelo povo. É já a segunda vez que vivem esta experiência. Anteriormente, em Mará, Ex 15,22-27, o povo sentiu sede e apenas encontrou uma água amarga. Ali, Moisés, seguindo as indicações do Senhor, transformou aquela água tornando-a própria para beber.
Situação semelhante é descrita também em Números 20,2-13, onde a sede devoradora leva o povo à revolta contra Deus e contra Moisés. Trata-se, muito provavelmente, do mesmo e único acontecimento descrito com algumas variantes. Se, no texto do livro dos Números, Moisés e Aarão parecem não acreditar ser possível sair água daquela rocha, aqui, no relato de Êxodo, Moisés cumpre imediatamente a ordem de Deus e o povo pode saciar a sede.
Este acontecimento ficou na história de Israel e é referenciado em outros lugares da Escritura, particularmente nos salmos, porque o povo tentou e pôs o Senhor à prova ao murmurar e questionar: “foi para morrer no deserto que nos tiraste do Egito?”.
O drama da sede em pleno deserto, sem esperança de encontrar água a tempo de não morrer de sede, leva o povo a pôr Deus em Causa. Ele “está ou não no meio de nós? Se está é um Deus incapaz, que nos tirou do Egito e nos deixa aqui a morrer no deserto? Ou então, é vingativo e tirou-nos do Egito de propósito para nos deixar aqui a morrer de sede? A conclusão é fácil: É melhor sermos escravos, mas vivos, do que livres e mortos.
O salmo 94 faz alusão a este episódio de Meribá e Massá. Começa com um convite a ir à presença de Deus para o louvar, porque ele é um rei poderoso, e passa a uma exortação a abrir o coração para o escutar. Aquele que vem à presença do Senhor, não pode vir de coração fechado, incapaz de escutar a sua voz. Fazê-lo, é imitar o povo quando no deserto, em Meribá e Massá, não quiserem ouvir endurecendo o coração. Por isso, “hoje, se escutares a voz do Senhor, não feches o coração”.
O texto de Paulo da Carta aos Romanos deve ler-se do fim para o princípio. Tudo começa quando Cristo aceitou morrer por nós, em nosso favor, apesar de sermos pecadores. Quando não éramos capazes de nada, Cristo, no tempo designado por Deus, morreu pelos culpados. Depois foi-nos dado o Espírito Santo e com ele o amor de Deus foi derramado em nossos corações. Agora, gloriamo-nos e colocamos a nossa esperança na glória de Deus, porque ela é um dom para nós. A nossa glória está em Jesus que nos ensina, com a sua morte, o verdadeiro significado do amor e do perdão.
O relato evangélico do encontro de Jesus com a Samaritana é emblemático e ganha uma importância maior pelo facto de ser proclamado no terceiro domingo da quaresma, no qual está indicado que os catecúmenos realizem o primeiro escrutínio. O texto deve ser entendido neste contexto de purificação, da mente e do coração, daqueles que em breve vão receber os sacramentos da Iniciação Cristã.
O texto coloca o ouvinte no poço de Jacob, em território da Samaria. Jesus descansa no poço e uma mulher vem buscar água em hora pouco habitual. O encontro parece ocasional mas transforma-se numa experiência vital. O texto está construído a partir de um movimento entre o poço e a cidade. Jesus fica a descansar no poço enquanto os discípulos vão à cidade. A mulher vem ao poço e encontra-se com Jesus. Os discípulos regressam da cidade ao poço e a mulher vai do poço à cidade. O regresso da mulher à cidade faz com que todos os habitantes se dirijam para o poço, onde está Jesus, e levam Jesus para dentro da cidade, apesar de os judeus não se darem com os samaritanos.
Por outro lado, Jesus pede de beber à mulher enquanto os discípulos vão comprar comida. A mulher que tem balde para tirar água acaba por pedir, ela, água a Jesus. No entanto, há um equívoco no diálogo, porque a água que Jesus tem para oferecer não é a água que a mulher espera receber. A água é um bem que se tem que procurar com esforço e se agradece porque é escasso e a mulher sabe isso melhor que ninguém. Jesus, porém, fala de uma água que é ele mesmo, é dom de Deus, inesgotável, acessível e gratuito que tem poder de eternidade.
Se Jesus e a mulher não se encontram quanto ao significado da água, encontram-se na vida. A mulher abre a sua verdade diante de Jesus “não tenho marido” e Jesus acolhe essa verdade “disseste bem”. É esta experiência de encontro com a verdade que vai trazer os habitantes de Sicar até Jesus. A verdade da mulher é que teve cinco maridos e o que tem agora não lhe pertence. Que maridos são estes? Há quem entenda que são deuses, porque os samaritanos também tinham vários ídolos. Ela já fez um caminho por outros deuses e este que tem agora também não a satisfaz. Mas também sente que nem o culto prestado no monte da Samaria, pelos samaritanos, nem o culto prestado em Jerusalém, pelos judeus, são resposta para ela.
O diálogo abre-se, então, à novidade de Jesus: “Vejo que és profeta”, e recebe a resposta: “os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade”; “Eu sei que há de vir o Messias”; “Sou Eu, que estou a falar contigo”. Neste diálogo Jesus reconhece-se e dá-se a conhecer como Messias e a mulher encontra aquele que sabe tudo da sua vida e pode saciar a sua sede. Deu-se um verdadeiro encontro que, por ser encontro e ser verdadeiro, se torna anúncio. Venceu-se a barreira entre homem e mulher, entre judeus e samaritanos, e nasceu a primeira discípula de Jesus: “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será Ele o Messias?”.
A pergunta da mulher tem mais certeza do que dúvida e os samaritanos acolhem Jesus pedindo-lhe que fique com eles.
Meditação da Palavra
O exagero com que os israelitas enfrentam a dificuldade em obter água no meio do deserto, leva-os a desafiar Deus e Moisés, murmurando contra eles, ao ponto de Moisés se sentir ameaçado. Já não é a primeira vez que sentem o problema da falta de água, mas agora, a “sede de água” torna-se tão intensa que os leva a deturpar as intenções de Deus, afirmando que ele os libertou do Egito para os deixar morrer à sede.
Mas o Senhor está no meio do seu povo. Moisés, o interlocutor entre Deus e o povo, não perde a oportunidade para estabelecer com Deus o diálogo sobre a sede do povo e a água que só ele pode dar-lhes naquele deserto. A resposta de Deus é clara. Vai até à rocha, leva na mão a vara do comando, bate com a vara na rocha e sairá água para saciar a sede do povo, porque “eu estarei diante de ti, sobre o rochedo”.
Mais do que água, falta ao povo a certeza de que Deus não é nem um incapaz que deixa o seu povo morrer, nem um Deus vingativo que liberta da escravatura para dar a morte no deserto e também não é um Deus ausente. Deus está de facto no meio do seu povo e não cessa de lhe mostrar, com sinais, a sua presença.
Falta aqui o mais importante, escutar a voz do Senhor “Se hoje ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações”.
Com Cristo, a vida dos homens muda e os crentes são sinal deste poder de Deus manifestado para a salvação dos homens. De facto, o amor de Deus foi derramado sobre o mundo pelo Espírito Santo, porque Cristo aceitou morrer pelos que vivem no pecado. Ora, todos os homens vivem o pecado como uma experiência dramática. Por todos Jesus aceitou morrer e na morte venceu o pecado dando a todos a possibilidade de participarem da glória de Deus. Esta é a prova do amor de Deus anunciada pelos crentes, pelos que já experimentaram, pela fé, a justificação e encontraram a paz com Deus e vivem, na esperança, a certeza de participar na glória.
A nossa glória está em Jesus que nos ensina, com a sua morte, o verdadeiro significado do amor e do perdão.
É essa a experiência da samaritana. Naquele dia, naquele lugar, àquela hora ela não encontrou apenas um homem sentado no poço de Jacob. Ela encontrou-se com aquele que é a luz que veio ao mundo para iluminar todos os homens. Atreveu-se num diálogo difícil, com um estranho, sobre um assunto sério, que a deixara refém a vida toda e a fazia experimentar uma sede que ninguém tinha conseguido ainda saciar, e não era sede de água.
Para a água do poço ela tinha um balde e podia tirar a água que precisasse. Para a sede interior não tinha encontrado nenhum “marido” ou “deus” a conseguisse apaziguar. A insatisfação é total, mas não reclama, como os judeus no deserto, embora já tenha desacreditado a possibilidade de encontrar solução para si nos montes da Samaria ou em Jerusalém.
O diálogo com Jesus abre uma nova fonte, fonte de água viva, que jorra para a vida eterna. A água de um Deus que não se adora nos montes, mas em espírito e verdade, de um Deus que não se assusta com a experiência da vida de cada um, mas se afirma como resposta perante a abertura à verdade que cabe dentro de cada homem. Este Deus manifesta-se em Jesus, que é mais do que profeta, é o Cristo, o Messias esperado. Aquele “que me disse tudo o que eu fiz”.
O encontro com ele esbate as diferenças e derruba as barreiras, torna-se anúncio e abre as portas da hospitalidade, gera encontro e constrói comunidade.
Rezar a Palavra
A água viva, Senhor! Dá-me dessa água para que não tenha que andar a mendigar de fonte em fonte uma água transitória para uma sede permanente. Dá-me dessa água que sai da rocha do deserto, desse lado aberto de Cristo na cruz, desse coração de amor inesgotável, dessa vida entregue, desse sangue derramado. Dá-me da tua água, Senhor, e fica comigo, hoje e sempre.
Compromisso semanal
Oriento a minha sede para ir ao encontro de Cristo, verdadeira água viva.