No primeiro Domingo da Quaresma foi-nos apresentado o deserto como lugar de prova e, ao mesmo tempo, de liberdade e de encontro com Deus. Mas, também o monte significa o encontro e a decisão diante de Deus. O monte é um sítio privilegiado de aventura, de escuta e de conversação com Deus. Subir ao alto de um monte é sair daquilo que se faz todos os dias, do que já é sabido e narrado por todos, para se encontrar com algo diferente, com o que Deus quer dar a conhecer. Ali ouviu Abraão a voz de Deus e cumpriu com fé e obediência a palavra que lhe foi dirigida (1ª leitura); no cimo de um monte muito alto, Jesus manifestou-se glorioso aos seus discípulos; é nesse local, do meio da nuvem, que se ouve a voz do Pai a convidar a ouvir o Seu Filho que caminha para a morte (Evangelho).

  1. Transfiguração e esperança
    – A Transfiguração situa-se num momento crucial da actividade de Jesus: Ele passa por um momento de fracasso porque o povo queria que fosse um chefe político e um taumaturgo; as autoridades rejeitam-no porque temem a concorrência e os discípulos não o compreendem…
    – “Seis dias depois…”, diz S. Marcos. Este dado cronológico estabelece a ligação entre os acontecimentos anteriores de incompreensão, e de dificuldade em seguir Jesus, e o que vem depois. Antes, em 8, 31-32, Jesus tinha feito o primeiro anúncio da paixão, ao qual se seguiu uma reprimenda de Pedro e um diálogo aceso com Jesus que o censura em termos muito duros: “vai para trás de mim, Satanás”… A transfiguração aparece para esclarecer as coisas: há morte e vida, sofrimento e glória, tristeza e alegria…
    – A transfiguração é luz para o caminho e luz para a esperança… No texto predomina um vocabulário luminoso: “transfigurou-se”, “vestes resplandecentes”, “brancas”, “ninguém as podia branquear assim”… É a apoteose da luz e a apoteose da esperança… Por muito obscuros que sejam os nossos caminhos, as nossas dúvidas e preocupações, há luz e esperança no caminho…
    – Por muito escura que seja a noite, com Cristo, há sempre lugar para a luz e para o dia radioso…
  2. O que Deus faz é por amor do homem
    – Algumas vezes confrontamo-nos com o modo de actuar de Deus, que nos parece estranho: como é possível que Deus peça a Abraão o seu único filho, aquele que tinha cumprido a promessa?… Como é possível que o Pai não tenha salvado o Filho Jesus livrando-O do sofrimento e da morte?
    – A Igreja interpreta a figura de Isaac aplicando-a a Jesus mas, com uma diferença muito grande: no sacrifício de Jesus não há vitima que o possa substituir… No seu amor, Deus entregou o Filho à humanidade, que O rejeita e com Ele usa de violência até à morte…
    – E porquê? Porque há poderes neste mundo que oprimem o homem, que não o deixam ser livre… Por isso é que Deus, no Filho Jesus, mantém a sua entrega até ao fim… Por nós, para que sejamos livres e possamos desfrutar da luz, da glória que sucede ao sofrimento e à morte …
    – Nos anúncios da sua paixão (são três e o primeiro antecede o relato da transfiguração), Jesus vai preparando os discípulos para o que ia acontecer em Jerusalém… Mas também lhe vai abrindo os olhos para o desfecho final: a glória… A transfiguração contrabalança com os traços negros dos anúncios da paixão e da morte: Jesus cumpre a Lei e os profetas (Moisés e Elias); a nuvem (sinal da presença de Deus) indica que Jesus se situa na esfera divina e a voz do Pai (“este é o meu Filho muito amado”) confirma tudo o que se passa exortando a escutá-Lo…
  3. A atitude válida: escutar o Filho
    – Tal como está estruturado o relato de Marcos, dá a impressão que tudo converge para a ordem-recomendação final: “Este é o meu Filho muito amado, escutai-o”. Escutar, na Bíblia, não se reduz à actividade auditiva, de ouvir e perceber umas palavras… Escutar é pôr em prática, cumprir aquilo que é dito numa atitude de fidelidade; escutar é abrir o coração à Palavra…
    – Escutar é também obedecer…É traçar como objectivo a obra de Jesus, que inclui, muitas vezes, a rejeição e a morte…
    – Escutar a voz de Jesus é segui-Lo, e segui-Lo é viver como Ele viveu, ser capaz de amar morrendo, para ressuscitar e ser glorificado…
    – Na realidade, para assimilar e viver assim, é preciso descer do monte, pôr os pés nos caminhos obscuros da vida, do sofrimento e da doença; partilhar a realidade humana e social do mundo em que vivemos…
    – Cada dia é preciso perguntar pela experiência que cada um faz de Deus… Não basta contemplar as Suas obras e maravilhar-se com a Transfiguração: é preciso meter-se no mundo e escutar aí a voz do Pai para seguir e viver como Jesus…