Transfigura-me no teu monte santo

Cada um tem uma montanha para subir.
É fácil subir e descer da montanha e caminhar como peregrinos atrás de Jesus. Difícil é descer à realidade da vida de cada dia. Difícil é descer ao abismo da existência.
É fácil ir a Jerusalém, mas difícil subir à cruz.
É fácil acreditar em Deus. Difícil é aceitar a transfiguração pela morte de cada dia.

LEITURA I Gn 22, 1-2.9a.10-13.15-18

Naqueles dias, Deus quis pôr à prova Abraão e chamou-o: «Abraão!». Ele respondeu: «Aqui estou». Deus disse: «Toma o teu filho, o teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à terra de Moriá, onde o oferecerás em holocausto, num dos montes que Eu te indicar. Quando chegaram ao local designado por Deus, Abraão levantou um altar e colocou a lenha sobre ele. Depois, estendendo a mão, puxou do cutelo para degolar o filho. Mas o Anjo do Senhor gritou-lhe do alto do Céu: «Abraão, Abraão!». «Aqui estou, Senhor», respondeu ele. O Anjo prosseguiu: «Não levantes a mão contra o menino, não lhe faças nenhum mal. Agora sei que na verdade temes a Deus, uma vez que não Me recusaste o teu filho, o teu filho único». Abraão ergueu os olhos e viu atrás de si um carneiro, preso pelos chifres num silvado. Foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto, em vez do filho. O Anjo do Senhor chamou Abraão do Céu pela segunda vez e disse-lhe: «Por Mim próprio te juro – oráculo do Senhor – já que assim procedeste e não Me recusaste o teu filho, o teu filho único, abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar, e a tua descendência conquistará as portas das cidades inimigas. Porque obedeceste à minha voz, na tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra».

Para Abraão a fidelidade a Deus manifesta-se no sacrifício do seu filho amado. Para Deus, que não quer a morte do homem, a fidelidade manifesta-se através de uma vida dedicada que se torna bênção para todos. É isso que Deus quer de Abraão e de Isaac.

Salmo Responsorial Sl 115 (116), 10 e 15. 16-17.18-19 (R. Salmo 114 (115), 9)
O salmista dá graças a Deus porque ele o salvou. Já estava abraçado pelos laços da morte, mas o Senhor veio em seu auxílio, porque “é preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus fiéis”.

LEITURA II Rm 8, 31b-34

Irmãos: Se Deus está por nós, quem estará contra nós? Deus, que não poupou o seu próprio Filho, mas O entregou à morte por todos nós, como não havia de nos dar, com Ele, todas as coisas? Quem acusará os eleitos de Deus, se Deus os justifica? E quem os condenará, se Cristo morreu e, mais ainda, ressuscitou, está à direita de Deus e intercede por nós?

Fomos justificados no mistério da cruz de Jesus porque Deus, no seu amor incompreensível, entregou o seu filho à morte. Agora, ninguém nos pode acusar, ninguém nos pode condenar, porque Deus se mostrou como nosso defensor.

EVANGELHO Mc 9, 2-10

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e subiu só com eles para um lugar retirado num alto monte e transfigurou-Se diante deles. As suas vestes tornaram-se resplandecentes, de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra as poderia assim branquear. Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus. Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: «Mestre, como é bom estarmos aqui! Façamos três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias». Não sabia o que dizia, pois estavam atemorizados. Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra, e da nuvem fez-se ouvir uma voz: «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O». De repente, olhando em redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus, sozinho com eles. Ao descerem do monte, Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém o que tinham visto, enquanto o Filho do homem não ressuscitasse dos mortos. Eles guardaram a recomendação, mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos.

A transfiguração de Jesus no cimo do monte é uma preparação para os discípulos aceitarem o que está para vir, a morte e a ressurreição de Jesus. Mesmo sem entenderem, os discípulos sabem que, em Jerusalém, vai acontecer algo de muito importante e que precisam de escutar Jesus se querem permanecer com ele até ao fim.

Reflexão da Palavra

Genesis oferece um texto emblemático, cheio de elementos teológicos que devem prender a nossa atenção. Não se trata de um relato histórico, até porque tem origem por volta do ano 700 a.C. e Abraão viveu por volta do ano 1850 a.C., as referências ao tempo e lugar dos acontecimentos são pouco concretas e não é histórica a motivação para a sua elaboração. Por detrás do texto está a problemática dos sacrifícios humanos.

Podemos fazer duas leituras distintas deste relato. A primeira leva-nos à afirmação de um Deus que põe Abraão à prova para ver se ele corresponde ao que é esperado como resposta de fé. Trata-se de uma visão pagã que nasce de uma compreensão de Deus que não corresponde ao que ele é realmente. Segundo esta visão, o homem consegue de Deus algo que deseja a troco de outra coisa, mesmo que seja o sacrifício da vida humana. Com Isaac não é assim, ele é dom gratuito de Deus, sobre ele recai a realização da promessa de Deus e não pode ser transformado em moeda de troca.

Deus não quer a morte do homem, quer que ele viva e é isso o que o homem também quer. A esperança do homem é a esperança de Deus e está depositada em Isaac. Ele é o fruto da promessa acreditada por Abraão e é a razão da esperança de Deus e de Abraão.

O texto é, assim, uma reflexão teológica sobre uma mudança de mentalidade. O autor serve-se de Abraão para dizer a todo o Israel que Deus não quer sacrifícios humanos, prática habitual entre os povos da época. Israel não segue essa prática, mas é difícil não sofrer a influência dos outros povos e não cair na tentação de o fazer, até porque o holocausto era o tipo de sacrifício mais perfeito porque se queimava a totalidade da vítima, não se guardando nada para si.

O autor serve-se de Abraão para apresentar uma nova imagem de Deus e a necessidade de uma nova mentalidade da parte do homem. O Deus de Israel age gratuitamente e espera uma resposta gratuita do homem. Deus fez uma promessa a Abrão e ele iniciou uma nova vida com um novo nome Abraão. Deus não esquece a sua promessa. Realiza-a em Isaac. Mais do que de uma prova, o texto fala da descoberta por parte de Abraão de um rosto novo de Deus e de uma nova linguagem.

O verdadeiro holocausto, a verdadeira oferta a Deus, não é nem o holocausto nem o sacrifício mas um compromisso a não esquecer que foi Deus quem lhe deu aquele filho, que nele se cumpre uma promessa e que a prova de fé de Abraão não passa por sacrificá-lo, mas por fazer tudo para que ele viva e seja bênção para todos os povos.

A imagem de Isaac carregando a lenha para o sacrifício de si próprio foi sempre entendida como figura de Cristo carregando a cruz para o Calvário. E Paulo serve-se deste episódio para afirmar que, o mesmo Deus que poupou o filho de Abraão, não poupou o seu próprio filho.

Prisioneiro das cadeias da morte por uma trágica doença, o salmista louva o Senhor na sua bondade e misericórdia, porque teve compaixão dele e quebrou as cadeias que o arrastavam para as portas da morte, os laços da morte que o cercaram. O Senhor ouviu a sua súplica, inclinou o seu ouvido e foi bom para com ele, porque “é preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus fiéis”. Deus não brinca com a vida do homem, por isso, ele não quer a morte de Isaac, mas que ele viva e se torne bênção.

Na sua experiência cristã, Paulo reconhece que o amor de Deus pelos homens é tão grande que ele não hesitou em entregar o seu filho e o amor de seu filho pelos homens é tão grande que ele não hesitou em oferecer-se a si mesmo. E, na sequência deste amor o amor de Deus Pai, Filho e Espírito Santo, habita em nós de tal modo que, ninguém nos pode separar do amor de Cristo.

Um amor tão global implica uma salvação também ela global de modo que ninguém fica de fora deste amor e consequentemente da salvação. “Se Deus está por nós, quem estará contra nós?” Então, se nada nos pode condenar, onde fica a justiça de Deus? A justiça de Deus é sempre salvação, não é como a nossa que é condenação dos culpados. “Quem acusará os eleitos de Deus, se Deus os justifica?”.

Como é que isto sucede? “Graças a Cristo, Senhor nosso” (7,25), “agora não há mais condenação alguma para os que estão em Cristo Jesus. É que a lei do Espírito que dá a vida libertou-te, em Cristo Jesus, da lei do pecado e da morte” (8,1-2). Assim, ninguém nos pode condenar porque “Cristo morreu e, mais ainda, ressuscitou, está à direita de Deus e intercede por nós”. O homem não tem que entregar nada em pagamento desta salvação porque ela é gratuita, fruto unicamente do amor de Deus. É esta a Boa Notícia de Jesus.

O evangelho é todo ele uma manifestação de Deus em Jesus. Podemos dividir a cena em três partes. Na primeira Jesus transfigura-se diante dos três discípulos que subiram com ele ao monte, revelando a sua condição divina e a novidade diante do que já conhecem, a lei e os profetas representados em Moisés e Elias.

Na segunda parte Deus dá a conhecer Jesus como o seu filho muito amado. Isaac é o filho que Abraão ama e Jesus é o filho amado do Pai. Nele devem confiar os discípulos ainda que tudo o que está para vir seja um sinal contraditório face ao que eles imaginam relativamente ao Messias salvador.

Na terceira parte, Jesus pede aos discípulos que façam silêncio sobre esta experiência.
O mistério de Cristo vai-se revelando aos olhos dos discípulos à medida que Jesus sobe a Jerusalém. Jesus já lhes tinham anunciado uma vez que “tinha de sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos e pelos doutores da Lei, e ser morto e ressuscitar depois de três dias” (8,31), o que mereceu uma repreensão da parte de Pedro.

No cimo do monte Jesus antecipa o que vai ser a manifestação da sua glória, através das suas vestes resplandecentes e brancas. A presença de Moisés e Elias revelam Jesus como o profeta e novo Moisés que vem instaurar um tempo novo. O conteúdo do diálogo é, segundo Lucas, a morte de Jesus em Jerusalém, confirmando o que Jesus tinha anunciado aos discípulos.

A nuvem, que significa a presença de Deus, cobre-os e a voz do Pai convida a confiar na palavra do filho porque ele é “o filho muito amado”.

Já na descida do monte a ordem é para silenciar o que viveram. Esta ordem, aparentemente estranha, tem como objetivo manter o rumo certo dos acontecimentos e da missão de Jesus. Nem os discípulos podem falar porque não entendem ainda o que está para acontecer. Só entenderão mais tarde. Nem Jesus se pode deixar perturbar pelos acontecimentos futuros porque quer levar a sua missão até ao fim.

Meditação da Palavra

Deus não está prisioneiro dos nossos critérios. Ele vai-se revelando ao longo da história da humanidade para desfazer as ideias com que o homem o vai imaginando na tentativa de o poder conhecer. Porque a Deus nunca ninguém o viu, apenas o podemos conhecer de verdade se ele se manifestar e ele manifesta-se de muitos modos, cada vez mais surpreendentes, até se revelar definitivamente no seu filho Jesus Cristo.

A primeira leitura da liturgia deste domingo convida a uma mudança de mentalidade na compreensão de Deus. Israel não é um povo como os outros, é o povo do Deus único que se revelou a Abrão. Com ele fez uma aliança que mudou radicalmente a sua vida, como muito bem indica a mudança de nome para Abraão. Espera-se que esta mudança imprima na vida de Abraão uma atitude nova na relação com Deus. Ele já não é o membro de uma família de Ur, é um homem comprometido com o Deus, único e verdadeiro, que lhe promete uma descendência numerosa e uma terra para habitar.

A confiança que Abraão deposita em Deus, apesar de inabalável, sofre as influências dos povos com quem estabelece contacto ao longo do caminho da sua vida. Do mesmo modo que o povo a que ele dá origem vive, em muitos momentos da história, a tentação de abandonar o Senhor e seguir os deuses de outros povos reproduzindo os seus costumes.

A tentação de apaziguar a Deus através de holocaustos, tendo como vítimas seres humanos, era uma prática habitual em outros povos e, Israel viveu a tentação de os imitar. Abraão aparece aqui a responder a Deus com a decisão de sacrificar o seu filho. Esta atitude não corresponde à vontade de Deus, mas a uma imitação pagã que o Deus de Abraão não subscreve.

A fé não se prova com o holocausto de vidas humanas e nem sequer com a vida de animais. Prova-se cuidando da vida e reconhecendo que ela vem de Deus e a Deus pertence. A substituição à última hora da vida de Isaac pela de um carneiro, faz Abraão entender que, oferecer a Deus é cuidar para que Deus possa encontrar no coração do homem a confiança absoluta de que o seu amor é ainda maior que o amor de um pai por um filho.

É esse o entendimento do salmo responsorial “é preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus fiéis”. Deus quebra os laços da morte e as cadeias que impedem o homem de viver e não o contrário. Deus não exige a vida do homem, mas o seu amor, como resposta.

É dessa forma que vemos a manifestação de Deus em Jesus Cristo. Nele Deus manifesta-se como um Pai com entranhas de misericórdia. Nele dá início à revolução do amor.

O que Deus quer, pode corresponder ao que o homem quer. Deus quer a vida do homem como Abraão quer a vida do seu filho. Deus quer iniciar uma nova aliança com o filho amado de Abraão. É com Isaac que Deus dá continuidade à experiência iniciada com Abraão. Os planos de Deus não têm que ser antagónicos em relação aos planos do homem.

Para concretizar os seus planos de amor, Deus faz uma última aliança em seu filho Jesus Cristo. Ele é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Nele o compromisso é perfeito porque envolve na mesma correspondência o mistério de Deus e o mistério do homem. Não há em Jesus imperfeição no amor nem incapacidade para o compromisso. Nele a adesão ao homem e a adesão a Deus é total e perfeita, implicando aí toda a sua vida.

Em Jesus, Deus que poupou o filho de Abraão, revela entranhas de misericórdia entregando à morte o seu filho para salvar todos os outros.

No cimo do monte, Jesus revela aos discípulos o mistério da sua existência enquanto Deus e homem. Nele se concentra toda a revelação, a Lei e os profetas, numa aliança que será firmada com a sua morte na cruz. Deste mistério os discípulos não podem falar enquanto não estiverem conscientes das suas implicações, o que só acontecerá depois da ressurreição.

Paulo tem sobre este mistério uma experiência clara. Em Cristo o homem foi justificado para sempre, porque nele se manifestou o amor de Deus sem limites, de modo que, nada nem ninguém pode acusar-nos diante de Deus. Como eleitos de Deus fomos justificados na morte de Cristo que intercede por nós.

O que Deus não exige a Abraão realiza-o, ele mesmo, por nós, para que não nos esqueçamos, nas diferentes circunstâncias da vida que Ele está do nosso lado e não contra nós e “contribui em tudo para o bem daqueles que o amam”. Este “tudo” implica também entregar o seu filho à morte para nos resgatar da morte, apesar de sermos nós os pecadores. Deste modo ninguém pode estar contra nós, uma vez que Deus está incondicionalmente do nosso lado.

O evangelho recorda que, para compreender este Deus que não exige a vida do homem mas é ele mesmo quem dá a vida por eles, é necessário aderir a Jesus e ao seu projeto. Em Jesus pode ver-se o mistério de amor deste Deus em ação. Por isso a voz do Pai se faz ouvir com a recomendação: “Este é o meu Filho muito amado: escutai-O”.

Não escutar significa permanecer na mesma mentalidade, continuar com os mesmos critérios, esperar manifestações extraordinárias como a da transfiguração, fazer três tendas e proteger-se dos acontecimentos que esperam Jesus em Jerusalém. Escutar significa aceitar o desafio de mudar a mentalidade, alterar os parâmetros da configuração da própria vida, desafiar-se a encontrar Deus no amor aos irmãos e decidir-se a abraçar a cruz.

Rezar a Palavra

Tu, Senhor, não queres a nossa morte, nem precisas que te ofereçamos sacrifícios para manifestares o teu amor por nós. És tu quem dá a vida espontaneamente. Na cruz do teu filho Jesus arriscas morrer para que vivamos. Ensina-nos as coordenadas do teu amor, para te reconhecermos na realidade da cruz de cada dia e darmos a vida uns pelos outros como irmãos.

Compromisso semanal

Nesta quaresma caminho com Jesus até Jerusalém disposto a dar a minha vida na fidelidade ao amor de Deus.